Tribuna da Defensoria

Súmula do STJ sobre honorários para Defensoria deve ser revista

Autores

  • Edilson Santana Gonçalves Filho

    é defensor público federal. Foi defensor do estado do Maranhão. Autor dos livros Defensoria Pública e a Tutela Coletiva de Direitos – Teoria e Prática A Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais – sua vinculação às relações entre particulares e Dicionário de Ministério Público. Especialista em Direito Processual.

  • Hélio Cabral

    é defensor público federal.

18 de outubro de 2016, 8h28

Antes de adentrar no assunto central deste artigo, é necessário traçar algumas observações acerca do atual perfil constitucional da Defensoria Pública. 

A Defensoria Pública configura-se como órgão autônomo, conforme restou estabelecido no artigo 134 da Constituição Federal. Assim é que, nada obstante não seja um Poder (os quais, adotando a clássica divisão tripartite, são identificados pela Constituição Federal no Legislativo, Executivo e Judiciário), a Defensora Pública passou a ser dotada de autonomia funcional, administrativa e, para tanto, de orçamento próprio, podendo, inclusive, encaminhar sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, por força de disposição constitucional.

“Foi com esse intuito, de assegurar o exercício de direitos e aprimorar o sistema de justiça, que a Constituição Federal de 1988 previu a figura da Defensoria Pública. A previsão inicial se mostrou insuficiente para o desempenho da missão incumbida à instituição, vocacionada à orientação jurídica, à promoção dos direitos humanos e à defesa do necessitado, razão pela qual a Carta Federal foi aprimorada com o advento das Emendas Constitucionais já mencionadas.

A autonomia do órgão, nesse sentido, se mostrou imprescindível à necessária independência de instituição que litiga diariamente com o Poder Executivo, o mesmo que deveria proteger e efetivar direitos fundamentais. Daí o embate institucional, com o fito de fazer efetivos tais direitos, inclusive o próprio acesso à justiça”.

O novo perfil constitucional, assim, deixa indubitável, especialmente após a emenda constitucional de número 80 de 2014, que a atividade "defensorial" é única, possuindo traços distintivos, a exemplo da promoção de direitos humanos e da educação em direitos, o que a distingue, inclusive, da advocacia (pública e privada).

“Cronologicamente, a autonomia foi conferida, pelo texto constitucional, primeiramente para às defensorias públicas estaduais, por meio da EC 45/2004. A distorção foi corrigida pelas Emendas 69 e 74, que explicitaram no texto constitucional que a autonomia se estende à Defensoria do Distrito Federal e à Defensoria Pública da União”.  

Acerca do tema, escreveu o eminente constitucionalista Daniel Sarmento: 

“No atual cenário, a significativa mudança no papel do Estado, que passou a intervir mais fortemente no âmbito das relações sociais, ensejou uma releitura da separação de poderes. Por um lado, não há mais tamanha rigidez no que concerne à divisão das funções estatais. Admite-se, por exemplo, uma participação maior do Executivo e mesmo do Poder Judiciário no processo de produção do Direito. Por outro, se reconhece a possibilidade de que existam instituições independentes, que atuem fora do âmbito dos três poderes estatais tradicionais. 

A não inclusão dessas instituições na estrutura dos três poderes estatais visa acima de tudo a lhes conferir a autonomia necessária para que possam desempenhar de modo adequado o seu papel. No Direito Comparado, isto ocorre em áreas variadas, como as que envolvem a persecução penal, a proteção de direitos humanos, o controle da integridade governamental, a realização e apuração de eleições e a tomada de decisões técnicas, que se queira blindar diante da política partidária (…)

Nesse contexto, pode-se dizer que os valores subjacentes à separação de poderes – de contenção da autoridade e garantia dos direitos – são promovidos, e não solapados, quando certas instituições que necessitam de independência para o desempenho das suas funções são retiradas da alçada do Poder Executivo, como se deu com a Defensoria Pública da União (…)

A ordem constitucional brasileira convive, sem problemas, com instituições independentes situadas fora dos três poderes estatais tradicionais. É assim, desde a promulgação da Carta, com o Ministério Público”.

