Senso Incomum

Direito é como um jogo de baseball? Qual é mesmo a jogada, professora?

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9 de novembro de 2017, 7h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]“Os juízes”, dizem, “são como jogadores de baseball”. “Seu comportamento pode (e deve) ser estudado, previsto, através de análise de dados”. “O que importa mesmo é saber como os juízes decidem os casos”. Essa parece ser a tendência de considerável parcela da doutrina norte-americana contemporânea. Eles, fascinados pela mais pura empiria. E muitos juristas brasileiro, ao que tudo indica, fascinados… pela doutrina norte-americana contemporânea fascinada pela mais pura empiria. Somos fascinados pela fascinação.

Digo isso porque, recentemente, a professora Lee Epstein — pesquisadora da Washington University e representante dessa doutrina — veio ao Brasil, em evento organizado pela Universidade de São Paulo (USP), para falar sobre essa espécie de revival do realismo jurídico do século XX. Os sites por aí, é claro, não hesitaram em, ao falar sobre o evento, dar eco à ideia de que advogados devem conhecer o comportamento real (sic) dos juízes, uma vez que “apenas conhecer regras e teorias jurídicas não basta”.

Sei bem que as pesquisas empíricas têm sido dominantes no Direito norte-americano, assim como estou ciente do reconhecimento que Lee Epstein tem enquanto pesquisadora em seu país. Isso não me impede, contudo, de tecer alguns comentários, porque me recuso a aceitar que o papel da doutrina seja, repetindo Oliver Wendell Holmes Jr. e sua bad man theory, prever como os juízes vão decidir… e pronto. Convenhamos, sem ofensa ou implicância, isso é fazer pouco de algo complexo como é o Direito.

Ah, uma pausa: para quem não sabe o que é o velho realismo jurídico, alerto que já escrevi sobre ele de forma bastante didática aqui (tem até aquele divertido filminho — adaptado — de Pink e Cérebro tentando conquistar o mundo… via realismo). A leitura dessa coluna um pouco mais antiga facilitará a compreensão das críticas feita aqui hoje.

Enfim, voltando ao ponto: Lee Epstein, discorrendo sobre sua obra The Behavior of Federal Judges (O Comportamento dos Juízes Federais) afirma, em tom elogioso aos realistas (como Karl Llewellyn e Benjamin Cardozo), que pretende, com o auxílio das novas metodologias empíricas, aprofundar sua antiga teoria de que o Direito é meramente aquilo que os tribunais dizem que ele é. Diz que não se trata de um realismo jurídico à la Jerome Frank, mas de construir uma teoria comportamental atualizada a partir de suas bases. O termo comportamental, confesso, é por minha conta, mas acho que nem Epstein recusaria o rótulo.

No mesmo link, Epstein diz não estar preocupada em questionar e dizer como os juízes devem decidir os casos, mas, simplesmente, como eles decidem.[1] Então pergunto: não é esse o velho realismo jurídico? Pois então. Talvez seus métodos empíricos sejam modernos demais para um velho soldado como eu, que insiste em coisas ultrapassadas como Constituição, Parlamento, democracia, legislação, autonomia do Direito e teoria da decisão…

E mais: posturas como a de Epstein desconsideram, abertamente, a distinção filosófica entre behavior (comportamento) e action (ação). A primeira dá conta de nossa dimensão animal e sensitiva; a segunda, de nossa racionalidade. A primeira é analisada por meio de compreensão causal-descritiva. A segunda, por meio de compreensão avaliativa e reflexiva. Por que ressalto isso? Porque, e isso é muito simples, o objeto próprio do Direito não é o comportamento, mas a ação.

O empirismo jurídico vai, pois, invariavelmente, sofrer de três problemas: é irracional — porque não há critério disponível e compartilhado por todos para que as respostas apresentadas pelos juízes sejam avaliadas; é acrítico — porque sua pretensão nega qualquer espaço de reflexão e, com isso, a própria pretensão normativa do Direito; e é antidemocrático, porque, bem, os juízes decidem… como querem…e pronto.

