Senso Incomum

A febre dos enunciados e a constitucionalidade do ofurô! Onde está o furo?

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10 de setembro de 2015, 8h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Porque o furo da crise é mais embaixo
Estou fora do país e leio que a última polêmica de Pindorama é se a colocação de um ofurô em sacada de apartamento fere… a Constituição. Claro, também tem a discussão acerca do máximo de páginas que uma petição pode conter. Fantástico. Não esqueço também da invenção do “princípio da conexão”, pela qual Pindorama se sobressai na ciência e “vai em busca da verdade virtual”. Também tem a aplicação da ponderação para resolver se um pastor, que pensa que Deus é surdo, pode ficar pregando em determinado horário, circunstância que perturbaria um vizinho. E não é que a saída foi a ponderação? Discutiram a inconstitucionalidade do barulho do presbítero? Pamconstitucionalismo, a nova invenção? Por tudo isso, fazendo um trocadilho infame, penso que “ofurô” é mais embaixo. Seis avôs para um neto, quatro pais, metade da herança para a amante, indenização para o desamor do pai, inversão do ônus da prova no processo penal, portaria valendo mais do que a Constituição, jurisprudencialização do direito em um sistema romano-germânico (já existem mais enunciados e súmulas e OJs na Justiça do Trabalho que o número de artigos e parágrafos da CLT)… Onde vamos parar? Li também uma novíssima tese do direito pindoramense: segundo uma juíza, quem tem o carro roubado não precisa mais pagar as prestações de leasing! Definitivamente, o mundo está de olho na ciência jurídica de Pindorama! Vamos ganhar um Nobel… do ensino jurídico! Estocolmo: aqui vamos nós! Eis o preço que todos estamos pagando por termos pensado (e continuarmos pensando) que o direito é uma mera instrumentalidade. Uma ferramenta. E que pode ser ensinado por manuais de baixa densidade e resumos. E que qualquer assunto dá uma tese de doutorado. Enfim: que dogmática construímos? O custo? Olhemos para os lados. Como diz Nelson Rodrigues, tudo isso é fruto de muito esforço…! E o Conselheiro Acácio dizia: as consequências sempre vem depois. Numa palavra: mas o que isso tem a ver com o febre dos enunciados? Nada, é claro. Ou, melhor dizendo, tudo. Uma coisa não existiria sem a outra.

Porque não podemos dar respostas antes das perguntas
Sigo. Com efeito. Pensemos no sistema jurídico brasileiro ou no ordenamento como um todo, em como deveria ser a interpretação. Mas pensemos tudo isso como um papel dobrado sobre si mesmo. Só poderemos saber o que está dentro quando o desdobrarmos. Ou seja, primeiro teremos de abrir o papel. E isso quer dizer que somente saberemos o conteúdo no seu todo quando terminarmos de lê-lo. Isso é um pouco hegeliano. Mas é importante para podermos dizer que não podemos adivinhar as coisas e tampouco dar respostas antes que as perguntas sejam feitas. A ave de Minerva só levanta voo ao entardecer.

Parece que os juízes e processualistas em geral que apostam em enunciados tem essa nítida fé na filosofia pré-moderna (sim, pré-moderna), reaproveitada pelo positivismo jurídico sintático do século XIX. Isto é, pensam que a filosofia é o espelho da natureza e o processo é o espelho do direito. Portanto, uma tentativa de fazer isomorfismos (espécie de Wittgenstein I retrô). Eis a pretensão positivista: transportar a realidade para dentro de conceitos. Na França isso ficou conhecido como exegetismo. Na Alemanha como pandectismo ou Jurisprudência dos Conceitos (Begriffjurisprudence).[1] Lei e direito sendo a mesma coisa. Não há espaço para a faticidade. É como se fosse possível fazer juízos abstratos.

Pois é isso que estão fazendo os neo-pandectistas-enunciadores. Pegam o novo CPC e dão o sentido antecipado. Uma cautelar de sentidos. Inaudita factum. Pior: dão um sentido para além ou aquém do Código. Nítido drible da vaca hermenêutico. Laboram com conceitos sem as coisas. Os conceitos antes dos casos.

