Ideias do Milênio

"China não está pronta para ser esse líder global que todos esperam"

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30 de dezembro de 2017, 8h45

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Entrevista concedida por David Shambaugh, professor da Universidade George Washington, ao jornalista Marcelo Lins para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (17h30), quartas (15h30), quintas (6h30) e domingos (14h05).

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E nesse mundo de nacionalismos exacerbados onde a superpotência mundial, os Estados Unidos, sob Donald Trump, vem adotando uma postura cada vez mais isolacionista, um outro ator vem ganhando cada dia mais importância. E não é para menos. Estamos falando, claro, do gigante chinês. E para entender um pouco melhor em que ponto está a China agora e para onde vai esse gigante, o Milênio recebe hoje o professor David Shambaugh, um dos maiores especialistas em China do Ocidente, por que não dizer, do mundo todo. Professor da Universidade George Washington, com mais de 40 anos de experiência estudando a China, David Shambaugh conversa com a gente aqui hoje.

Marcelo Lins — Professor, eu gostaria de começar com uma pergunta ampla: qual foi a 1ª coisa que lhe chamou a atenção em relação à China e por que o senhor decidiu há tanto tempo se aprofundar nos estudos sobre a China?
David Shambaugh —
É uma ótima pergunta. Há 40 anos, eu era estudante universitário e tirei um ano sabático no meio da faculdade para viajar pelo mundo. Perto do final da viagem, cheguei a Hong Kong. Isso foi em 1974, e a China não era aberta a estrangeiros, ainda estava no meio da Revolução Cultural. Eu fui até a fronteira entre Hong Kong e o continente e olhei na direção daquela terra negada, negada a ocidentais. Alguns estrangeiros podiam entrar na China, mas não muitos. Só o enigma da China, com um quarto da população mundial, um país imenso, mas completamente isolado do mundo e passando por aquele trauma que hoje conhecemos chamado Revolução Cultural… Foi a primeira coisa que me chamou a atenção. Depois que voltei à universidade, tive ótimos professores. Tive a sorte de estar no lugar certo na hora certa, porque em 1979, quando os EUA e a China estabeleceram relações diplomáticas, eu já estava na pós-graduação e fiz parte do primeiro grupo de estudantes americanos que foi para a China. Ao longo dos anos 1980, passei muitos anos na China como estudante, então foi uma mistura de bons professores e muita sorte.

Marcelo Lins — Um dos desafios da China hoje é que, para reformar sua economia, o país também precisa reformar sua política, mas não vemos nenhum sinal nessa direção. O que acha que vai acontecer num futuro próximo com a economia chinesa?
David Shambaugh —
O desafio da economia chinesa é mudar o modelo de crescimento de substituição de importações e o que chamamos de investimentos em ativos fixos por infraestrutura. E tem sido um sucesso tremendo nas últimas quatro décadas. Quando fui à China pela primeira vez, era uma sociedade muito retrógrada. Hoje, é uma sociedade moderna em muitos aspectos. A transformação física é muito impressionante. Eles derramaram muito concreto. Mas o desafio agora é qualitativo, subir na cadeia de valor agregado, ser uma economia e uma sociedade mais inovadora e criar novas indústrias no setor de serviços, por exemplo, de consumo doméstico. A China está enfrentando a armadilha da renda média. Ela está na armadilha da renda média. Segundo o Banco Mundial, 110 países desde 1960 caíram nessa armadilha e apenas 12 deles saíram dela. E todos eles se tornaram algum tipo de democracia nesse processo de transição. Então a sua pergunta é muito boa. Você tem toda a razão: não há sinal de liberalização nem de democratização na China. Pelo contrário. Com Xi Jinping, houve aumento da repressão e do controle.