Por óbvio, respeito as pesquisas empíricas da professora Epstein. Como disse, sei bem de sua importância no cenário jurídico norte-americano. Como hermeneuta, sei que eles também têm algo a dizer. Agora, eu escrevo sobre o Direito brasileiro porque luto por ele. E não sei nada de baseball. A professora, por certo, é expert nesse esporte desconhecido para 99,99% dos brasileiros. E quando a tendência parece ser a de que o neorrealismo cresça cada vez mais por aqui, e se a nova moda agora é importar a empiria pura, sugiro que aproveitemos a ocasião e fechemos as faculdades de Direito. Para que gastar dinheiro com concursos, professores titulares (aliás, parabéns ao Fernando Scaff e Marcelo Cattoni, recentes titulares). Melhor é aderirmos ao realismo. Temos de ser pragmáticos, dirão. Não é isso que pedem as teorias empiristas? Então que estudemos a psicologia behaviorista de uma vez. Não precisamos de Hart, Dworkin, Kelsen… pra quê? Fiquemos com Watson e Skinner. Pronto. Juízes são cães de Pavlov mesmo, e nós não servimos pra nada.

Esse é meu ponto, e aqui fica muito claro: o behaviorismo jurídico e aqueles que parecem endossa-lo aqui no Brasil são céticos. Mesmo que não admitam ou assumam isso. Eu não sou nem relativista, nem cético (e nem não-cognitivista ético, aqui homenageando sempre a bela obra de Arthur Ferreira Neto). Acredito em uma resposta correta. Acredito em uma doutrina que doutrine, e que não seja mera reprodutora de acórdãos. Que exerça o duro papel de constranger as decisões judiciais, e não meramente prevê-las (sobre isso, sugiro os verbetes Constrangimento epistemológico e Resposta Adequada em meu Dicionário de Hermenêutica).

Alguns dirão que temos de nos render à falácia realista de que “isso é assim mesmo”. Devolvo: mas o que é isso — comportamentalismo? Behaviorismo jurídico faz profecias sobre o passado. Deixam de cuidar da aplicação para se tornarem representantes de um “entendimento já tomado”… Chamaria a isso de pessimismo jurídico. Já que nada existe mesmo, tudo é relativo, bom, preocupemo-nos em prever o que o juiz vai dizer mesmo e pronto. Ou seja, preocupemo-nos em saber o que juiz sente e adivinhemos o que sentirá na hora da decisão… Em pleno século XXI, ainda o triunfo da linguagem privada.

Lamento, mas meu otimismo metodológico não permite que eu subscreva a tese de Epstein e correlatos. Como jurista, não tenho o direito de desistir do Direito. E não acredito que, em vez de estudar doutrina e leis, seja melhor, como diz a professora, estudar o (real – sic) comportamento dos juízes… Se assim for, devemos colocar detetives atrás dos juízes. Perscrutar o que comem no almoço.[2] Que time torcem. Que perfume (não) lhes (des)agrada que usemos em audiência. Usemos ternos escuros… ou claros? Quem sabe… de risca, mais clássico. Bom… e, desse modo, dispensemos os doutrinadores e paremos de escrever livros… E nos transformemos em coachings. Além, é claro, de decorar as regras do baseball. Ups. Ou, abrasileirando, estudemos o futebol. Problema seríssimo, para o qual a professora não foi alertada pelos seus congêneres brasileiros: é que o futebol é bem mais complexo que o baseball. Totalmente imprevisível. Esquema de duas linhas de 4, com um centroavante que joga por uma bola… Ou o velho 4-3-3? E o que fazer com o montinho artilheiro?

Post scriptum: ah, faço um alerta: quando aderimos ao(s) pragmatismo(s) em demasia, a esse ceticismo absoluto que nos leva a dizer que, no fim, nada importa mesmo, colocamo-nos, sozinhos, em algumas enrascadas. Tão grandes que expõem, por si, os verdadeiros crimes epistêmicos que, por vezes, cometem aqueles que compartilham dessa obsessão pelo empírico. Quando — como se diz por aí — a teoria não serve pra nada mesmo, acabamos colocando Jeremy Bentham, um positivista normativo que o era antes mesmo da corrente levar esse nome, na mesma prateleira dos realistas (é o que faz a própria Lee Epstein, e, aos que duvidam do que estou dizendo, sugiro apenas que confiram o link que já estava aqui na coluna). Ou acabamos dizendo que Bentham, o chamado Newton da legislação, crítico ferrenho do common law, defendia precedentes.[3] Ora, vejam só. Não é que a teoria serve pra alguma coisa?