E quando a realidade é mais forte, transfere-se o poder de decidir para o juiz. Bingo: eis as duas formas principais de positivismo: o primitivo (exegético) e o axiologista-voluntarista (por exemplo, o normativismo kelseniano, pelo qual juiz constrói normas e não há modos de controlá-los, porque juízes não fazem ciência, para Kelsen: fazem política jurídica — aliás, o que são os tais enunciados, senão política jurídica?).

Tudo isso, à evidência, é um despropósito com fortes toques de a-historicidade. Duzentos anos de atraso. Além disso, é um desrespeito à autonomia do direito. Consequentemente, é um desrespeito à democracia e conspurca até mesmo a forma como os Poderes são enunciados (e a anunciados) na CF: legislativo, executivo e judiciário. Sim, essa é a ordem, mesmo que o parlamento esteja com problemas em face do comando do nosso unabomber Cunha.

Somente uma forte dose de ironia pode combater essa onda pandectista-retrô que assola o direito de Pindorama. Somente muito sarcasmo para admitir que um código que ainda não entrou em vigor já esteja sendo driblado e alterado, até mesmo nos seus limites semânticos (que, aliás, constitui um paradoxo em relação ao paradigma que querem reproduzir).

Dito isso, entro no jogo com a minha Critica Hermenêutica do Direito e com a jurisdição constitucional. Usando o próprio CPC (artigo 926), lanço algumas âncoras para tentar (as)segurar o minimum de sentido do novo Código. Antes que, com esta pré-dação de sentidos, este sobre um predação.

Portanto, falta só o governo abrir uma linha de crédito do BNDES para subsidiar as fábricas de enunciados. Eis a minha contribuição sem financiamento do BNDES. Antes disso, peço a atenção redobrada para o que digo na sequência:

O que estou dizendo não quer significar que, pelo fato de estar posto na lei (no caso, o CPC), é que deve ser cumprido. Ledo engano. Isso seria retroceder justamente ao exegetismo. Isso deveria ser óbvio, mas não o é, no entremeio de uma teoria do direito eivada de mixagens teoréticas. Na minha teoria hermenêutica da decisão (CHD) há seis hipóteses (ler aqui) nas quais o judiciário pode deixar de aplicar a lei ou um dispositivo legal (texto jurídico na linguagem hermenêutica). Assim, se um enunciado — por mais inapropriada que seja a opção por esse modelo-de-enunciados — estiver devidamente fundamentado em uma das seis hipóteses, não será visto como inconveniente ou indevido stricto sensu. Ao contrário: como indício hermenêutico-doutrinário, será bem-vindo.Ou seja: terá o papel de doutrina.

Destarte, estando isso bem esclarecido, eis os primeiros contraenunciados e também alguns que devem servir para evitar a formação de enunciados-que-digam-o-contrário-do-que-diz-o-NCPC (entendido o acima delineado, é claro). São estes os meus primeiros vai ter mais contraenunciados (tendo em vista dos enunciados da Enfam); despiciendo dizer que o conteúdo da coluna é colaborativo; sem fulanização; sua pretensão é de construir um sistema jurídica mais justo e equânime fairness ; deve, pois, ser recebido desse modo, como um debate típico de países adiantados):

  • O artigo 489, parágrafo 1º concretiza garantias processuais já previstas na Constituição, aplicáveis a todo o sistema de justiça brasileiro. Portanto, alcança paradigmaticamente os direitos trabalhista, penal, os juizados especiais (ao contrário do Enunciado Enfam 47) e tudo mais que se vem negando.
  • O artigo 489 não é um mero check list, não devendo ser encarado de uma perspectiva formalista, mas deve refletir o próprio conteúdo jurídico em jogo, a “fundamentação da fundamentação”[2], e isso também é controlável.
  • Ao contrário do que diz o Enunciado Enfam 2, ofende, sim, a regra do contraditório o pronunciamento jurisdicional que “invoca princípio quando a regra jurídica aplicada já debatida no curso do processo é emanação daquele princípio”, porque o princípio não é uma “katchanga”.
  • Ao contrário do que diz o Enunciado Enfam 4, na declaração de incompetência absoluta se aplica, sim, o disposto no artigo 10, parte final, do CPC;
  • Reza o Enunciado 5 do Enfam que "não viola o artigo 10 do CPC/2015 a decisão com base em elementos de fato documentados nos autos sob o contraditório". Contudo, viola, sim, o art. 10 do CPC a decisão que —  ainda que "com base em elementos de fato documentados nos autos sob o contraditório" —, inovar em fundamento (fático-jurídico) surpreendendo as partes em sua interpretação;;
  • Ao contrário do que diz o Enunciado Enfam 6, constitui, sim, julgamento surpresa o lastreado em fundamentos jurídicos diverso das partes, ainda quando embasados em provas submetidas ao contraditório.
  • O Enunciado Enfam 9 não desobriga o juiz (e nem poderia, porque a Enfam não legisla) de também “identificar os fundamentos determinantes ou demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento, sempre que invocar jurisprudência, precedente ou enunciado de súmula”, ou se divergir da interpretação dada pelas partes a estas.