Marcelo Lins — O poder de Xi Jinping só é comparável ao que Mao Tsé-Tung teve em sua época. Quais são os perigos de centralizar tanto poder em uma só pessoa para um país como a China?
David Shambaugh —
Xi Jinping é o governante mais poderoso da China desde Mao Tsé-Tung. Mas ele não é tão poderoso quanto Mao foi. O sistema de Mao era totalitário, um culto completo à personalização. Ele dominava a vida do país. Xi Jinping não domina completamente a vida do país no nível que Mao dominava. Mas ele é um governante poderoso, sem dúvida. Ele mudou a natureza da elite política do que Deng Xiaoping… Deng Xiaoping chegou ao poder depois de Mao e disse: 'Nunca mais teremos uma era maoísta', porque ela foi catastrófica para a China em termos de desenvolvimento econômico, social, político… A era maoísta, pelo menos de 1956 a 1976, os últimos 20 anos, foi terrível. Deng Xiaoping chega ao poder rejeitando isso: 'Temos de ter uma liderança coletiva e consensual. Deve haver limites de mandato'. E, como você disse, parece que Xi Jinping — só vamos saber em cinco anos —, mas parece que ele vai ficar além desse próximo mandato de cinco anos. Ele teria designado um sucessor no último congresso se fosse seguir as regras e sair em cinco anos. Ele não designou um sucessor, concentrou todo o poder em si mesmo, em sua própria pessoa, e você perguntou bem: isso é bom para a China? Não sou chinês, então não devo fazer juízo de valor, mas é uma reversão das últimas quatro décadas, e não acho isso particularmente bom para a vida política do país.

Marcelo Lins — Já ouvimos Xi Jinping em seus longos discursos frisando a importância de reformas. Ao mesmo tempo, vemos o crescimento da repressão a liberdades individuais, contra movimentos separatistas ou de independência como o de Hong Kong. É interessante ele equilibrar essas duas coisas ou realmente veremos uma China mais repressora como foi no fim dos anos 1980, com a repressão na Praça da Paz Celestial? Podemos ver a repetição daquele tipo de coisa?
David Shambaugh —
Xi Jinping fala sobre reformas ocasionalmente. Nem tanto. Se ler o discurso dele de três horas e meia, vai achar pouquíssimas referências ao termo em chinês para “reforma”. Ele usa principalmente no contexto de reforma econômica. Em nenhum momento do discurso o termo “reforma política” aparece. Ele não menciona sequer “reforma social”. Ou seja, ele fala em reforma, mas não concretiza o que diz. Não houve muitas reformas nos últimos cinco anos na China, nem na economia. Há quatro anos, o próprio Xi Jinping anunciou um pacote imenso de reformas econômicas na terceira sessão plenária, em novembro de 2013. Era um plano muito ambicioso, necessário e bem elaborado de reforma econômica. O Banco Mundial ajudou a China a elaborá-lo. Eram 65 categorias, 350 reformas individuais. O que a China precisava para sair da armadilha da renda média. Agora, quatro anos depois, a maioria dos observadores acha que no máximo 10% foram implementados. Portanto, Xi Jinping não fez nenhuma reforma econômica real, não fez uma reforma social. O chamado sistema Hukou de migração não foi reformado e também não houve reforma política. Houve um retrocesso através da repressão do sistema. Você tem razão, a China hoje está em sua fase mais repressora desde o incidente na Praça da Paz Celestial, em 1989.

Jornal Nacional (26/12/1993): “Este jovem, em um ato solitário de coragem, quis impedir a passagem das tropas e chegou a subir em um tanque. A Praça da Paz Celestial foi transformada em zona de guerra. Soldados atiram contra a população desarmada que foge em pânico.”

Marcelo Lins — Duas imagens chamam minha atenção. Uma é que Xi Jinping se reúne muito mais com outros líderes mundiais do que os presidentes anteriores, e a outra é a imagem que a propaganda oficial divulga ao mundo de Xi Jinping reforçando as Forças Armadas chinesas. Ele está sempre visitando tropas em ocasiões militares. Como podemos interpretar essas duas novas imagens?
David Shambaugh —
Novamente, você tem toda a razão. Nas relações exteriores chinesas, vemos o país e o próprio Xi Jinping muito mais ativos no palco mundial. E isso é positivo. Queremos a China envolvida em assuntos mundiais. A China era muito ambivalente, é importante dizer, antes de Xi Jinping. Ela participava até certo ponto, “pegava carona”, como dizemos, no sistema de governança global. Xi Jinping merece crédito, pois incrementou a participação da China em contribuições para bens públicos globais, na governança global, na estabilidade econômica mundial, na manutenção da paz, ações contra pirataria, aquecimento global… Não haveria o Acordo de Paris sem os chineses e os americanos. O atual presidente americano é outra história. A China deixou de pegar carona. Xi Jinping entende bens públicos, ele sabe que a China é uma potência mundial e contribui para a comunidade internacional como uma grande potência e ele próprio, como você disse, viaja muito e recebe dignatários estrangeiros. Eu daria cinco estrelas à China no quesito diplomacia. Eles se saíram muito bem sob Xi Jinping.

