Opinião

O processo como instituição de garantia

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  • é juiz federal mestre e doutor em Direito (PUC-SP) pós-doutorando pela Unisinos e presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Diretor da RBDpro. Membro do IBDP do IPDP do IIDP e do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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16 de novembro de 2016, 5h52

O processo — porque elo dialogal — habita a zona friccional entre a sociedade e o Estado, entre os jurisdicionados e a jurisdição, entre as partes e o juiz. Não se é de estranhar, assim, que o processo seja uma instituição estabelecida pela CF-1988. Instituições nada mais são do que entidades [por exemplo, organizações públicas, museus], bens [por exemplo, patrimônios histórico, meio ambiente], relações [por exemplo, família, casamento], valores [por exemplo, lealdade concorrencial, moralidade administrativa], agrupamentos [por exemplo, comunidades tradicionais], hábitos [por exemplo, tradições, festas], utilidades [por exemplo, saúde, esporte, segurança, educação] e normas [por exemplo, lei], cuja preservação estrutural e cujo bom funcionamento são indispensáveis à identidade e à própria existência de uma determinada sociedade e ao bem-estar de seus cidadãos. Nota-se, pois, que o conceito de instituição é metajurídico, visto que ela não deriva das normas jurídicas, mas lhes é prévio, que simplesmente a protegem. Com isso, vê-se que as instituições apresentam perfil bidimensional: exibem, ao mesmo tempo, aspectos fáticos (visto serem uma realidade social) e valorativos (porque portam essencialidade social); uma vez amparadas normativamente pelo Estado, tornam-se institutos (sobre a noção de instituição: Raiser, Ludwig. Rechtsschutz und Institutionenschutz im Privatrecht. Summum ius summa iniuria. Tübingen: Mohr, 1963, p. 145-67).

Frise-se que a Constituição é também uma instituição, pois estrutura normativamente as condições políticas fundamentais de convivência social. Daí por que indispensável à sociedade as garantias da estruturação e funcionalidade constitucionais. De todo modo, a par da sua índole institucional, a Constituição também traz consigo uma índole metainstitucional, porquanto garante e regula instituições. Ou seja, é uma macro-instituição, que protege a si [função autorreferente] e a outras micro-instituições [função heterorreferente]. Uma dessas micro-instituições é o processo. Mais: uma exploração provisória do texto constitucional já identifica a institucionalidade garantística como o “ser” do processo: processo é instituição de garantia, não de poder estatal; “instituição garantística a serviço dos jurisdicionados”, não “instrumento a serviço do Poder jurisdicional”; afinal, é tratado no título sobre direitos e garantias fundamentais [CF, Título II], não nos títulos sobre a organização do Estado [CF, Títulos III et seqs.]. Mas é possível ainda avançar mais: processo é instituição de garantia de liberdade (pois regulado no Capítulo I do Título II, que cuida dos direitos fundamentais de primeira geração), não de igualdade (que é vetor que regula o Capítulo II do Título II, que cuida dos direitos fundamentais de segunda geração); presta-se, enfim, a resguardar a liberdade das partes em relação ao Estado-juiz, não a igualdade entre elas (sobre o processo como garantia de liberdade: Velloso, Alvarado. Sistema procesal. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2009).

Pois bem. A Constituição traça as linhas mestras estruturais do processo e, porque as conforma, abre a esfera de projeto primeira para a sua explicitação dogmática. Logo, se a plataforma de lançamento institucional do processo é a Constituição, não se pode conceber uma processualística que não se anteceda de uma constitucionalística do processo. Em todo pensamento processual há de estar implicado um pensamento constitucional. Por isso, a pergunta pelo “ser constitucional” do processo é a condição apriórica de possibilidade de uma ciência processual. É prius ôntico do processo compreender seu “ser constitucional” (ou seja, sua institucionalidade garantística). A compreensão constitucional do processo é, aliás, o prelúdio de todo aspirante a processualista. É-lhe um antecedente epistemológico, pois. Com isso se vê que uma processualística sem uma constitucionalística do processo que lhe subjaza e a anteceda é episteme sem fundamento. É processualismo (quase sempre autoritário) cujo objeto é arbitrariamente construído pelo “processualista”. É caprichosa pseudociência ad hoc e improvisada. É súbita e precária contingência.

Decididamente, ciência do processo não é “livre projeto”, “artifício intelectual”, “ponto de vista”. Tampouco se trata de um Ouroboros circularmente auto-fundante. A processualística, ainda que disponha de rico sistema de categorias fortemente estruturado, é cega se antes não esclarece suficientemente o “ser constitucional” do processo e se não compreende esse esclarecimento como tarefa fundamental. Entrementes, muitas as correntes dogmáticas desencaminhadas, que inconfessadamente desenraízam o processo da Constituição e o envolvem em sobrecargas inconvenientes, esfumaçando-lhe seu “ser constitucional” e, portanto, sua institucionalidade garantística (a pior delas no país é a “instrumentalidade do processo”, fundada num princípio epocal mântrico sem qualquer consistência positivo-constitucional, que reduz o processo a mero “artefato para boas intenções” e que tem servido como fonte de compreensão e racionalidade de qualquer manifestação no universo processual). Nesse sentido, toda processualística deve ser uma “revelação-destruição”: explicitando hermeneuticamente o processo como estrutura de garantia das partes, demole criticamente a dissimulação do processo como mero “utensílio do juiz”.