O Supremo Tribunal Federal vem reafirmando a autonomia da Defensoria Pública, a exemplo do que decidiu nos seguintes precedentes: ADI 3.965/MG, Tribunal Pleno, Relator a ministra Cármen Lúcia, DJ de 30/3/12; ADI 4.056/MA, Tribunal Pleno, Relator o ministro Ricardo Lewandowski, DJ de 1/8/12; ADI 3.569/PE, Tribunal Pleno, Relator o ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 11/5/07; MS 3.3193 MC/DF. Decisão de 30/10/2014.

Conclui-se, portanto, que, embora organicamente a Defensoria Pública (assim como o Ministério Público) se insira no corpo do Poder Executivo, é deste corpo órgão autônomo, dotado de vida própria e elevado grau de independência (funcional e administrativa). 

É diante deste cenário, portanto, que deve ser analisada, hodiernamente, a questão concernente ao recebimento de verbas sucumbenciais em decorrência de condenação da Fazenda Pública, em favor da Defensoria.

Da superação do enunciado 421 da Súmula do STJ
Dispõe o enunciado 421 da súmula da jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça:

“os honorários advocatícios não são devidos à Defensoria Pública quando ela atua contra a pessoa jurídica de direito público à qual pertença”

Apesar da redação do enunciado, hodiernamente, é possível afirmar ser cabível a condenação em verbas sucumbenciais à Defensoria Pública, mesmo quando atue contra a pessoa jurídica “a qual pertença”. Assim, a União pode ser condenada em processo movido pela Defensoria Pública da União, como também, por exemplo, o Estado do Rio de Janeiro em ação movida pela DPE/RJ.

Tomando-se por base o já exposto introdutoriamente, a redação da súmula já revela, no mínimo, desatualização. É que, conforme observamos, nada obstante organicamente a Defensoria Pública se insira no corpo do Poder Executivo, é deste (corpo) órgão autônomo.

Nesse contexto, importa, inicialmente, observar que as verbas sucumbenciais, que encontram fundamento no art. 4º, XXI, da Lei Complementar 80/94, fazem parte do reforço orçamentário necessário à saúde financeira da Defensoria Pública, função essencial à Justiça. Citado dispositivo é taxativo ao dispor que as verbas sucumbências são devidas por quaisquer entes públicos, conforme se observa de sua redação, conferida pela Lei Complementar 132/09:

Art. 4º – São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: […] XXI – executar e receber as verbas sucumbenciais decorrentes de sua atuação, inclusive quando devidas por quaisquer entes públicos, destinando-as a fundos geridos pela Defensoria Pública e destinados, exclusivamente, ao aparelhamento da Defensoria Pública e à capacitação profissional de seus membros e servidores; (Grifo nosso).

Assim, “a partir da Lei Complementar 132/09, os honorários de sucumbência são devidos à Defensoria Pública, e não à pessoa jurídica de direito público a qual ela pertence (União, Distrito Federal e Estados), como antes acontecia. Apesar de não ostentar personalidade jurídica, a Defensoria ocupa posição de credora na relação jurídica”.

Interessante notar que o enunciado 421 da súmula do STJ reflete entendimento jurisprudencial anterior ao advento da Lei Complementar 132/09, que entrou em vigor em 7 de  outubro de 2009, visto que, apesar de ter sido editada e publicada em 2010, o fundamento sumular é baseado em precedentes anteriores à novel legislação. Confira-se, a propósito, as referências legislativas e os precedentes utilizados para edição do enunciado:

Súmula 421
Data da Decisão: 03/03/2010
Fonte: DJE DATA:11/03/2010

Ementa: Os honorários advocatícios não são devidos à Defensoria Pública quando ela atua contra a pessoa jurídica de direito público à qual pertença.

