Opinião

Caso do reitor Cancellier faz soar as sirenes do Estado de Direito

Autor

  • Ruy Samuel Espíndola

    é advogado publicista professor de Direito Eleitoral e de Direito Constitucional e membro da Associação Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e da Academia Catarinense de Letras Jurídicas (Acalej).

2 de novembro de 2017, 6h29

Estamos vivendo, no Brasil, situações trágicas e indesejáveis para uma Democracia que quer se consolidar, permanecer e progredir; para um Estado de Direito que promete “o império do direito”; “um estado de direitos fundamentais”; “que observará o princípio da justa medida”; “que garantirá o princípio da legalidade da administração”; “que responderá pelos seus atos”; “que garantirá a via judiciária” e que “dará segurança e confiança as pessoas” (Gomes Canotilho)[1].

Após a reconstitucionalização de 1988, se instituiu novas bases materiais e formais de nosso Estado de Direito. Renovamos e fortalecemos as promessas constitucionais de divisão e limitação dos poderes; estabelecemos nova base constitucional dos direitos fundamentais em terra brasilis, sejam eles individuais, políticos, sociais, econômicos e culturais. Todavia, hoje, passados 29 anos, estamos a viver um ciclo que beira a retrocessos e nos remete as práticas investigativas medievais, há muito superadas. Isso nos dá prova os inúmeros arbítrios policiais, ministeriais e judiciais, que estão a emergir no cenário político e forense da atualidade.

E são práticas aplaudidas, difundidas, apoiadas e incentivadas por uma mídia sem responsabilidade e sem chance de produzir reflexões públicas, fundadas e sérias, plurais, dialéticas e em contraditório.

Todo dia os jornais noticiam prisões provisórias ou preventivas de pessoas no âmbito de inquérito policiais. Delações premiadas depois de longas prisões cautelares, realizadas mesmo para produzirem auto e hetero incriminações. Conduções coercitivas de investigados ou testemunhas que nunca foram instados a depor. Inquéritos que se eternizam, que duram de dois a cinco anos (ou mais), impondo medidas restritivas da liberdade ambulatória, da liberdade patrimonial; medidas cautelares de todos os matizes e de todas as formas, sem uma lógica razoável a presidi-las.

Com isso tudo, estamos a ver a banalização da liberdade em favor de um jacobinismo penal que por vezes confunde, em mesmo polo, o acusador, o investigador e o juiz, como órgãos integrantes da mesma “força tarefa”… (vide fenômeno “lava-jato”).

Nas palavras de Gilmar Mendes, “quando o promotor, o delegado e o juiz, estão do mesmo lado, o cidadão que se cuide”. E os tempos presentes, na sua crônica judiciária e jornalística, tem demonstrado o aumento crescente, embora não dominante, não hegemônico, desta associação espúria entre polícia-acusação-juiz.

Em nome de uma cultura punitivista, duma crença crescente de que é melhor punir mesmo os inocentes, do que deixar salvar-se um culpado, estamos a atemorizar as pessoas, a destroçar vidas e currículos, dignidades e corpos. E pior: estamos a corromper as estruturas legais e constitucionais do Estado de Direito e de seu sistema de direitos fundamentais, especialmente o aparato que dá suporte jurídico e cultural ao devido processo legal criminal.

Nossa sede de justiçamento e vingança são maiores que nossa busca de justiça racional, fundada na lei e nas provas em contraditório.

Estamos sendo carcomidos por uma onda salvacionista e moralista que, no objetivo de “purificar” as instituições e as suas práticas, está, em verdade, a corrompê-las, em nome do politicamente correto, do moralmente apetecível, olvidando, toldando ou obscurecendo o juridicamente correto e o constitucionalmente sustentável.