Marcelo Lins — Nós não mencionamos a relação da China com as outras grandes economias emergentes. Podemos falar sobre os Brics: Brasil, Rússia, Índia e África do Sul. Como o senhor vê essas relações hoje? Acha que elas já tiveram mais importância? É isso que algumas pessoas acham no Brasil. E o que podemos esperar para o futuro?
David Shambaugh —
Eu incluiria entre os Brics a Indonésia e talvez até a Tailândia, outras economias emergentes médias. Mas, entre os Brics, a relação entre a China e a Rússia é sem dúvida a melhor entre os cinco membros. O relacionamento é muito forte em todos os níveis. A relação entre a China e a Índia não é muito boa. Na verdade, há muitas tensões, tensões profundas, na relação bilateral entre China e Índia. A relação entre China e África do Sul é distante, não é particularmente próxima. Não quero caracterizar a relação entre a China e o Brasil e interferir nos assuntos internos do Brasil, mas ela parece ser bem forte, positiva e boa. Muitos esforços foram feitos por Lula, Dilma e pelo presidente atual nessa relação. Houve uma visita oficial do presidente atual há poucos meses relacionada à Cúpula dos Brics, na China, e eu soube que ele fará uma viagem ao Sudeste Asiático nos próximos meses. Então, claramente, o Brasil está priorizando a Ásia e a China em suas relações diplomáticas, o que é bom. E, até onde sei, a relação bilateral é bem forte. Os Brics são uma organização interessante. Não sei se é muito influente nos assuntos globais, mas, dos cinco membros, três são democracias e dois não são. E a questão é se as duas não democracias, Rússia e China, serão capazes de conduzir os Brics numa direção menos liberal ou se as três democracias — África do Sul, Índia e Brasil — vão conduzir o grupo numa direção mais liberal. Essa é uma questão em aberto, ou seja, a política dos Brics, não só a economia.

Marcelo Lins — Acha que a China está disposta a fazer mais para apaziguar os temores do mundo em relação à Coreia do Norte ou é de alguma forma bom para a China esse problema da Coreia do Norte existir para lembrar os EUA que eles não estão sozinhos no mundo e que podem ser ameaçados até por um país pequeno como a Coreia do Norte? Qual é a sua opinião sobre a relação entre China e Coreia do Norte?
David Shambaugh —
Não é uma relação muito boa. Ela nunca foi boa. Durante todas essas décadas, a Coreia do Norte é uma grande dor de cabeça para a China. Os chineses nunca se deram muito bem com o regime depois que Kim Il-sung faleceu. Toleraram Kim Jong-il e não toleram este de agora, Kim 3.0, ou Kim Jong-un. As relações são muito tensas. Em segundo lugar, eles não querem uma Coreia do Norte nuclear. Eles trabalharam dentro da estrutura da ONU e do Grupo dos Seis no sentido de impedir que o programa nuclear se desenvolvesse. Fracassaram, assim como outros membros da comunidade internacional, e também concordaram com sanções internacionais. A contragosto, mas eles aderiram a elas. O que eles não querem é que o regime imploda e entre em colapso à sua porta. Eles não querem o fim político de outro partido comunista, não querem a consequência social de milhões de refugiados entrando na China e não querem a responsabilidade econômica de ter de ajudar a pagar a reconstrução da Coreia do Norte. Por fim — essa é a principal questão para os chineses —, eles não querem uma península da Coreia unificada com uma aliança americana e forças militares americanas à sua porta. Por esses motivos, continuam tolerando e sustentando o regime norte-coreano. Eles não gostam do regime, mas preferem isso a uma Coreia unificada e aliada aos EUA.