Referências Legislativas
CF-1988 – ART:134
CC-02 – ART:381

Precedentes
RESP 1.108.013 RJ 2008/0277950-6 
DECISÃO: 03/06/2009
DJE DATA: 22/06/2009 

AGRESP 1.084.534 MG 2008/0192684-2 
DECISÃO: 18/12/2008
DJE DATA: 12/02/2009

AGRESP 1.054.873 RS 2008/0098961-8 
DECISÃO: 11/11/2008
DJE DATA: 15/12/2008

RESP 740.568 RS 2005/0057809-5 
DECISÃO: 16/10/2008
DJE DATA: 10/11/2008

AGRESP 1.028.463 RJ 2008/0018694-0 
DECISÃO: 25/09/2008
DJE DATA: 13/10/2008

RESP 1.052.920 MS 2008/0091556-2 
DECISÃO: 17/06/2008
DJE DATA: 26/06/2008 

AGRESP 755.631 MG 2005/0090151-2 
DECISÃO: 10/06/2008
DJE DATA: 25/06/2008

AGRESP 1.039.387 MG 2008/0054778-0 
DECISÃO: 03/06/2008
DJE DATA: 23/06/2008

RESP 852.459 RJ 2006/0137180-5 
DECISÃO: 11/12/2007
DJE DATA: 03/03/2008 

ERESP 566.551 RS 2004/0051572-7 
DECISÃO: 10/11/2004
DJE DATA: 17/12/2004

Diante da edição do enunciado, todavia, diversas decisões judiciais passaram a adotar o entendimento sumulado, o que ocorre até o presente, sem atentar, todavia, para a alteração no cenário normativo que se concretizou com a Lei Complementar 132 e com a emendas constitucionais 74 de 2013 (que consolidou a autonomia institucional) e 80 de 2014.

Demais disso, embora o STJ tenha se utilizado do artigo 381 do Código Civil — que trata do instituto da confusão — para fundamentar a edição da Súmula 421, tal fundamento também não encontra sustentação, pois (a) a Lei Complementar 132/09 é norma específica, devendo prevalecer sobre aquele codex, de caráter geral. Além do mais, referido código é voltado à regulação de relações jurídicas de ordem eminentemente privada; (b) não há que se falar em confusão para órgão dotado de autonomia, o qual possui, inclusive, orçamento próprio. A credora das verbas sucumbenciais não é a Fazenda Pública, mas sim a própria Defensoria, órgão autônomo e responsável por gerir os fundos mencionados no artigo 4º, XXI da LC 80/94, destinados, exclusivamente, ao aparelhamento do órgão e à capacitação profissional de seus membros e servidores.

O instituto da confusão patrimonial deve ser compreendido não como um conceito lógico-jurídico, que independeria de um embasamento normativo específico e em relação ao qual haveria um conteúdo inerente, mas como um conceito jurídico-positivo, que “é construído a partir da observação de uma determinada realidade normativa e, por isso mesmo, apenas a ela é aplicável”. 

Nessa linha, ainda que a citada súmula e julgados reflitam o entendimento dos tribunais, há de se considerar que todo o arcabouço jurídico em que se baseavam é anterior à vigência das Emendas Constitucionais 74/13 e 80/14.

Por fim, é importante esclarecer que a condenação em verbas sucumbenciais nas causas em que atua a Defensoria Pública são destinadas ao Fundo de Aparelhamento da instituição, conforme previsão legal. Ou seja, o Defensor Público não recebe, nem mesmo percentualmente, qualquer valor a título de condenação em verbas sucumbenciais, equívoco bastante comum no meio forense. 

Da necessidade de superação do precedente
Conforme constatado em linhas pretéritas, o surgimento do enunciado 421 da súmula do STJ se deu em virtude de precedentes judiciais anteriores à entrada em vigor da Lei Complementar 132/09 e em cenário normativo completamente diverso do hoje existente, em face do novo perfil constitucional da Defensoria Pública. 

O novo contexto fático-jurídico surgido, assim, exige a revisão do tema, através do denominado overruling dos precedentes. “Chama-se, na doutrina da common law, overruling a superação de um precedente, por se o entender equivocado ou ultrapassado”. 

Nessa senda, verifica-se patente a necessidade de revisão do entendimento jurisprudencial acerca do cabimento dos honorários sucumbenciais em favor da Defensoria Pública, mesmo quando devidas pelo mesmo ente público do qual pertencente organicamente o órgão. Ainda que o enunciado e os julgados reflitam o entendimento dos tribunais, há de se considerar que o arcabouço jurídico no qual se baseavam restou alterado.

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