Devemos ter em conta que mesmo os níveis de liberdade e democraticidade já alcançados pós-1988 não podem mais ser mantidos se preponderar, doravante, essas práticas. Precisamos cuidar para não retrocedermos a parâmetros muito inferiores aos anteriores a década de 1990, no que toca a higidez e respeito de nosso sistema de garantias legais, pois o “movimento da lei e da ordem”, “da defesa social”, que cultiva “o direito penal do inimigo” precisa de nossa reflexão séria, para que retrocessos como os apontados não se estabeleçam e/ou permaneçam entre nós com a banalidade que temos testemunhado.

Já se disse que quem não conhece a história está fadado a repeti-la. O Povo que não valoriza e não conhece as suas conquistas históricas, estará fadado a perdê-las ou a vê-las definhar, pouco a pouco, pela apatia dos homens de bem ou de letras, ou pelo silêncio dos que ouvem e sabem, mais nada dizem, e nada fazem…

E nesse contexto de reflexão crítica, é preciso dizer que a democracia não é a vacina definitiva contra a volta da ditadura nem imunidade inexpugnável contra o totalitarismo. E ditaduras e totalitarismos não morrem totalmente por que delas ou de suas cinzas emergiram democracias.

Ideias e práticas democráticas assombram ditaduras (lembremos os tsunamis políticos no oriente médio desde 2013) e ideias e práticas totalitárias ou ditatoriais, convivem, cotidianamente, no seio das democracias com muita mais facilidade e sutileza (EUA, e caça ao terror; Brasil, moralidade pública superior a Constituição e seu regime de liberdades!).

Muitas vezes essas ideias são ilusoriamente vendidas como democráticas… e compradas iludidamente como tais, por amplos setores da sociedade civil, imprensa, representações de classe, movimentos sociais, partidos políticos, tribunais, etc…

Isso ocorre em sociedades nas quais o debate não é verdadeiramente livre, plurilateral, franco e democrático; onde o pluralismo das ideias é renegado em nome do moral e politicamente correto, a despeito do Direito posto; – basta ver a polarização atual, nas redes sociais, e o crescente discurso de ódio e intolerância, com a arte, a religião, a ciência, a orientação sexual, a justiça, etc, etc.

No Brasil, não podemos deixar que tais ideias tenham vida fácil perante o Tribunal da razão e da ciência.

O fiel da balança em uma Democracia, constituída em Estado de Direito, que a salvaguarda da emergência de arroubos ditatoriais ou totalitários, ou melhor, de ideias provindas desses matizes, é a existência de uma Constituição democrática e efetiva.

Tem ocorrido no Brasil, do primeiro grau de jurisdição a Suprema Corte, um forte embate, nos temas candentes ligados ao Direito Penal, ao Direito Eleitoral ou ao Direito Sancionador, etc. Embate entre magistrados moralistas e magistrados constitucionalistas.

Os moralistas seriam aqueles magistrados que olhando para a nossa Constituição e para a cena política brasileira, encontram no princípio da moralidade administrativa, no princípio da probidade, na ideia de persecução penal como supremo combate à corrupção, o maior valor a ser perseguido em quaisquer de seus julgamentos. Para esses juízes, tais ideias, somadas ao cânone de proporcionalidade entre bens em conflito (direitos individuais x moralidade, combate à corrupção), são os principais critérios que devem balizar toda a produção das leis, especialmente leis penais, materiais e processuais; notadamente a exegese lata e larga sobre tais normas do direito punitivo.

Os raciocínios moralistas dos magistrados (e operadores do direito de mesma matriz ideológica) partem de particularidades para chegarem a generalizações nada animadoras: se alguns são tão vis e indignos, é preciso todos cuidar de todos, pois muito mais o serão!

A presunção reinante é a de desconfiança do agente público, do cidadão comum investigado, entre outras violações à presunção de boa fé e ou de inocência…!

Os juízes constitucionalistas, por sua vez, são aqueles que veem na Constituição um limite ao exercício arbitrário de poderes públicos ou privados.

