Segunda Leitura

Você consegue imaginar o que aconteceu em 2016?

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3 de janeiro de 2016, 7h05

Seria possível acreditar que 2016 está acabando? Imagine que o novo ano tenha chegado ao fim, para poder avaliar o que ocorreu no sistema de Justiça brasileiro ao longo dos 366 dias. Provavelmente, nada muito diferente do que foi visto em 2015.

O novo Código de Processo Civil entrou em vigor, mas o impacto ainda é mínimo. Por trás de toda reforma de código, há o espírito do Ano Novo. Muitas promessas e elevada expectativa, mas quando o ano termina se vê que as resoluções não foram cumpridas: o regime não deu certo, a aprovação no concurso público continua distante, não conseguiu parar de fumar e continua brigando com o cunhado. Ao menos um novo código, como todo Ano Novo, é sempre a esperança de renovação. No caso do CPC, a tentativa de valorização dos precedentes para resolução dos casos é incipiente, e a cultura da decisão que leva em conta todos os argumentos relevantes ainda não foi assimilada. É difícil, depois de tantas décadas, afastar o uso de enunciados de súmulas como se lei fossem e decidir cada processo com base na comparação dos casos anteriores ao novo, como cerzindo os fios de trama que formam o tecido. Nenhum sinal de que houve arrefecimento da demanda judicial diante da perspectiva de jurisprudência estável e previsível. O baixo custo em litigar e recorrer suplanta qualquer tentativa nesse sentido.

A operação “lava jato” continuou de vento em popa. A corrupção que se institucionalizou na Petrobras abrange muitas pessoas, envolve bilhões e lida com muitos dados e será necessário mais tempo para que se alcancem todos os envolvidos nos variados ministérios, empresas e departamentos. Pelas várias instâncias do Judiciário nacional, o mais evidente exemplo de “Justiça dramática” terá longa vida, como o denominaria o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos[1]. É no combate à criminalidade econômica grave e à corrupção, na resposta aos crimes cometidos por pessoas social ou politicamente poderosas — na Justiça dramática — que o protagonismo e legitimidade social do sistema judicial mais se jogam. Os casos da Justiça dramática tendem não só a ocultar os problemas da Justiça de rotina, dos cidadãos anônimos, mas também e mais importante que por meio deles se julgue o desempenho global do sistema de Justiça, ainda que eles representem ínfima parte do trabalho dos tribunais. É, por isso, que o desempenho vicioso ou virtuoso do sistema judicial, quanto a esses casos, condiciona fortemente as percepções dos cidadãos a respeito do direito e da Justiça[2].

Por outro lado, a “Justiça de rotina” persistiu em sua baixa eficiência. Em 2016, milhões de pessoas completaram anos, lustros, décadas de espera por uma decisão judicial definitiva e efetiva. Assim como ocorre desde 2009, entraram mais processos no sistema do que saíram. O passivo de ações ultrapassou o limite de 73 milhões (em 2009 eram pouco mais de 59 milhões) e, na era do processo eletrônico, não se consegue julgar mais processos do que são protocolizados.

Das metas estabelecidas pelo CNJ, como era de se esperar, poucas foram cumpridas. É a constatação de que a imposição de metas sem a implantação de exitosa gestão do fluxo de processos gera resultados ocasionalmente benéficos, mas não garante o bom funcionamento do sistema judicial em sua totalidade. Em 2016, na Justiça Federal, deveriam ter sido julgados até o fim do ano 100% dos processos distribuídos até 31 de dezembro de 2011 e 70% dos processos distribuídos até 31 de dezembro de 2012 no primeiro e segundo graus. Isso significa que 70% dos processos que contavam com até quatro anos de vida e que ainda não receberam sentença deveriam ser priorizados. O restante poderia aguardar mais um pouco… Perceber que processos ajuizados há quatro anos não foram ainda decididos em primeiro grau e que parte deles pode esperar prazo adicional até que sobrevenha julgamento é reconhecer que a vitalidade funcional do Poder Judiciário deixa a desejar. Se é aceitável que processos ajuizados até 31 de dezembro de 2011 possam ser julgados até 31 de dezembro de 2016 e se considerarmos que a regra dos cinco anos vale para cada uma das quatro instâncias existentes (juiz federal, TRF, STJ e STF), conclui-se que se institucionalizou o prazo de 20 anos para resolução das ações cíveis e penais.

A ausência de novidades ou de mudanças significativas no desempenho do Poder Judiciário em 2016 tem explicação lógica.