Isso mostra que, em última análise, a disputa entre o ativismo (que é uma teoria utensiliar) e o garantismo (que é uma teoria não-utensiliar) é disputa — parafraseando Heidegger — entre velamento [Verborgenheit] e desvelamento [Unverborgenheit], entre ocultação [Verdecktheit] e desocultação [Unverdecktheit] (sobre o debate entre garantismo e ativismo: Ramos, Glauco Gumerato. Ativismo e garantismo no processo civil. Ativismo judicial e garantismo processual. Coord. Fredie Didier Jr. et al. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 273-86). Em termos mais oblíquos: a dimensão historial das doutrinas ativistas é um exercício renitente de esquecimento do “ser constitucional” do processo. Importante destacar que esse esquecimento não é propriamente distração, mas indiferença, que por desdém dá a institucionalidade garantística do processo como impensado e que se abandona nesse impensamento (o que explica, por exemplo, por que os ativistas não citam os garantistas e não dialogam criticamente com seus argumentos, caindo na tentação a-científica da pregação apologética).

Daí por que há certa tensão entre o constitucional (que engloba e quer determinar) e o processual (que se isola e quer independentizar-se ou apoiar-se em exterioridades não jurídicas). O constitucional avançando para hetero-fundar o processual; o processual recuando para autofundar-se ou fundar-se em extrajuridicidades não constitucionais (geralmente ideologias, interesses, alienações, repressões, teologias, versões de mundo, que intrusivamente ocupam a suprema posição fundante que deveria caber à Constituição). Aliás, é cada vez mais rara uma ciência processual concentrada recursivamente em si mesma. Em regra, projetos políticos não positivados se transmudam em “fontes de compensação” [Ersatzquellen] pelo menosprezo à Constituição. Não sem razão os três principais tipos de ativismo se ligam a três grandes credos estatistas: 1) o fascismo processual (do juiz-linha-dura); 2) o socialismo processual (do juiz-Robin-Hood); 3) o social-liberalismo processual (do juiz-gerente ou managerial judge) (para um aprofundamento dessa tipologia, meu Los criterios de la legitimación jurisdiccional según los activismos socialista, fascista y gerencial. RBDPro 82/205-16). Todavia, o aludido menosprezo é velado: por meio de uma “acrobacia retórica”, o ativista desempenha “contorcionismos argumentativo-circenses”, geralmente repletos de piruetas pamprincipiológicas, para desfocar a inconstitucionalidade palmar de suas intenções. Não se é de estranhar que hoje, no Brasil, a melhor crítica anti-ativista provém da ala crítico-hermenêutica dos constitucionalistas (Lênio Streck, Maurício Ramires, Francisco Motta, Georges Abboud, etc.), os quais dispõem do aporte metodológico adequado para identificar e delatar essas imposturas.

Nesse sentido, o ativismo pode ser entendido como fruto de uma processualística orgulhosa, que logrou isolar-se ou alhear-se, que escapou ao englobamento constitucionalístico, que se ensimesmou ou se prostituiu, adoecendo-se de si própria ou do seu parceiro extrajurídico. Na verdade, somente quando a processualística “de-siste” de enclausurar-se e “in-siste” numa constitucionalística, ela “ek-siste” como ramo dogmático legitimamente autônomo. Todavia, esse movimento não é linear: o processual inscreve-se no constitucional, o constitucional reescreve o processual, o processual reinscreve-se no constitucional e desse ir-e-vir de conter, conter-se, re-conter e re-conter-se é instaurada uma circularidade, que descobre fenomenologicamente a estrutura formal do processo em sua totalidade, abrindo as portas para uma analítica processual sobre bases mais acertadas. A partir dessa articulação instala-se novo ponto de apoio teórico-arquitetônico para novas terminologias, novos pressupostos operacionais, novos procedimentos metodológicos, novos modelos interpretativos. Ou seja, para além de uma analítica garantista, instalam-se também as possibilidades de uma hermenêutica garantista e de uma pragmática garantista; isso porque ser garantia define o processo em suas estruturas elementais, significativas e práticas.

Essa analítica processual é uma a) micro-analítica das estruturas categoriais fundamentais do processo-garantia; para além dela, a circularidade entre constitucional e o processual também viabiliza uma b) macro-história voltada o à: b.1) destruição das teorias ativistas, que no curso da tradição fecharam os olhos à  institucionalidade garantística do processo; b.2) produção de novas pegadas para o advento do paradigma garantista. Nem é preciso dizer que as duas formas de abordagem são interdependentes dentro da empresa garantista, formando um modelo bipolar (sobre o uso desse modelo bipolar como método filosófico: Stein, Ernildo. A questão do método na filosofia. 2. ed. Porto Alegre: 1983).