Para esses magistrados a Constituição tem um sistema de direitos fundamentais que deve ser observado na feitura de leis, sem qualquer exceção para as leis penais.

A vontade de Constituição é o fiel da balança a regrar a vontade popular, a vontade do legislador e a vontade judicial. Para esses magistrados, entre os direitos fundamentais respeitáveis em qualquer produção do Legislativo ou do Judiciário está a segurança jurídica, a não retroatividade das leis, a presunção de inocência, a razoabilidade da ação legislativa punitiva, o respeito à liberdade e a dignidade da pessoa humana. E mais: o sagrado direito de liberdade, de dignidade da pessoa humana, são pedras angulares de compreensão de todo nosso sistema de justiça; compreendem esses juízes o quão relevante é para o regime democrático a liberdade de ir, vir e ficar; compreendem a sua necessariedade para qualquer regime afastado da barbárie e que caminha rumo ao avanço civilizatório.

Esses juízes constitucionalistas se sustentam na razão jurídico-constitucional, para ditarem seus comportamentos e suas decisões judiciais. Para eles uma Constituição é importante também para as minorias e para conter a fúria e a paixão das maiorias, que, em dados momentos históricos, podem, sem freios constitucionais, desencadear involuções ao argumento de estatuírem progressos. Pois há épocas em que o ânimo de fazer justiça pode levar a intoleráveis injustiças, como são os justiçamentos passionais e homicidas, e algumas açodadas e levianas prisões cautelares da atualidade.

Para esses Juízes uma Constituição é seguro critério de julgamento, em grandes causas públicas na história da Nação. É o mastro de Ulysses diante do canto atraente e destrutivo das sereias. Esses homens de toga julgam para a história, e não para o momento; eles plantam carvalhos para o amanhã e não couves para as próximas semanas (Rui Barbosa). Estão mais interessados em cumprir seus deveres com independência e vigor do que “ficarem bem” perante uma opinião pública sem opinião e sem chance de reflexão séria e fundada.

A noção de moralidade pública (de matiz fascista, muitas vezes) utilizada em alguns dos discursos judiciais e midiáticos na atualidade brasileira, apesar da diferença de tempo, lugar e regime, parece ser a mesma que justificou o holocausto nazista; a prisão de Oscar Wilde; a discriminação racial que aprisionou Nelson Mandela e matou Luther King; alimentou a fúria do macarthismo no EUA e justificou atos de força e de exclusão política na era de Floriano Peixoto, Getúlio Vargas e do triunvirato militar pós 1964. Essa mesma moralidade precipitou o triste fim do Reitor Luis Carlos Cancellier e muitas outras arbitrariedades policiais, ministeriais e judiciais registradas na crônica atual.

As sirenes do estado de direito ecoam e nos dizem que nesses temas de liberdades constitucionais, que são liberdades de todos – o condomínio social das liberdades, como dizia Rui Barbosa -, independe, para ter eficácia e ganhar vida, de quem, ocasionalmente, esteja sob o pálio protetivo dessas franquias legais. Essas liberdades, como o sol que nos ilumina, são para todos, sob uma Constituição democrática.

Tenho constatado, quanto ao tema das liberdades e de suas garantias processuais e matérias, certo permissivismo judicial, um relativismo hermenêutico pernicioso, em nome de correções morais, em nome de recortes moralistas feitos por operadores do direito, juízes, promotores e mesmo colegas advogados, que procuram, manuseando princípios, standards, cláusulas gerais, corrigir pretensas “falhas do legislador” e atender ao clamor das ruas.

Essas posturas dão vida a antigas práticas autoritárias, fascistas, contrárias à ambiência democrática e ao regime de direitos e liberdades constitucionalmente posto.

Nesse mesmo clima, que assume ares antidemocráticos, temos vistos juízes serem criticados por cumprirem seus deveres constitucionais de proteger essas liberdades asseguradas na Constituição e em Tratados Internacionais e normas legais. Como já disse o Ministro Asfor Rocha, ex-presidente do STJ, se no passado juiz corajoso era o que condenava, no presente, corajoso é o que absolve ou liberta ou deixa de atender requerimento policial ou ministerial, por que estão sem fundamento legal hábil.