E eis os meus enunciados para evitar a fabricação de enunciados despistadores:

  • Entende-se como “fundamento” a obrigação fundamental… de fundamentar, conforme estabelecido na Constituição e em qualquer país civilizado.
  • O artigo 371, ao não mais prever a palavra “livremente”, significa que o livre convencimento foi expungido do CPC, sendo uma opção paradigmática feita pelo legislador em fiel observância da teoria do direito contemporânea; se os processualistas não apreenderam nada com os estragos do livre convencimento, então não poderão de queixar nunca mais; por isso, a necessária sinonímia da dicção do art. 371;
  • O artigo 926 é um texto jurídico que deve ser cumprido pelos juízes e tribunais, não sendo, portanto, uma norma programática (sic); seu descumprimento acarreta violação de lei federal;
  • O parágrafo segundo do artigo 489, ao dizer que haverá ponderação no caso de colisão entre normas, é inconstitucional por violação do principio da separação-divisão de poderes, uma vez que normas são regras e princípios e, consequentemente, o afastamento de uma regra (que, portanto, é uma norma) implica criação de direito, conforme já expliquei várias vezes (leiam este texto como um conto, do início ao fim);
  • O CPC não estabeleceu um sistema de precedentes vinculantes, mas, sim, um sistema de provimentos vinculantes;
  • Precedente não pode ser lido como sinônimo de jurisprudência;
  • Antes que alguém diga o contrário, afirmo que é constitucional a previsão de vinculatividade das decisões emanadas do STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade;
  • O inciso III do artigo 927 é inconstitucional, devendo, em controle difuso ou concentrado, ser expungido do ordenamento;
  • Somente podem ser vinculantes as súmulas vinculantes editadas segundo a EC 45, com quorum de oito ministros e obedecidos os requisitos legais para a emissão do provimento; portanto, é inconstitucional o inciso IV do artigo 927;
  • O inciso V do artigo 927, que diz ser vinculante a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados, deve sofrer uma verfassugnskonforme Auslegung (interpretação conforme a Constituição), ou seja, somente é constitucional se a orientação do plenário ou órgão especial não se confrontar com orientação tomada pelo Supremo Tribunal Federal;3
  • Para não expungir o artigo 6º do novo CPC e salvá-lo, a única solução parece ser uma verfassungskonforme Auslegung (interpretação conforme à Constituição), em algo como: "Todos os sujeitos do processo [leia-se: o juiz] devem cooperar entre si [leia-se: com as partes] para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva" (tachado, grifo e interpolação nossas)4.
  • Os embargos de declaração servirão a explicações pontuais, sem institucionalizar a tolerância com decisões mal feitas. Poderá se avançar com o instituto, desde que lido atentando para a revolução estrutural do novo Código: ampliação dos direitos ao contraditório (artigo 10), à fundamentação (artigo 489, parágrafo 1º), exigência de que os julgamentos tenham que manter coerência e integridade (artigo 926) e fim do livre convencimento5.

Por fim, um metaenunciado pra quem quiser continuar a fazer Fóruns de enunciados:

Cuidado pra não cair em autocontradição performativa, sob o paradigma instaurado pelo próprio código-objeto-de-enunciação6!

