Juízes e procuradores não confiam em... juízes e procuradores!
8 de dezembro de 2016, 7h00
Antes de concordar com o fim do mundo, fica uma pergunta: quem poderá condenar o policial, procurador ou o juiz? Um magistrado, só um magistrado. Se os procuradores da 'lava jato', o juiz Moro, a ministra Cármen Lúcia e seu colega Joaquim Barbosa não confiam na Justiça, por que alguém haverá de fazê-lo?
Bingo. O que Gaspari quis dizer? Simples. Que, pela vez primeira, os juízes estão com medo de uma lei, no caso, a do abuso de autoridade. Medo de uma lei que possui excesso de vaguezas e ambiguidades, a par de sua dureza. Gaspari pergunta por qual razão os juízes deveriam temer a nova lei, se esta será aplicada pelos juízes e fiscalizada pelo MP? O judiciário e o MP não são confiáveis?
Disse ele: Os juízes não confiam neles mesmos. Minha filha Maria Luiza, mestre em Direito, já havia me alertado para isso, antes mesmo de ler o Gaspari. Mauricio Ramires também. Vejamos: Examinando o estado da arte da justiça brasileira, constatamos que, cotidianamente, as leis são descumpridas e aplicadas segundo a opinião pessoal de cada juiz (aqui está o ponto de estofo entre mim e Gaspari, embora ele não tenha desenvolvido isso — mas deixou “implicitamente explicitado”).
Mas, o que vale mais? A lei, a CF ou o que juiz pensa sobre a lei e a CF? Ou é verdade que “sentença vem de sentire”? Os juízes têm livre convencimento? Mas, se o direito é o que os juízes dizem que é, porque eles mesmos estão com medo? Eis o “fator Malu-Gaspari”.
Vamos, então, finalmente, tratar esse assunto a sério? Se sim, então vamos tirar alguns esqueletos do armário. Exemplo: tribunais, juízes e doutrinadores, a despeito de o novo CPC não prever mais “livre” convencimento, continuam a dizer que o convencimento é livre. Pois agora vem uma lei que — mesmo que votada de afogadilho — assusta até o poderoso juiz Sergio Moro. Assusta por quê? Simples: Porque, ao contrário de outros países avançados, aqui em Pindorama cada juiz interpreta a lei ao seu modo. Pois o perigo reside exatamente aí: os juízes sabem do que são capazes interpretando as leis. Como os revolucionários franceses bem sabiam… Hoje o juiz diz “com base na livre apreciação” e… decide. A parte recorre opondo embargos e invoca a lei. O tribunal (inclusive o STJ, que deveria zelar pela legalidade) responde: “o juiz tem livre convencimento….”. E ainda por cima tasca uma multa no recorrente. Mais ainda: todos os tribunais da federação invertem — contra expresso texto legal — o ônus da prova em furto e tráfico de entorpecentes; divulga-se, contra expresso texto legal, escutas permitidas e clandestinas no Jornal Nacional; eliminam-se recursos sem fundamentação em flagrante violação da lei; arquiva-se processo com base em estado de exceção etc. (ler aqui extenso rol).
O que os leitores dizem sobre isso? O que a doutrina diz? Portanto, senhoras e senhores: vamos dizer claramente de onde vem os abusos cotidianos, cometidos à revelia da Constituição cidadã. Gaspari tocou na ferida, pois não? Nem precisamos criticar e discutir o conteúdo dos tipos penais (Alexandre Morais da Rosa já fez isso). Eugenio Pacceli escreveu, Rubens Casara e tanta gente boa. Portanto, estou dispensado.
Quero mesmo é falar do texto inspirador do Elio Gaspari. E do alerta da Maria Luiza. Que confirmam o que venho falando todas as semanas de forma chata nesta ConJur. Defendo a lei e a Constituição. Sou contra a tese de que o Direito é o que o judiciário diz que é. Pois agora parece que a coisa estourou… Há décadas luto contra abusos da lei. Luto pela jurisdição constitucional.