Não é por falta de dinheiro. O Judiciário brasileiro é caro, caríssimo se comparado com outros países. Enquanto aqui se gasta 1,24% do PIB — o que equivale a R$ 68,4 bilhões por ano[3] — em Israel, a despesa corresponde a 0,82% do PIB. A propósito, Israel apresenta os mais elevados gastos em comparação feita com outros 23 países, dos quais Japão e Noruega figuram como mais econômicos, com despesas equivalentes a 0,065% do PIB[4]. O elevado custo do Judiciário nacional não se explica apenas pela folha de salários, que consome 89,5% do orçamento, mas também por sua importância: foi escolhido como o primeiro instrumento de resolução de conflitos na sociedade. O imenso número de advogados disponíveis significa maior acesso à Justiça, especialmente por parcela da população que, anteriormente, não conseguiria obter tais serviços profissionais. A isso se associa a criação dos Juizados Especiais, que nem sequer exigem representação por advogado, o pagamento de taxas ou conhecimento jurídico para postulação em juízo. Já o poder público e grandes empresas usufruem em excesso da Justiça oficial, gozando das vantagens de uma máquina lenta, atravancada e burocratizada.

As causas do problema são de outra ordem e guardam forte conexão com o ensino jurídico praticado no país, com a reduzida utilização de medidas de gestão processual e com a regulamentação processual em vigor.

O sistema de Justiça somente exercerá verdadeiro papel de resolver/amenizar conflitos (em tempo hábil) se isso for ensinado. O juiz brasileiro, antes de considerar a utilidade de adotar medidas de redução da lentidão de processos, tende a fazer aproximação mais formal, altamente consistente com outros preceitos e princípios de direito, certamente menos pragmático e extremamente cuidadoso na introdução de mudanças que podem não encontrar amparo em específicas provisões legais. A explicação para isso reside nas características inerentes ao sistema franco-romano vigente no país e amplamente incorporado no ensino jurídico nacional. Na maior parte das faculdades de Direito, o método predominante há décadas consiste em aulas expositivas. Técnicas ou metodologias distintas são raras. Os alunos são condicionados a serem agentes passivos do processo de formação e levam esse tipo de comportamento para o momento da atividade profissional. Presume-se que na maior parte das salas de aula espalhadas pelo Brasil não há muita distinção entre o ensino atual e o que se praticava nas primeiras universidades: o mestre recitava, e os alunos escribas registravam. É por isso que há grande facilidade em se decorar quais são as teorias que fundamentam a coisa julgada (teoria da presunção da verdade, da ficção da verdade, da força legal, da eficácia da declaração etc.), mas há muita dificuldade em responder se é possível rescindir uma sentença criminal transitada em julgado proferida por juiz corrompido, que somente absolveu o réu acusado de latrocínio em razão da propina recebida.

A par do apego excessivo a metodologia única, o ensino do Direito no Brasil caracteriza-se por abordagem formalista e monodisciplinar. Os assuntos tendem a ser introduzidos de forma enciclopédica, por meio de aulas expositivo-descritivas que introduzem normas contidas na Constituição, em códigos ou em leis esparsas. Isso reforça a concepção de que as normas devem ser vistas como disposições abstratas, sem conexão clara e direta com o mundo real, com prevalente enfoque jurídico-dogmático. O ensino jurídico a que estão sujeitos condiciona os integrantes do sistema de Justiça brasileiro a ficarem menos propensos a permitir algum grau de experimentação e de aprendizado oriundo da experiência. Os advogados não costumam ser vistos como parceiros necessários no desenvolvimento e implementação de mecanismos de redução da morosidade processual, talvez fruto do reduzido enfoque universitário na habilidade de trabalhar em equipe, o que é imprescindível para preparar pessoas para o convívio social e interpessoal na vida em geral e nas organizações. Os próprios advogados, originários do mesmo sistema de ensino, também não se enxergam como agentes capazes de contribuir para fomentar a celeridade processual. E não adianta a Constituição Federal estabelecer, com clareza mediterrânea, que “o advogado é indispensável à administração da Justiça”, porque a imposição normativa esbarra na resistência cultural e na deficiência na formação educacional.