Marcelo Lins — Conhecemos as conquistas da economia chinesa nos últimos 70 anos, mas também sabemos que o país, mesmo com uma classe média crescente, ainda é muito desigual. Acha que isso mudará num futuro próximo?
David Shambaugh —
Ótima pergunta. O próprio Xi Jinping mencionou em seu discurso no congresso do partido o problema da desigualdade de renda. 'A desigualdade social é um dos maiores desafios', disse, 'que precisamos enfrentar'. Outro desafio que ele identificou foi o alívio da pobreza. A desigualdade de renda na China está hoje… O coeficiente de Gini, que mede isso, está em 0,47 pelos padrões do governo chinês. Outras estimativas calculam entre 0,5 e 0,43. Enfim, está entre os maiores do mundo. É bem grave. Quanto ao alívio da pobreza, os chineses merecem crédito. Nenhum outro país na história retirou 300 milhões de pessoas da pobreza em três décadas. Ainda há 100 milhões vivendo abaixo do nível de pobreza extrema do Banco Mundial. Em seu discurso, Xi Jinping disse que, em 2020, daqui a apenas três anos, esses últimos 100 milhões de pessoas sairão da pobreza extrema. É um objetivo ambicioso e louvável. Xi Jinping tem razão. Essas duas coisas — desigualdade de renda e alívio da pobreza — têm de ser encaradas. Acho que na questão da pobreza eles terão mais sucesso. Na questão da desigualdade social, provavelmente menos.

Marcelo Lins — Talvez as soluções que terão de buscar sejam mais fáceis de encontrar num modelo ditatorial do que numa democracia, porque ainda não vemos nenhum avanço democrático, mesmo se pensarmos nos assuntos que têm ganhado espaço nas discussões do Ocidente, como empoderamento feminino, liberdades sociais, questões de gênero… Nada disso está sendo discutido hoje na China.
David Shambaugh —
Exato. Eu adicionaria à sua lista os direitos trabalhistas, os sindicatos. Todos os tipos de direitos humanos, liberdade de expressão, liberdade de associação, liberdade de imprensa. Não estaríamos tendo esta conversa se você fosse um jornalista chinês. Ela não seria exibida na TV chinesa. Os controles do governo chinês sobre a imprensa sempre foram fortes, mas eles atingiram um nível excessivo, sem precedentes hoje desde a era de Mao. As redes sociais, todos os celulares são monitorados. Você não pode mandar mensagens para alguém. O WeChat foi banido da China, mas até mesmo o Weibo está sendo monitorado pelos serviços de segurança. Toda forma de comunicação. Eles agora têm tecnologia de reconhecimento facial e câmeras por toda parte, e estão usando inteligência artificial para medidas de monitoramento coercitivas. Aprovaram leis para ONGs, leis cibernéticas, leis de segurança nacional, tudo isso para controlar essas esferas. Testemunhamos um retrocesso real de liberdades intelectuais. Universidades, intelectuais, imprensa, redes sociais, ONGs, sociedade civil… Nos últimos cinco anos, houve um grande retrocesso.

Marcelo Lins — Qual é a sua curiosidade em relação à China no momento? Qual é o assunto que o entusiasma em relação à China, coisas que ainda quer estudar sobre o país e que pode dizer ao mundo?
David Shambaugh —
Eu me interesso muito pelo papel da China no mundo em termos externos no momento. A pesquisa que estou fazendo… Morei no Sudeste Asiático nos últimos seis meses, e meu próximo livro é sobre as relações da China com os países do Sudeste Asiático e sobre a competição com os EUA no Sudeste Asiático. Eu me interesso pelo surgimento da China no palco mundial. Que tipo de potência a China está se tornando? Ela será capaz de ser uma líder global? Qual será a influência de seu soft power? Ou de seu hard power? Já falamos sobre isso. Isso me interessa mais do que as tendências domésticas na China. Não vejo muitas dúvidas no lado doméstico. Sabemos a direção em que o governo está indo. Mas não sabemos em que direção irá no palco mundial, e acho essa uma área interessante para pesquisas.

“Presidente Trump encontra o homem mais poderoso do mundo em Pequim.”

Marcelo Lins — E supõe — claro que seria uma suposição muito informada — que a China está pronta para ser esse líder global que todos esperam?
David Shambaugh —
Não. Minha intuição diz que ela não está pronta. O país foi jogado no centro das atenções muito antes do que esperava. O surgimento de Trump acelerou ainda mais isso e criou um vácuo na liderança global. Hoje os chineses estão quase sozinhos nesse espaço, mas não têm experiência como líder global. Têm boas relações com muitos países, mas isso é diferente de liderança. E eles ainda são… Não quero dizer egoístas, mas ainda é um país que defende os próprios interesses de forma mesquinha. É uma forma melhor de dizer. Eles nunca se viram moldando a ordem mundial, formando coalizões e liderando outros países. Sempre defenderam interesses próprios externamente. Agora, se defenderem os próprios interesses externamente sozinhos, não conseguirão o apoio de outros países. Mas, se encararem essa liderança de forma mais positiva, se sairão melhor.

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