Um dos títulos pseudo-fundantes e enganadores da processualística ativista é a categoria pragmática da técnica. Por meio de uma técnica constitucionalmente desertificada o ativista faz de tudo para eficientemente — mediante cálculo de meios e fins — mobilizar energias e transformar realidades. É bem verdade que a técnica processual não é mal em si; porém, é preciso religá-la ao seu chão próprio, à sua terra natal, à sua pátria original, que é a sua esquecida moldura garantístico-constitucional. Em outros termos, é preciso uma montagem técnico-processual criativa a serviço da garantia (o que é tarefa ainda irrealizada no Brasil, bastante empolgado com a engenharia processual a serviço do autor e, por conseguinte, da correlata efetividade jurisdicional) (para uma crítica da “técnica processual” como ocultamento de opções ideológicas: Aroca, Juan Montero. El proceso civil llamado “social” como instrumento de “justicia” autoritaria. Proceso civil e ideología. 2. ed. Coord. Montero Aroca. Valencia: Tirant lo Blanch, 20111, p. 158-162).

Perquirir pelo “ser constitucional” do processo é revelar — tal qual uma clareira — a institucionalidade garantística que a Constituição lhe estabelece e que nele vem sendo encoberta pela obscura doutrina instrumentalista. É aclarar que o legislador deve estruturar o processo como instituição de garantia, não como instrumento de poder. É elucidar, enfim, que a) a função da jurisdição é aplicar imparcialmente o direito e que b) a função do processo é garantir que essa aplicação não se faça com desvios e excessos.

Obtusamente, contudo, o ativismo judicial dissolve o processo (que é garantia) na jurisdição (que é poder), como se o processo fosse a própria jurisdição-funcionalmente-manifestada. Fá-lo perder a própria autonomia ôntica, dando o direito processual lugar a um disforme “direito jurisdicional”. Daí dizer a intelligentsia ativista que o papel precípuo do processo é a realização do direito material. Sem razão, entretanto. Lembre-se: na “jurislação”, o direito é criado; na jurisdição, o direito é aplicado por terceiro imparcial; na administração, o direito é aplicado pela própria parte ou por terceiro não imparcial. Com isso se vê que, na realidade, o que está a serviço da realização do direito material é a jurisdição, não o processo: ao processo cabe “apenas” cuidar para que essa realização não deslize em abusividades. Decididamente, o exercício da jurisdição radica no processo e não o contrário.

Em certo sentido, o garantista deveria agir como “pastor”, “condutor de rebanho”, “enunciador da Boa Nova”, haja vista que não doutrina o “insuspeito”, mas o “óbvio”. No entanto, após décadas de cegamento ativista, poucos ainda sabem “olhar com os olhos” a Constituição e — através do ingênuo olhar originário das crianças — ver nela o “óbvio”. A maioria — com olhos de adulto — vê o “óbvio” como estranho e o “insuspeito” como familiar. Logo, o que era para ser escancaramento se tornou iniciação: iniciação a uma “obviedade despercebida”. Isso faz do garantista um esotérico de ocasião, que reconduz iniciaticamente os olhares para o “ser constitucional” do processo, embora haja nascido para ser um exotérico ocupacional. Mais: isso faz dele, para além de um processualista regenerado, um autêntico constitucionalista do devido-processo-legal. A empresa garantista sempre antepõe à sua processualística uma constitucionalística especializada, navegando pelas duas numa “zona de fronteira epistemológica”. Isso torna o garantismo uma interdogmática e o garantista, assim, um interjurista.

Vivem-se dias difíceis. Assiste-se no Brasil a um Judiciário cada vez mais descontrolado em todos os seus extratos hierárquico-piramidais. Tudo isso regado a pamprincipiologismo, tópica, retórica, teoria da argumentação, moralismo, instrumentalismo, realismo jurídico e outros modelos a serviço de decisionismos e da arbitrariedade judiciais. Daí o surgimento de bestidades circunjacentes: delegados de polícia fantasiados com toga; assistentes sociais travestidos de juízes; justiceiros e moralistas ditando vereditos. Está-se experimentando em sua profundidade as ambivalências do ativismo e a sua degradante utensilidade processual, com todas as impertinentes cargas de animalidade ancestral daí advindas. Mas é paradoxalmente nesse perigo que se pode anunciar a salvação. Na exacerbação do protagonismo judicial está emergindo a viravolta garantista. Afinal de contas, só o processo experimentado em sua originalidade garantístico-constitucional pode refundar as normalidades republicana e democrática no âmbito da prestação jurisdicional. E, para que o jurista dê cientificamente cabo dessa tarefa, precisa procurar o Santo Graal: o “ser constitucional” do processo.

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