Segunda Leitura

A mulher na jurisprudência dos tribunais nos anos 1960

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

30 de abril de 2017, 7h45

Spacca
Os anos 1960 apresentam uma transição muito grande de movimentos sociais, políticos, econômicos e de costumes. O presente estudo procura registrar como a mulher era tratada por nossos Tribunais, através de pesquisa na jurisprudência. A fonte de pesquisa é a Revista dos Tribunais (RT), rico repertório de decisões da época. Os acórdãos são, na sua maioria, do Tribunal de Justiça de São Paulo, mas há também do Rio de Janeiro, Paraná, Mato Grosso, Minas Gerais e outros. Nas citações constarão o número do volume e folha.

Os anos 1960 tiveram momentos políticos tensos, como a eleição e renúncia de Jânio Quadros, movimentos grevistas intensos, a assunção dos militares ao poder, em 1964, e os conflitos entre grupos guerrilheiros e forças da repressão, em 1968 e 1969. Do ponto de vista do Direito Positivo, eram regidos pela Constituição de 1946, Código Civil de 1916, Código Penal e de Processo Penal, respectivamente de 1940 e 1941, Código de Processo Civil de 1973 e a Constituição de 1967.

O tratamento jurídico previsto nessas normas surpreende até o leitor mais esclarecido. O domicílio das mulheres era o do chefe de família, ou seja, o pai ou o marido, pois assim dispunha o artigo 7º, inciso VII, da Lei de Introdução ao Código Civil. O Código Civil, no artigo 6º, inciso II, considerava as mulheres casadas como relativamente incapazes, tal qual os pródigos e os silvícolas. Para ingressar com uma ação em Juízo elas precisavam da autorização do marido, conforme artigo 82 do Código de Processo Civil e 35 do Código de Processo Penal, exceto, evidentemente, se fosse contra ele.

As mulheres raramente eram partes nos processos judiciais. Afinal, quase não exerciam atos de comércio, poucas eram profissionais liberais, entre as que trabalhavam a maioria era de professoras ou então, entre as classes sociais menos favorecidas, empregadas nas fazendas, na indústria ou no comércio. Raramente eram acusadas de crimes.

Na área do Direito, havia algumas advogadas, poucas procuradoras dos municípios ou estados, raríssimas professoras de Direito, juízas, promotoras ou delegadas. A primeira juíza no Brasil foi Thereza Tang, no Estado de Santa Catarina. Na Justiça Federal foi Maria Rita Soares de Andrade, nomeada pelos militares em 1967 para atuar no Rio de Janeiro. Mas a Justiça do Trabalho e que foi sempre a mais aberta à aprovação das mulheres.

Vejamos agora a jurisprudência, começando pelo cível e depois indo aos precedentes criminais.

Investigação de paternidade: não havia exame de DNA, portanto as provas eram restritas. O exame de sangue apontava a impossibilidade de alguém ser pai, mas não indicava quem era. As testemunhas, muitas vezes, iam, a pedido do réu, depor contra a mãe, dizendo que ela “andava com outros”. Na dúvida, as ações eram julgadas improcedentes. Ajudava na prova “a moça ser de bons costumes com um único namorado”, disto podendo resultar o reconhecimento da paternidade (RT 299/183).

Filho adulterino: vigorava uma absoluta presunção de legitimidade e o reconhecimento de um filho adulterino só era admitido em situações extremas. Por exemplo, com o reconhecimento formal em processo de inventário (RT 326/271). Idem se comprovada a separação há anos (RT 292/240). Detalhe: o filho adulterino só recebia a metade da herança devida a um filho legítimo (RT 326/248).

Casamento: ato formal por excelência, dificilmente era anulado. As mulheres, na sua maioria, casavam virgens. Caso não detivessem a condição de “virgo et intacta”, o noivo podia pedir a anulação em 10 dias (Código Civil, artigo 178, § 1º). Muitos casamentos eram anulados porque o marido era portador de “impotência coeiundi” (RT 293/602) ou porque a noiva tinha coitofobia (RT 297/713), o que não era raro em moças assustadas com o primeiro dia, guiadas por maridos pouco habilidosos. Mas havia também casos de anulação por erro quanto à pessoa, por ser o marido homossexual (RT 323/221 e 402/195), ser “indivíduo sem profissão e com passagem pela Polícia” (RT 325/155), ser esquizofrênico ou psicopata (RT 405/155 e 402/125), querer evitar ser processado por crime de sedução (RT 295/623) ou ter a mulher sido bailarina e ter tido um amante (RT 293/139).

Não era raro que em cidades do interior os noivos quisessem casar e o pai da moça não tivesse dinheiro para dar a festa. Então, os noivos fugiam, com a permissão velada dos pais, eram presos nas proximidades (sim, exatamente isto, presos pela Polícia) e daí, para evitar uma ação penal por sedução, casavam-se às pressas, sem despesas.

