Lições da audiência de interrogatório
do ex-presidente Lula
14 de maio de 2017, 8h00
O ato processual, dos mais rotineiros, adquiriu simbolismo ímpar, por ter o denunciado ocupado o mais alto posto da República e por ter manifestado, publicamente, seu desejo de disputar as eleições presidenciais no ano de 2018. A audiência acabou tendo uma repercussão incomum, não sendo demais afirmar que foi o ato judicial mais comentado e acompanhado de toda a história do Brasil.
Todos os meios de comunicação se fizeram presentes. Caravanas de partidários do ex-presidente, oriundas muitas vezes de locais distantes e até de outros países (como Bolívia), chegaram à capital paranaense. O juiz Sergio Moro, em atitude inédita, através de vídeo, pediu aos que fossem contrários ao ex-presidente que não viessem a Curitiba, a fim de evitar conflitos. Comerciantes das imediações da Justiça Federal fecharam suas portas. O município requereu em Juízo a proibição de que os forasteiros acampassem nas ruas, sendo a liminar deferida. Advogados do réu insistiram no adiamento do ato, sem sucesso. Expostos os fatos, vejamos os resultados.
O interrogatório em Curitiba
O processo criminal tramita em Vara Federal Criminal de Curitiba. Lula da Silva tentou ser ouvido por vídeo conferência, no local de seu domicílio. O pedido foi corretamente indeferido. Nada justificaria um tratamento diferenciado ao dado a centenas de réus processados na mesma vara. O interrogatório é um ato de rotina. No Brasil o réu pode ficar calado ou mentir à vontade. Portanto, como se faz todos os dias em diversos pontos do território nacional, no juízo processante é que o réu deve ser interrogado. Se fosse aberta exceção nesse processo, ela teria que ser estendida a outros, no futuro.
Apoio de movimentos sociais
O ex-presidente Lula da Silva não é um réu comum. Carismático, único líder com possibilidade de unir a esquerda no Brasil, pretendente ao cargo de presidente nas eleições de 2018, teria a dar-lhe suporte uma grande quantidade de pessoas, inclusive de locais distantes.
Boa parte dos que viajaram a Curitiba pertenciam a movimentos sociais. Nisto não há nada de errado. Os movimentos sociais constituem a única forma de manifestação para pessoas de reduzido poder econômico. E as reuniões são permitidas pelo artigo 5º, inciso XVI da Constituição, sob a única condição, como lembra José Afonso da Silva[1]: de que se dê prévio aviso à autoridade. Não é preciso pedir autorização, apenas se comunica. Portanto, é um direito de todos brasileiros protestar contra o que quer que seja e, consequentemente, tinham e têm, os que apoiam a política do ex-presidente, direito de manifestar-se.
Protestos, conflitos e segurança pública
O direito constitucional de manifestação nada tem a ver com agressões, lançamento de objetos ou destruição do patrimônio público ou particular. Absolutamente nada. O que se viu em diversas manifestações no Rio de Janeiro, São Paulo, Vitória, Natal e outras cidades, não tem qualquer justificativa e deve ser reprimido com o rigor da prisão preventiva. Veja-se, por exemplo, o vídeo da agressão de manifestantes do grupo de black blocs contra um coronel da PM de SP[2], em 2013. Óbvio que tal conduta nada tem a ver com o direito de manifestação.
Pois bem, dentro e fora da audiência realizada em Curitiba, tudo transcorreu na mais absoluta normalidade. As forças da Segurança Pública agiram entrosadas. Polícia Militar, Civil, Federal, Rodoviária Federal, Forças Armadas, Guarda Municipal e outros órgãos, atuaram de maneira coordenada. Chegou-se a extremos, como a presença de um atirador de elite no alto de um prédio próximo ao Fórum Federal e helicóptero sobrevoando a região. Os manifestantes de grupos opostos ficaram em locais distintos. Com a exemplar atuação dos órgãos públicos, o resultado foi o direito de manifestação assegurado a todos os que desejaram exteriorizar suas crenças, sem qualquer destruição do patrimônio público ou particular e o transcurso da audiência de forma regular. Perfeito.
O interrogatório do ex-presidente
Ato banal em qualquer ação penal, o interrogatório de Lula da Silva revestia-se de enorme importância, por motivos óbvios. O ato jurídico mesclava-se com o político, olhos postos nas eleições presidenciais de 2018. O prédio da Justiça Federal ficou absolutamente protegido. Nas suas proximidades, nem moradores entravam se não estivessem cadastrados previamente junto à Segurança. Servidores tiveram que trabalhar em casa, via processo eletrônico. O ex-presidente depôs por cinco horas, com total liberdade. Deu as explicações para cada acusação que lhe era feita, aproveitou para lembrar suas virtudes e, aproveitando o momento, anunciou a sua candidatura à presidência. Tudo conforme seu temperamento.
A postura do juiz federal Sérgio Moro
O juiz Sérgio Moro conduziu os trabalhos com postura elogiável. Em todos os momentos deu ao denunciado o tratamento que lhe era devido (“senhor ex-presidente”), não apenas como ser humano, mas também por ter sido o supremo magistrado da República. Em nenhum momento mostrou-se irritado com interrupções ou críticas. Não vulgarizou o ato solene permitindo ou participando de gracinhas (por exemplo, quando o interrogando disse que as mulheres não diziam aos maridos o que compravam). Com o mesmo tom de voz, cumpriu o papel que lhe foi dado pelo Estado, revelando segurança emocional incomum.
O surpreendente gesto do experiente advogado
As demais ocorrências e manifestações transcorreram todas dentro do esperado. Surpreendeu, contudo, a manifestação do advogado René Dotti, contratado pela Petrobras para atuar como assistente da acusação. Irritado com as seguidas intervenções de um dos advogados do réu, o professor Dotti deu-lhe uma lição sobre a necessidade de respeitar-se a figura do magistrado. Esta manifestação veio reforçada pela condição de alguém que, com 83 anos, exerce a advocacia há décadas e que sempre defendeu as prerrogativas da classe, além de ser professor universitário, um dos autores da parte geral do Código Penal, autor de dezenas de livros, centenas de artigos e palestrante internacional. A admoestação viralizou nas redes sociais.[3]
Em conclusão
O receio de atos de vandalismo, lutas de grupos armados, excessos na ação policial e outros atos de perigo, revelou-se infundado. O interrogatório foi feito dentro das regras processuais, o clima foi de tranquilidade e à noite os partidários do réu reuniram-se na Praça Santos Andrade para poder manifestar-se. As ações para que se chegasse a este resultado ficaram registradas em vídeos e serão, no futuro, objeto de estudos acadêmicos. Foram lições que provam ter o Brasil competência para bem conduzir atos judiciais de grande importância e administrar civilizadamente as suas diversidades.
[1] Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros, 40. ed., p. 267.
[2] https://www.youtube.com/watch?v=EpcRdSIN8cYovimento Black Blocks , acesso em 12/2/2014.
[3] https://www.youtube.com/watch?v=3EgOFG_5K6k, acesso em 13/05/2017.
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