É isso. São os primeiros contraenunciados e outros que visam a blindar o CPC (sim, enunciados sobre o CPC baseados no… próprio CPC e, acreditem, na Constituição Federal! Bingo!). Também estão baseados — todos — no livro Comentários ao Código de processo Civil, capitaneado por Lenio Streck, por Dierle Nunes, Leonardo Cunha e Alexandre Freire, pela Editora Saraiva, que está no prelo (em brevíssimo tempo, à venda nas melhores casas do ramo).

Ao mesmo tempo, tudo isso serve para aprendermos um pouco de história, de democracia e de resistência. Devemos apreender com nossos erros. E o diabo sabe mais por velho do que por diabo.

Espalhemos a notícia. Estamos resistindo aos neo-pandectistas ou aos conceptualistas-retrô. Cada um tire dez cópias e mande para dez amigos que por sua vez devem fazer o mesmo. Quem não fizer, será vítima da fúria de Hermes.


1 Claro que em Pindorama isso virou uma vulgata. Não quero ser processado por algum herdeiro de algum pandectista legítimo ou um exegetista da cepa.

2 Discutindo o artigo (e suas controversas implicações práticas) a partir desta categoria hermenêutica que cunhei, veja-se o trabalho de meus orientandos: TASSINARI, Clarissa ; FERREIRA LOPES, Ziel. Aproximações hermenêuticas sobre o art. 489, §1º, do NCPC: julgamento analítico ou fundamentação da fundamentação? In: ALVIM, Thereza et al (Org.). O Novo Código de Processo Civil Brasileiro –Estudos dirigidos: Sistematização e Procedimentos. São Paulo: Forense, 2015 [em pré-venda].

 

3 O artigo 927 foi comentado por mim e por Georges Abboud no livro no prelo Comentários ao Código de Processo Civil (Saraiva).

4 STRECK, Lenio; DELFINO, Lúcio; BARBA, Rafael Giorgio Dalla; LOPES, Ziel Ferreira. O "bom litigante": riscos da moralização do processo pelo dever de cooperação do novo CPC. In: Revista Brasileira de Direito Processual: RBDPro, Belo Horizonte, v. 23, n. 90, p. 339-354, abr./jun. 2015.

5 Aos juízes, não serão mais toleradas fundamentações “que mantém a decisão atacada por seus próprios fundamentos”. Sobretudo, por agora se reconhecer legalmente a deficiência de qualquer decisão que “não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador” (art. 489, §1º, IV), o que põe fim a antiga corrente jurisprudencial. Já com relação às partes, será vedada a interposição de embargos de declaração se seguidamente reincidirem no abuso deste direito (por usos “protelatórios”, art. 1026, §4º). Assim, aumenta a “efetividade qualitativa” dos aclaratórios. No limite, pode-se seguir afirmando que, “em determinadas circunstâncias e em certos casos, uma decisão, antes de ser atacada por embargos de declaração, é nula por violação do inciso IX do art. 93”. MENDES, Gilmar Ferreira; STRECK, Lenio Luiz. In: CANOTILHO, J. J. Gomes et al. (Coord). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1325.

6 Além do que já disse Marco Paulo D. Di Spirito (citado na semana passada), veja-se a consideração de Dierle Nunes e Lúcio Delfino: “O próprio evento promovido pela Enfam, circunscrito à participação de magistrados, já é emblemático e, por si só, até dispensaria a elaboração do malfadado Enunciado 1. É que, se o contraditório não implica influência das partes na construção das decisões judiciais, nada mais adequado que a magistratura se unir e definir, sozinha, os sinais de orientação com os quais deverão trabalhar juízes de todo o Brasil ao lidar com o novo CPC. Os juízes decidem como se deve interpretar cada qual dos dispositivos processuais, formando seus enunciados, e nós, os cidadãos-utentes da jurisdição, curvamo-nos comodamente àquilo por eles deliberado (!?)”.  NUNES, Dierle; DELFINO, Lúcio. Enunciado da Enfam mostra juízes contra o contraditório do novo CPC. In: Consultor Jurídico. São Paulo, 03 dez, 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-set-03/enunciado-enfam-mostra-juizes-contraditorio-cpc. Acesso em 03/09/2015.

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