Como espelho retrovisor, basta ler o que escrevo há 20 anos. Sou talvez o constitucionalista mais “conservador”. Se eu não fosse um hermeneuta, seria provavelmente um originalista — esta acusação recebo todos os dias. Tudo porque não aceito correção do direito pela moral. [2] Logo, estou resguardando o produto que deve ser usado todos os dias pelos juízes e membros do MP: a lei e a CF. Tanto isso é verdade, que, de há muito, escrevo que juiz não é escravo da lei (também não é dono — eis o busílis que me caracteriza), podendo ele e os tribunais deixarem de aplicar a lei em seis hipóteses. Vejam: são seis hipóteses. Fora delas, os magistrados de todos os níveis têm obrigação de aplicar a lei votada aprovada democraticamente.
Até hoje, enfim, até a aprovação do projeto na madrugada do dia 30 de novembro, pensava-se que as ambiguidades das leis em geral permitiam interpretações das mais “livres” e que isso era muito bom… Claro: juízes e membros do MP acham isso bom, porque as tais ambiguidades permitem a sua "livre interpretação" para pegar os outros. Só que agora vem uma lei tipo Maria da Penha, como diz Gaspari, que causa esse espanto todo. E constatamos que juízes e promotores não confiam… nos juízes e promotores. Pelo jeito, não confiam, mesmo.
Observem os leitores a gravidade dessa falta de confiança “intrínseca”. Dois magistrados — André A. S. Bezerra e Eduardo Galduróz, ambos da Associação de Juízes para a Democracia — escreveram texto alertando para o fato de que essa lei (jabuti law) servirá para perseguir seletivamente juízas e juízes que, no seu garantismo, obstam a seletividade penal. Opa. Vejam a gravidade do que é dito pelos dois juízes. E o advogado Pedro Serrano denuncia: “A corda sempre estoura do lado mais fraco na vida tupiniquim. (…) Os profissionais sérios e discretos, a maioria, é que sentirão os sancionamentos no cotidiano forense. (…) Se forem atentos as garantias constitucionais, então, serão os primeiros atingidos”. Parece que Gaspari está correto. De novo: mas, em uma democracia, não temos que seguir a Constituição? Podem juízes serem perseguidos por serem garantidores da própria Constituição? Pensemos sobre isso seriamente.
A caixa de pandora do decisionismo
Tento fazer uma limonada disso tudo. O lado bom é que foi aberta a caixa de pandora do decisionismo brasileiro. Ou seja, estamos assumindo que o primeiro abuso vem do modo como interpretamos as leis. Bingo. Do modo como fomos deixando isso acontecer — e a doutrina é coautora disso tudo, admitindo livre apreciação da prova, livre convencimento e correções morais, verdade real, inquisitivismo, etc — parece evidente que isso é apenas a ponta do iceberg.
Os meus leitores estão vendo o que está acontecendo no Brasil? Quem sabe vamos discutir isso tudo, enfim, vamos falar seriamente acerca de como interpretamos e decidimos para os outros também. Até as ordenações filipinas já tratavam desse assunto. Leiamos a parte constante do Livro III, Título LXVI, que trata das sentenças definitivas. Já há, aqui, uma passagem interessante, que é a que diz [o juiz] tem que proferir "… a sentença 'definitiva', segundo o que achar 'alegado' e comprovado de 'uma' parte e da outra, ainda que lhe a consciência 'dite' outra 'coisa', e 'ele' saiba a verdade ser em contrário do que no feito 'for' provado; porque somente ao Príncipe, que não reconhece superior, 'é' outorgado 'por' Direito, que julgue segundo sua consciência". Tirante a questão do príncipe, veja-se o que já se dizia naqueles dias…
Mas, afinal, que raios de coisa é “a lei” no Brasil? Que coisa é essa de “hermenêutica”? Professores e juízes (e advogados e membros do MP) dizem em livros e em salas de aula que “a lei é o que o judiciário diz que é”. Será, mesmo? Não seria bom parar com mantras tipo “princípios são valores”, juiz boca da lei morreu e agora é a vez do juiz dos valores… Tinha que dar nisso, pois não? Então, como fica(mos)?
Cartas na mesa, portanto!
