Opinião

Fundamentação exauriente do novo CPC não se aplica a juizados especiais

Autor

  • Francisco Glauber Pessoa Alves

    é juiz federal do Rio Grande do Norte. Doutor e mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) do Instituto Potiguar de Processo Civil (IPPC) e do TRE-RN (biênio 2017-2019).

14 de maio de 2017, 6h26

A fundamentação judicial é direito do jurisdicionado e dever do magistrado, com berço constitucional (artigo 93, IX) muito bem definido (ALVES, 2015, passim). A importância da matéria é reforçada na tradição constitucional lusitana (CANOTILHO et al., 2013, 1324). Esse elevado status da fundamentação já era reconhecido pelo festejado lente em sua obra clássica sobre a Constituição portuguesa (1999, p. 621).

Como reflexo disso, a processualística brasileira incorporou dita preocupação, erigindo a devida fundamentação como inerente ao Estado Democrático de Direito, por garantir a controlabilidade da atividade jurisdicional (ARRUDA ALVIM WAMBIER, 2005, p. 292; NERY JR. e NERY, 2015, p. 1.153). Até mesmo uma inspiração política foi destacada, possibilitando transparência, impugnação e controle pela sociedade em geral (CINTRA, 2000, p. 274; MIRANDA, 1997, p. 74)[1], acentuando Moreira (1978, p. 116) ser a fundamentação uma garantia de imparcialidade do magistrado.

Obra clássica de Taruffo, datada de 1975, divisou as funções endoprocessual e extraprocessual da motivação (2005, p. 167-168[2]). A primeira, enquanto requisito técnico, assegurando que a motivação é útil a) à parte que pretenda impugná-la, porque o conhecimento da motivação da decisão facilita a individuação do erro e b) ao juízo de impugnação (recursal, mais apropriadamente quanto ao direito brasileiro) porque viabiliza o reexame da decisão impugnada. A segunda dá ensejo a) ao controle externo das razões de motivação, b) à indução ao julgador de demonstrar a validade racional de suas razões frente ao sistema jurídico e c) à demonstração da eficácia persuasiva do precedente invocado como razão de decidir. Daí sua importância também para a decisão que não mais desafia recurso, como expressão da máxima garantia de justificação, o que já há décadas era no Brasil ressaltado (MOREIRA, 1978, p. 118).

Porém, não exigia o CPC de 1973 fundamentação exauriente, admitindo-se-a sucinta. Isso era da doutrina, no sentido de que “(…) as motivações concisas, que deixam entrever as razões pelas quais o magistrado optou por uma dada solução, não ostentam a mácula da inconstitucionalidade” (NOJIRI, 2000, p. 119) e também da jurisprudência, para quem a “(…) Constituição não exige que a decisão seja extensamente fundamentada. O que se exige é que o juiz ou tribunal dê as razões de seu convencimento” (STF, 2ª Turma, rel. min. Carlos Velloso, AI 162.089-8-DF, DJU 15/3/1996, p. 7.209).

Essa perfeita calibração era tida em duas proposições conciliáveis: a sentença pode até ser omissa quanto ao que não é essencial, mas jamais quanto ao essencial. Há de se recordar, mais uma vez, as preciosas lições de Taruffo (2005, p. 169-171), ao asseverar a importância do magistrado demonstrar racionalmente (= justificação racional da decisão), não interessando, contudo, a formulação (= processo mental que conduziu o juiz a essa ou aquela decisão). Importa, assim, a obrigação ao juiz de “(…) una giustificazione razionale della sua decisione” (TARUFFO, 2005, p. 169).