Talvez esteja aí a explicação do motivo pelo qual Bentham não quis ser enterrado. Acho que era pra não ter de se revirar no próprio caixão.

Post scriptum 2. A propósito, quando vemos que um juiz acha normal que um pai açoite a filha adolescente com um fio elétrico, quando se julga um caso de repercussão geral sem o caso, quando não há prazo para prisão preventiva, quando não se cumprem os limites semânticos dos textos jurídicos, digam-me: no que um behaviorismo (ou qualquer realismo) pode “adivinhar” o que o juiz vai decidir, se ele decide como quer? Hein? Ou seja: ou fazemos cumprir a lei e construímos critérios para isso ou façamos apostas. Cálculos. Estudemos, em vez de leis e boa doutrina, o comportamento de quem vai decidir. Isso. Façamos isso. Continuemos a fazer isso. Mas, então, não é melhor usar a tese do pintinho da tribo Azembe? Se o veneno não for manipulado (isto é, não for fraudado no seu conteúdo), há sempre 50% de chances para o réu. Simples assim. Enquanto isso, desprezemos a doutrina e apostemos em behaviorismos e quejandos.[4] Mas temos de assumir que isso é estratégia e que não se trata de Direito. E fechar as faculdades. Cursos de gestão, coaching, psicologia, economia, gestão, etc, substituirão os cursos jurídicos. E que não mais façamos palestras e escrevamos livros dizendo que… Bom, os leitores podem complementar.


[1] De pronto, deve ficar claro que qualquer tentativa de mera previsão – acrítica – desse quilate, não trata(rá) de nada além de mera estratégia advocatícia. E o agir estratégico, é verdade, faz parte do Direito – desde que respeitados os devidos limites, isto é, que esse tipo de agir seja reservado aos advogados. Esse é o ponto, e talvez seja este o maior problema em que incorrem as teorias behavioristas que dizem não se preocupar com o modo como os juízes devem decidir: pretendem-se teorias "científicas" sobre o Direito, mas são incapazes de levar em conta que juízes têm responsabilidade política e, exatamente por isso, (os juízes) devem agir por princípio. Jamais por estratégia. Esse, fundamentalmente, é nosso desacordo: para o behaviorismo, o juiz escolhe. Eu digo que o juiz decide.

[2] Bruno Torrano faz uma interessante – e correta – crítica às pesquisas empíricas (ver aqui), lembrando que, independentemente dos fatores externos, os juízes têm o dever de considerar as normas jurídicas como razões de sua conduta oficial. Não importa que tenham dormido mal, que tenham exagerado na feijoada, etc.

[3] STRECK, Lenio Luiz; RAATZ, Igor; MORBACH, Gilberto. Desmistificando o positivismo de Jeremy Bentham: sua codificação utilitarista e a rejeição ao stare decisis como autorização para errar por último. In: Revista Brasileira de Direito Processual. Belo Horizonte, ano 25, n. 99, jul./set. 2017.

[4] Por exemplo, só para mostrar que a teoria do Direito e o próprio Direito são mais democráticos e mais confiáveis, lembro que os mesmos números – de uma certa pesquisa – que dizem que os juízes de Israel, perto do meio dia, por estarem famintos, são mais duros com os acusados, também pode mostrar duas coisas: uma, que se o Direito depende do apetite e da satisfação alimentar dos juízes, é um Direito que fracassou; segundo, pesquisas como essa apenas mostram que, no meio da manhã, os tais juízes deveriam comer um bom lanche (aliás, isso se pode depreender do próprio artigo de Daniel Kahnemann que trata do assunto, bem referido por Torrano no artigo que cito na nota 2. Simples assim.

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