Este é o momento para colocarmos as cartas na mesa. Paremos com doutrinas que incentivam justamente isso que estamos tentando evitar: decisionismos, ativismos, corte de precedentes (leiam o brilhante artigo do juiz Eduardo Fonseca Costa, no qual ele mostra o equívoco de se dizer que há um sistema de precedentes no Brasil). Fujamos do século XIX. Paremos com o protagonismo. Deixemos o parlamento fazer leis. E julguemo-las inconstitucionais, se for o caso. Façamos interpretações conforme. Há seis hipóteses pelas quais o juiz pode resistir a aplicação da lei. E isso é bastante coisa. Mas paremos de substituir o legislador pelos juízos morais e políticos dos juízes e membros do MP. Chega de direito jurisprudencializado.
E que não intentemos mais fazer leis a partir de surfadas na onda de crises. Isso é perigoso (isso vale para o pacote do MPF, seus apoiadores e também para o parlamento, que não precisava ter votado isso na madrugada, cá para nós). Pode gerar crises institucionais. E crise institucional é assim que nem tiroteio: depois do primeiro tiro, ninguém mais sabe quem está atirando. Veja-se, por exemplo, o episódio do afastamento do presidente do senado feito por decisão monocrática de um ministro do STF.
Tudo isso era uma crônica de uma crise anunciada. (De)Formamos milhares e milhares de bacharéis, estudando por livros facilitadores, resumos e resumões. Isso tem de ser dito. É fato. Ninguém é filho de chocadeira. Sequer temos quadros para preencher as vagas de professores. Nossos concursos são quiz shows. E qualquer um se torna professor. E já posta textos nas “redes”. País de congressos. E coletâneas. Há livros sobre tudo. Os “bons” e “os que caem nas provas de concursos” são os que vendem. Já tem professor de cursinho ensinando com galinha pintadinha. O marco simbólico, para mim, deu-se quando li uma postagem de um professor de Direito, vangloriando-se de que conseguira aprovar um artigo em um Congresso de Direito. E foi incensado por dezenas de colegas professores e alunos, com frases como “monstro”, “eu chego lá”, “fabuloso”… O sonho de professor do Direito é ir a um congresso de Direito e apresentar um texto? Nem vou falar das dissertações e teses. Trabalho insalubre dá dissertação ou tese? Cheque sem fundo também? Suplico: voltemos a estudar… Direito! O que estamos fazendo é estudar teoria normativa da política (quando muito).
Denuncio há anos os predadores exógenos (moral, politica…) e endógenos (discricionariedade, livre convencimento, relativização da coisa julgada, realismo jurídico, jurisprudencialização do Direito…) do Direito. Derrogamos dispositivos do código civil usando princípios “fofinhos” para dar metade da herança para a amante e cinco pais e oito avós para as crianças. Isso é tudo, menos Direito. É apreciação moral. Prendemos pessoas e as decisões são recheadas de argumentos morais. Todos os dias descumprimos os — chamemos assim — “limites semânticos” do CC, CPC, CPP e da CF (e das demais leis). Ou vocês acham que tudo isso não dá uma tempestade perfeita? Ou a incentiva?
Leis e Constituição? O que há é um conjunto de decisões que substituíram a lei e a CF. Por isso, o nosso preclaro Elio Gaspari foi na pleura: os juízes têm medo do modo como os juízes interpretam e aplicam as leis. Simples assim.
Enfrentemos nossos fantasmas de frente e retiremos os esqueletos do armário
Por isso tudo, aproveitemos o momento para discutir o que sempre escondemos. Se interpretar não é um ato mecânico, também não é um ato de livre atribuição de sentido, tipo “escola do direito livre (da lei). Aproveitemos essa crise para criar. Nada de gatopardizar. [3] E nada de atirar fora a água suja com a criança dentro. Não adianta demonizar o parlamento. E nem o “pacote”. O furo é mais embaixo. Está no modo como interpretamos o direito.