Já de muito tempo eram criticadas as decisões que não enfrentariam todas as teses suficientes a influenciar o resultado do julgamento, tidas por insuficientes — ao que alguns já então equiparavam à ausência de fundamentação[3]. Não havia, porém, pleno acatamento jurisprudencial dessa linha de argumentos, a partir de acórdãos vazados, no mais das vezes, na seguinte dicção: 1) "tendo o Tribunal de origem se pronunciado de forma clara e precisa sobre as questões postas nos autos, assentando-se em fundamentos suficientes para embasar a decisão, não há falar em afronta ao art. 535, II, do CPC, não se devendo confundir fundamentação sucinta com ausência de fundamentação" (REsp 763.983/RJ, rel. min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJ 28/11/2005) (STJ, 1ª Turma, AgRg no AREsp 12.346/RO, rel. min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 26/8/2011); 2) “(…) tendo encontrado motivação suficiente para fundar a decisão, não fica o órgão julgador obrigado a responder, um a um, todos os questionamentos suscitados pelas partes, mormente se notório seu caráter de infringência do julgado. Precedente: 1ª Turma, AgRg no AREsp 12.346/RO, rel. min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 26/8/2011” (STJ, 1ª Seção, REsp 1.104.184/RS, rel. min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 8/3/2012). É, aliás, deveras conhecida a frase de Winston Churchill: "Das palavras, as mais simples: das mais simples, a menor".

Assim, havendo fundamento suficiente (ou seja, o inverso do fundamento insuficiente), ainda que único e mesmo que os demais argumentos invocados na inicial ou na defesa não sejam enfrentados, para o julgamento de procedência ou de improcedência, deve ser entendida como devidamente motivada a decisão.

O CPC de 2015 trouxe uma nova técnica de fundamentação da decisão judicial, contida nos artigos 10 e 489 do CPC. Já discorremos longamente sobre o assunto em outro momento (2015, passim), e não é essa a quadra para retornar a ele com vagar sem incorrermos em redundância. Para fins deste comentário, basta-nos o que segue. Cuida-se de um reforço da exigência constitucional (artigo 93, IX da CF), incorporando a concepção de fundamentação exauriente (ou completa) e abandono da fundamentação suficiente, conceito que pode ser reproduzido em jurisprudência clássica, no sentido de que “Constituição não exige que a decisão seja extensamente fundamentada. O que se exige é que o juiz ou tribunal dê as razões de seu convencimento” (2ª Turma, rel. min. Carlos Velloso, AI 162.089-8-DF, DJU 15/3/1996, p. 7.209).

O artigo 93, IX da Constituição Federal demanda a presença da devida fundamentação das decisões judiciais (acórdãos, sentenças e decisões interlocutórias). Aos juizados especiais, de igual constitucionalidade (artigo 98, I), foi autorizado (o que inalterado pelo CPC de 2015) um panorama próprio de fundamentação, previsto na Lei 9.099/95. Segundo ele: a) a sentença mencionará os elementos de convicção do juiz, com breve resumo dos fatos relevantes ocorridos em audiência, dispensado o relatório (artigo 38); b) o julgamento em segunda instância constará apenas da ata, com a indicação suficiente do processo, fundamentação sucinta e parte dispositiva (artigo 46, primeira parte); c) se a sentença for confirmada pelos próprios fundamentos, a súmula do julgamento servirá de acórdão (artigo 46, segunda parte).

A vinda do CPC não trouxe qualquer mudança na legitimidade desse modelo de fundamentação bem específico. Ele é justificado na perspectiva dúplice de se prestar (1) às decisões em causas de menor complexidade e, a partir daí, (2) garantir que essas causas sejam celeremente processadas. Jamais se defendeu com alguma densidade ou frequência a inconstitucionalidade desse modelo, cuja base sempre foi a Constituição Federal (artigo 98, I) e não o CPC. Muito pelo revés, assentou o STF em vários precedentes, inclusive em sede de repercussão geral, que “(…) não viola a exigência constitucional de motivação a fundamentação de turma recursal que, em conformidade com a Lei nº 9.099/95, adota os fundamentos contidos na sentença recorrida” (STF, 2ª T., RE 724.151-AgR, rel. min. Cármen Lúcia, DJe 28/10/2013; STF, 1ª T., ARE 718.596 AgR/RJ, rel. min. Dias Toffoli, DJe 15/3/2013; STF, Plenário Virtual, RE 635.729/SP-RG, rel. min. Dias Toffoli)[4].