Desde a disseminação de práticas policiais e investigativas nada ortodoxas, em que pessoas são presas para darem seus depoimentos contra a garantia de autoincriminação; outras são condenadas por indícios, sem provas cabais, imersas em dúvidas razoáveis; outras ainda, estimuladas a acordos ministeriais-policiais irrazoáveis e mesmo imorais (caso da JBC), sob a ameaça de enormes condenações; conduções coercitivas desnecessárias (caso Lula); prisões espetaculosas (caso Cancellier); afastamentos de cargos públicos sem a devida motivação exigida pelas leis de improbidade ou do processo penal.

Com tudo isso, devemos enfatizar e reenfatizar: as sirenes do Estado de Direito estão soando o alerta há algum tempo. Mas a comunidade jurídica ainda transita tranquila pelo convés, enquanto o titanic da constitucionalidade está a afundar, após ter se chocado contra o "iceberg" do arbítrio policial, ministerial ou judicial (advindo de alguns setores dessas importantes instituições) e da banalização dos direitos e garantias fundamentais.

A comunidade jurídica, que tem o papel de consciência jurídica da Nação, não pode se calar diante de atos desta natureza, que tem sido a tônica diária da crônica jornalística.

Precisamos lembrar que para tais retrocessos e abusos, que devem ser debelados, refletidos, não temos os problemas do passado ou de outros países. Pois não dispomos, no Brasil, de grupos paramilitares que tentam sublevar-se contra a governança civil; não temos grupos extremistas que queiram instituir a supremacia racial ou separatismo a lá Eta (em Espanha); não temos insurgência militar nos quartéis, como mostra nossa história republicana; não temos um ditador a frente dos negócios de estado, como na Venezuela.

O que temos é o silêncio da comunidade jurídica, a passividade de alguns setores do judiciário em cumprir seu papel de terceiro imparcial e guardião da ordem democrática, notadamente no que toca aos direitos e garantias individuais, sobretudo as penais; o que temos é uma mídia que fatura sobre a desgraça e opróbrio do justiçamento sumário e inapelável de meros investigados; temos uma disputa entre poderes, que colocam em campo de batalha, de um lado, os "sem mandato", e de outro, os "com mandato"; temos uma demonização crescente das instituições democráticas, por quem tem a missão de defender o regime democrático e seus consectários.

Devemos persistir e lutar, e não olvidar as lições desse alerta, nessa esgrima em defesa da legalidade democrática. A morte do reitor Cancellier não pode ser em vão!

A prisão provisória e afastamento do Reitor da UFSC, foi exagerada e completamente desnecessária.

Seu ato reitorial de avocação de autos de controle interno era presumido legal, segundo a dogmática jusadministrativa, gozava de presunção de boa fé e legalidade, e não tinha a natureza de intervenção em inquérito policial ou ação penal. Única intervenção, que fosse ilegítima, poderia justificar sua segregação momentânea.

Isso demonstra, entre tantos outros casos, o alerta do Estado de Direito em perigo. Assim, é justo que o projeto de lei de abuso de autoridade seja chamado de Lei Cancellier, como divulgou o Senador Relator Roberto Requião.

Todas as críticas produzidas contra a açodada prisão e afastamento do Reitor, antes e depois de sua morte, merecem a nossa atenção e reflexão. Pois revelam a dimensão do perigo, do alerta, de nosso Estado de Direito que afundará, se a consciência jurídica da Nação, se a atuação oportuna e eficaz dos operadores do Direito não buscar a mudança e superação desse pérfido estado de coisas inconstitucionais, no seio das atividades persecutórias penais praticadas na atualidade.

 


[1] Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999. 81 p, p. 47-74.

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