Desquite: a forma de separação era o desquite. A  Separação Judicial só veio com a Lei do Divórcio, em 1977. Uma mulher desquitada, ou seja, que não estava quitada, acertada, sofria forte repressão social. A começar pelas outras mulheres casadas, que temiam o seu convívio, porque poderia ser causa do descaminho de seus maridos. Nos clubes, nas profissões, na família, a condição de desquitada era um ônus pesado.

Para vencer uma ação de desquite litigioso, a mulher devia provar muito bem a culpa do marido. Por exemplo, demonstrando que ele era adúltero e submetia a família a vexames (RT 399/143). Mas, regra geral, ela era a sacrificada. Por exemplo, cita-se precedente em que ela era professora na capital e não acompanhou o marido que se mudou para o interior, o que motivou a procedência de ação de desquite(RT 410/175).

Concubina: a união estável de hoje chamava-se concubinato. Não raramente, o homem mantinha duas famílias, matriz e filial, como se dizia. Mulheres em tal condição sofriam restrições familiares e sociais. Por exemplo, não eram admitidas nos melhores clubes. No entanto, as concubinas tinham reconhecidos os seus direitos sobre a metade do patrimônio do homem, desde que provassem ter colaborado, com seu trabalho, mesmo doméstico, na aquisição (RT 306/535, 333/141, 330/287, 358/171 e 347/175).

Vejamos a esfera criminal.

Abandono material: era comum a condenação do homem que abandonava a família e deixava de suprir as necessidades, ou, como se dizia, “pôr comida em casa” (RT 309/423, 390/339, 363/197, 391/317 e 325/330). No entanto, absolvia-se em casos da esposa ser adúltera e não entregar os filhos (RT 297/415, viver em concubinato (RT 305/446) ou se recusasse a voltar ao lar (RT 291/607).

Aborto: as decisões eram variadas, ora absolvendo por falta de laudo adequado (RT 380/71 370,/70 e 373/145), ora condenando mesmo sem exame mais apurado (RT 305/90 e 322/145). A conduta da mulher influenciava no julgamento, podendo ser absolvida em razão de necessidade imperiosa, porém com condenação da parteira (RT 405/90), à época chamadas de “papa anjo”.

Legítima defesa da honra: homens agrediam ou matavam quando diziam-se ofendidos pela traição da mulher. A tese da legítima defesa da honra era quase sempre aceita nos Tribunais do Júri, sendo oportuno lembrar que os jurados eram homens. Por vezes os Tribunais de Justiça reformavam estas decisões, afirmando que a honra maculada era da adúltera e não do agressor (RT 307/80 e 301/87). Em outras, absolviam, principalmente quando o marido surpreendia a mulher com o amante no ato (RT 325/365, 403/300 e 407/100).

Sedução:  seduzir mulher honesta, menor de 18 anos, era crime previsto no artigo 217 do Código Penal e dava cadeia, inclusive para réu primário e menor de 21 anos (RT 353/84). Era preciso, todavia, provar que a jovem “era honesta e sem experiência” (RT 341/132). Foi absolvido jovem que namorava há muito tempo e deflorou (esta era a palavra) a namorada dois dias depois de ter completado 18 anos (RT 328/110). Havia condenações como a de um noivo que afirmou que precisava experimentar antes das bodas e depois se recusou a casar (RT 330/164) e de réu casado que prometera desquitar-se (RT 360/119). Também foi condenado sedutor de jovem que dizia ter “conhecimento teórico das coisas do sexo”, porque isto não depunha contra a sua honestidade (RT 328/113).

Exploração de lenocínio e casa de prostituição: as cidades do interior tinham os seus bairros com as chamadas “casas de tolerância”. Elas tinham luz vermelha na porta, porque se misturavam a outras de família. Vez por outra, um delegado com fama de bravo fechava todas e as rameiras mudavam-se para cidade vizinha. Mesmo não sendo a exploração na zona do meretrício considerada crime, como proclamou o Supremo Tribunal Federal (RT 405/433). Da mesma forma, meretriz receber a clientela em casa (RT (RT 401/85).

Os hotéis gozavam de situação especial. Permitiam encontros de casais e, ao serem pilhados pela Polícia, alegavam ter alvará e pagar impostos, tese esta que não era aceita (RT 396/67). Normalmente eram acusados o proprietário do estabelecimento e o porteiro. Alguns deixavam malas velhas à disposição da clientela, a fim de que pudessem demonstrar que estavam realmente hospedados. A jurisprudência, todavia, passou a absolvê-los, exigindo que se fizesse prova da habitualidade (RT 410/89).

Assim eram os hábitos nos anos 1960. O profissional do Direito, para ser completo, deve conhecer não apenas as lições dos mestres, mas também a aplicação do Direito, no presente e no passado.

Autores

  • é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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