Temos, portanto, que por força dos princípios da simplicidade, celeridade, informalidade e economia processual (artigo 1º da Lei 9.099/95), não se exige, nos juizados especiais, uma fundamentação tão rígida quanto a prevista no CPC (artigo 489), conquanto ela deve ser bastante, clara, ciosa do enfrentamento mínimo das questões de fato e de direito da lide. A escorreita fundamentação (TARUFFO, 2005, p. 167-168[5]) é fator de legitimação interna (impugnabilidade pelas partes e conhecimento das razões de decidir pela instância ad quem — função endoprocessual) e externa (conhecimento pela sociedade dos argumentos judicialmente utilizados, indução do julgador à demonstração da validade racional de suas razões frente ao sistema jurídico e à demonstração da eficácia persuasiva do precedente invocado como razão de decidir — função extraprocessual), e tais funções são perfeitamente atingíveis nos juizados especiais. Assim, havendo fundamento suficiente (ou seja, o inverso do fundamento insuficiente), ainda que único e mesmo que os demais argumentos invocados na inicial ou na defesa não sejam enfrentados, para o julgamento de procedência ou de improcedência, deve ser entendida como devidamente motivada a decisão.

Nesse condão, entendemos não ser aplicável a disciplina dos artigos 11 e 489 do CPC aos juizados especiais, por já comportarem estes um modelo próprio e de fundamentação de assentamento constitucional. Pela inaplicabilidade: Donizetti (2015, p. 94-97); Oliveira (2015, p. 101-103). Contrariamente, é verdade: Silva (2015, p. 511); SCHMITZ (2015, p. 524).

Há uma forte sinalização quanto à inaplicabilidade aos juizados especiais a partir das seguintes perspectivas: Enunciado 162 do Fonaje ("Não se aplica ao Sistema dos Juizados Especiais a regra do art. 489 do CPC/2015 diante da expressa previsão contida no art. 38, caput, da Lei 9.099/95"), Enunciado 153 do Fonaje ("A regra do art. 489, parágrafo primeiro, do NCPC deve ser mitigada nos juizados por força da primazia dos princípios da simplicidade e informalidade que regem o JEF"), Enunciado 10 da Enfam ("A fundamentação sucinta não se confunde com a ausência de fundamentação e não acarreta a nulidade da decisão se forem enfrentadas todas as questões cuja resolução, em tese, influencie a decisão da causa") e Enunciado 47 da Enfam ("O art. 489 do CPC/2015 não se aplica ao sistema de juizados especiais"). Contrariamente, Enunciado 309 do FPPC ("O disposto no § 1º do art. 489 do CPC é aplicável no âmbito dos Juizados Especiais").