A caixa de pandora é esta: juízes e promotores não confiam neles mesmos porque, com tanta “liberdade” para denunciar e julgar, eles mesmos podem ser as próximas vítimas. Por isso a minha proposta: vamos cumprir as leis direitinho e todos estaremos seguros. Inclusive os réus que sofrem com esse elastério aplicativo. Isso fará bem a eles também, se entendem minha ironia. Passemos a cumprir o prazo de prisão preventiva. Não deixemos gente presa mais de 169 dias (consultemos a legislação! — viva a legislação!). Não invertamos mais o ônus da prova. Enfim, façamos um pouco de hermenêutica ortomolecular ou constitucionalismo ortomolecular: para expulsar os “radicais livres” (traduzindo: para evitar os movimentos de direito livre que, sob vários disfarces, estão incrustrados na justiça). São eles que provocaram o “maior de todos os medos”: — o medo de nós mesmos. Ou de si mesmos.
De todo modo, já não é necessária a preocupação com o “crime de hermenêutica”,[4] contra o qual protestou Sergio Moro no Senado. No projeto do senador Roberto Requião, explicitamente estão — segundo o senador — as preocupações de Moro, nos seguintes termos: “Não constitui crime de abuso de autoridade o ato amparado em interpretação, precedente ou jurisprudência divergentes, bem assim o praticado de acordo com avaliação aceitável e razoável de fatos e circunstâncias determinantes, desde que, em qualquer caso, não contrarie a literalidade desta lei”.
Como é que é? “Não contrariar a literalidade desta lei”? Isso dá outra coluna. O projeto de Requião cria um paradoxo: admite divergência interpretativa — o que é correto (afinal, o problema do abuso está em decisões arbitrárias e contralegem e não em interpretações divergentes) — mas determina a interpretação “literal” da própria lei... Quer dizer: todas as leis podem ser “interpretadas com divergências de opiniões”, menos a própria lei que permite as divergências. Fenômeno hermenêutico. Vamos ganhar o Nobel. O relator tem tanto medo de abusos interpretativos que, mesmo permitindo divergências interpretativas, proíbe interpretação de sua própria lei. Ou seja: Requião não acredita… (os leitores podem complementar a frase). De todo modo, desde já — os hermeneutas — estamos à disposição para discutir esse assunto. Nós acreditamos em divergências. Só somos contra que se decida ao gosto do intérprete.
Numa palavra final, de minha parte, quero dizer que no contexto dos projetos sobre abuso de autoridade, sigo uma tese esgrimida pelo juiz Mauricio Ramires e pelo promotor Francisco Motta: temos que tomar cuidado para que não saltemos da panela da moral para o fogo da política. Por isso, de novo, isso só tem saída pelo direito. Por uma boa lei. Na qual as questões morais e políticas sejam discutidas antes. E que não possa — a lei — ser corrigida, na hora da aplicação, justamente pela moral e pela política (e sem precisar invocar a “literalidade” como está no projeto Requião). Eis o início de um bom debate.
1 Tão flagrantes foram as inconstitucionalidades do pacote que nem preciso ir mais a fundo, bastando chamar à colação o texto do promotor de Justiça do Paraná, Fuad Faraj, que escreveu Curitiba Em Transe. Até faço uma observação, para evitar generalizações: — o problema do MPF da lava jato não “representa” o MP dos Estados e tampouco todo o MPF.
2 Lembro aqui e aqui minha cruzada contra o ENI (estado de natureza Interpretativo), quando fiz um apelo aos positivistas. Lembro também das denúncias contra o protagonismo que estão em livros de Dierle Nunes, André Leal, M. Cattoni, Nelson Nery Jr, A. Bahia, G. Abboud, Rafael T. Oliveira, A. Hommerding, L.H.Madalena, F.Moraes, C. Tassinari, Francisco Motta, M.Ramires e tantos outros.
3 Gatopardismo vem de Il Gatopardo, em que “há que se mudar para que tudo continue como está” (há livro e filme).
4 Como se sabe, Sergio Moro falou no Senado em crime de hermenêutica, lembrando o juiz Alcides de Mendonça Lima, fato ocorrido no ano de 1896. Só uma correção ao que disse Moro. É que Mendonça Lima foi processado por fazer controle difuso de constitucionalidade (que estava na Constituição de 1891, só que era negado pelo poder judiciário). Atualmente se faz o contrário: interpreta-se a CF conforme leis ordinárias.
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