O segundo fator que interfere diretamente na gestão do fluxo de processos diz respeito à ausência de administração profissional no sistema judicial brasileiro. Nos Estados Unidos, o desenvolvimento dos princípios do gerenciamento de processos voltado para combater a morosidade, na década de 1970, coincidiu com a emersão dos administradores dos tribunais, que abraçaram larga responsabilidade pela administração das cortes em relação às quais os assessores do magistrado eram tradicionalmente encarregados. Atualmente, está em atividade a Associação Nacional dos Administradores de Tribunais (NACM — National Association of Court Management), com aproximadamente 2.500 membros, que prima por fixar diretrizes para currículo com competências centrais, tanto para programas de educação continuada quanto para autoavaliação pelos administradores judiciais de seus próprios conhecimentos, habilidades e aptidões[5]. No Brasil, é incipiente qualquer iniciativa voltada à formação de administradores judiciais profissionais. Não é incomum encontrar juízes, desembargadores e ministros incapazes de gerir sua vara ou gabinete e que, da noite para o dia, normalmente por senioridade, transformam-se em diretores do foro e presidentes de tribunais, passando a administrar dezenas de prédios, centenas de juízes e milhares de servidores. Jejunos na ciência da administração, ainda que brilhantes juristas possam ser, o resultado é desolador.

Os servidores que trabalham no Poder Judiciário ingressam por concurso público, e os requisitos exigidos para habilitação ao cargo resumem-se à conclusão do segundo grau ou de curso superior em Direito. É interessante notar que no âmbito das varas federais o diretor de Secretaria, cargo de confiança do magistrado, deve ser bacharel em Direito, por exigência normativa, e não se permite nomear pessoa vocacionada e preparada para a atividade administrativa que não seja versada nas leis. É vedada a nomeação de graduados em Administração, Engenharia ou Economia, que poderiam contribuir mais eficazmente para a gestão de processos e pessoas. A falta de permissão é pouco razoável diante do fato de o magistrado deter conhecimentos jurídicos e ter assessoria composta por bacharéis em Direito. A natural falta de educação ou experiência gerencial de todos que prestam serviço nas unidades judiciárias, associada à inexistência de escolas especializadas em administração judicial e ao ensino jurídico insuficiente e formalista, somente conduz, na maioria dos casos, à inapropriada condução dos processos, que redunda em morosidade e baixa eficiência.

Por fim, as dificuldades em produzir melhoras em detrimento da morosidade processual, por vezes, encontra barreiras na própria lei ou na interpretação que dela se faz. A morosidade no sistema de Justiça está edificada na estrutura dos códigos e leis processuais. Exemplo disso encontra-se no Juizado Especial Federal. Criado para julgar causas de pequena complexidade e infrações de menor potencial ofensivo, instituiu-se microssistema de Justiça altamente burocrático e redundante. As instâncias do Juizado Especial Federal dividem-se em primeiro grau, Turma Recursal, Turma Regional de Uniformização de Jurisprudência, Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência, Superior Tribunal de Justiça (incidente de uniformização) e Supremo Tribunal Federal (recurso extraordinário). As partes contam com seis etapas nas quais se examina o direito postulado. E nessa estrutura agigantada não se discutem as questões mais relevantes ao país, os crimes mais graves ou causas milionárias. São pequenas causas e delitos anões, em relação aos quais o elevado e incomparável número de oportunidades de impugnação apresenta-se como golpe fatal contra toda e qualquer forma de gestão processual.

Em suma, o ano de 2016, que não provocava muitas expectativas, mostrou-se insosso, por razões já conhecidas. No fundo, isso não foi surpresa, especialmente porque problemas complexos não possuem solução simples e instantânea. Para quem tem a razoável duração do processo como princípio constitucional, sabendo-se que o razoável está abaixo do excelente, ótimo e bom e apenas acima do péssimo e ruim, não era de se ambicionar muita coisa. As mudanças continuarão a vir, a passos de cágado. Em 2050, estaremos em situação melhor, talvez constitucionalizando o princípio da ótima duração do processo.

Aproveitando a oportunidade em razão das merecidas férias de Vladimir Passos de Freitas, nas próximas semanas serão retomados cada um destes temas: ensino jurídico, administração judicial e estruturação normativa do sistema de Justiça criminal.

* O colunista Vladimir Passos de Freitas está de férias.


[1] SANTOS, Boaventura de Sousa. A Justiça em Portugal: diagnósticos e terapêuticas. Manifesto, 7, março, 2005, p. 78-9.
[2] GOMES, Conceição. SANTOS, Boaventura de Sousa. A Justiça penal — uma reforma em avaliação. Coimbra, julho, 2009, p. 530.
[3] Justiça em Números 2015 – ano base 2014. CNJ, Brasília, 2015, p. 19.
[4] PALUMBO, Giuliana et alli. Judicial performance and its determinants: a cross-country perspective. OECD Economic Policy Papers, n. 5, jun., 2013, p. 20.
[5] STEELMAN, David C. FABRI, Marco. Can an Italian Court Use the American Approach to Delay Reduction?” Justice System Journal, v. 29, n. 1, p. 17, 2008.

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