[1] “Mais modernamente, foi sendo salientada a função política da motivação das decisões judiciais, cujos destinatários não são apenas as partes e o juiz competente para julgar eventual recurso, mas quisquis de populo, com a finalidade de aferir-se em concreto a imparcialidade do juiz e a legalidade e justiça das decisões” (CINTRA, 2000, p. 274; MIRANDA, 1997, p. 74).
[2] A obra de Taruffo foi originalmente publicada em 1975, em Pádua (Itália). Por se tratar de referência, ela continua a ser estudada e, eventualmente, republicada. Aqui, trabalhamos com republicação do ano de 2005.
[3] “Pode-se dizer, que há, grosso modo, três espécies de vícios intrínsecos das sentenças, que se reduzem a um só, em última análise: 1. ausência de fundamentação; 2. deficiência de fundamentação; e 3. ausência de correlação entre fundamentação e decisório.
Todas são redutíveis à ausência de fundamentação e geram nulidade da sentença. Isto porque 'fundamentação' deficiente, em rigor, não é fundamentação, e, por outro lado, 'fundamentação' que não tem relação com o decisório não é fundamentação: pelo menos não o é daquele decisório” (ARRUDA ALVIM WAMBIER, 2005, p. 249).
[4] Igualmente: “Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. PROCESSUAL CIVIL. CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO. TRANSPORTE PÚBLICO. CONFIGURAÇÃO DE DANO MORAL. ACÓRDÃO QUE MANTÉM A SENTENÇA PELOS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. POSSIBILIDADE. RE 635.729-RG. ALEGADA VIOLAÇÃO AO ARTIGO 93, IX, DA CF/88. INEXISTÊNCIA. 1. O acórdão proferido por Colégio ou Turma Recursal que adote os fundamentos da sentença não afronta o art. 93, IX, da Constituição, consoante decidido pelo Plenário Virtual do STF, na análise do RE 635.729, Rel. Min. Dias Toffoli. 2. O magistrado não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos trazidos pela parte, desde que os fundamentos utilizados tenham sido suficientes para embasar a decisão. Precedentes: AI 783.503-AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, DJe 16/9/2014, e RE 724.151-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe 28/10/2013. 3. A decisão judicial tem que ser fundamentada (art. 93, IX), ainda que sucintamente, sendo prescindível que a mesma se funde na tese suscitada pela parte. Precedente: AI-QO-RG 791.292, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe de 13/8/2010. 4. In casu, o acórdão recorrido manteve a sentença, por seus próprios fundamentos, a qual condenou a agravante por danos morais com fundamento na responsabilidade objetiva da concessionária de serviço público de transporte coletivo. 5. Agravo regimental DESPROVIDO” (STF, 1ª. T., ARE 804778 AgR/MG, rel. min. Luiz Fux, DJe 29/10/2014).
[5] A obra de Michele Taruffo foi originalmente publicada em 1975, em Pádua (Itália). Por se tratar de referência, ela continua a ser estudada e, eventualmente, republicada. Aqui, trabalhamos com republicação do ano de 2005.


Referências
ALVES, Francisco Glauber Pessoa. Fundamentação judicial no novo Código de Processo Civil. Revista CEJ. Brasília: Conselho da Justiça Federal, ano XIX, n. 67, p. 58-77, set.-dez/2015.
ARRUDA ALVIM WAMBIER, Tereza. Omissão judicial e embargos de declaração. São Paulo: RT, 2005.
CANOTILHO, J.J. Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo. Comentários ao Código de Processo Civil. Volume IV. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
DONIZETTI, Elpídio. A corte dos homens pobres e a principiologia do CPC/2015: o que serve ou não aos juizados especiais? In: REDONDO, Bruno Garcia et al. Juizados Especiais. Salvador: Editora Jus Podivm, 2015.
MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo V. 3ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1997.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado de Direito. Revista Brasileira de Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense, v. 16, p. 111-125, 4º. Trim. 1978.
NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015.
NOJIRI, Sérgio. O dever de fundamentar as decisões judiciais. 2ª. ed., São Paulo: RT, 2000.
OLIVEIRA, Eduardo Perez. O dever de motivação das sentenças no Novo CPC – impacto no microssistema dos juizados especiais (cíveis, federais e da Fazenda Pública). Magistratura. Coleção Repercussões do Novo CPC. Vol. 1. In: GAJARDONI, Fernando (org.). Salvador: Editora Jus Podivm, 2015.
SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Confirmar a sentença por seus “próprios fundamentos” não é motivar: a influência normativa do art. 489, § 1º do CPC/15 sobre o art. 46 da Lei 9.099/95. In: REDONDO, Bruno Garcia et al. Juizados Especiais. Salvador: Editora Jus Podivm, 2015.
SILVA, Augusto Vinícius Fonseca e. Repercussão dos arts. 11 e 489, § 1º do Novo Código de Processo Civil nas sentenças dos Juizados Especiais Cíveis. In: REDONDO, Bruno Garcia et al. Juizados Especiais. Salvador: Editora Jus Podivm, 2015.
TARUFFO, Michele. La motivazione della sentenza. IN: MARINONI, Luiz Guilherme (coord.). Estudos de Direito Processual Civil. São Paulo: RT, 2005.

Autores

  • é juiz federal presidente da Turma Recursal da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Potiguar de Processo Civil (IPPC).

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