Opinião

Nova AGU não precisa passar pela unificação das carreiras

Autor

  • Simone Anacleto

    é pós-graduada em Direito da Economia e da Empresa pela FGV e em Direito e Economia pela UFRGS mestre em Direito do Estado pela UFRGS e procuradora da Fazenda Nacional.

25 de novembro de 2015, 5h07

No início de 2015, tomou corpo uma enorme mobilização oriunda da base das carreiras da Advocacia Pública Federal, com centenas de advogados da União, procuradores da Fazenda Nacional, procuradores do Banco Central e procuradores Federais, dos mais distantes rincões do país, abordando parlamentares federais, indo semanalmente ao Congresso Nacional, num forte trabalho de convencimento a respeito da importância do trabalho por eles desempenhado para a sustentação do Estado brasileiro, bem como denunciando as más condições de trabalho e de remuneração, em comparação com as demais funções essenciais à Justiça.

Essa mobilização verdadeiramente histórica sensibilizou os deputados federais, que perceberam o absurdo que é a Advocacia Pública Federal ser, como vem sendo, menosprezada pelo governo central, muitas vezes trabalhando em repartições infestadas de animais peçonhentos e/ou sob ameaça de despejo por falta de pagamento de alugueis, e sendo seus membros remunerados com aproximadamente a metade do que ganha um magistrado ou um membro do Ministério Público federal.

O resultado prático, até agora, foi a aprovação, em primeiro turno, pela Câmara dos Deputados, da PEC 443/09, bem como a instalação da Frente Parlamentar Mista em Defesa da AGU.

Por outro lado, talvez o ponto mais positivo de toda a mobilização tenha sido a percepção construída pelos próprios Advogados Públicos Federais de sua importância para as instituições brasileiras, bem explicitada em algumas expressões que passaram a ser repetidas em todo o país, tais como “a necessidade de paridade de armas com as demais funções essenciais à Justiça” (o que poderia ser atingido com a aprovação da PEC 443/09, assim como da PEC 82/07) e “a construção de uma nova AGU”.

No entanto, no último dia 15 de outubro, os ministros da Advocacia Geral da União e do Planejamento anunciaram publicamente a proposta de reajuste para os próximos quatro anos aos advogados públicos federais. Na ocasião, o ministro da AGU também afirmou que seriam iniciados debates institucionais sobre a questão da unificação das quatro carreiras atualmente existentes em nível federal numa só. Tais debates encerraram na última quinta-feira e até esta quarta-feira (25/11) transcorre uma votação eletrônica sobre o assunto, aberta a todos os membros das carreiras.

A partir de tal anúncio, começou uma verdadeira guerra fratricida entre os advogados públicos, antes irmanados no propósito comum de sua valorização institucional.

Ocorre que os advogados da União, em sua grande maioria, são contrários a tal unificação; os procuradores da Fazenda Nacional estão divididos; e os procuradores do Banco Central e procuradores Federais, em sua grande maioria, são favoráveis.

“Data maxima venia”, há muitos equívocos em toda essa discussão, tanto da parte do próprio governo, como das associações representativas dos advogados públicos federais.

É que, embora a questão sem dúvida possua forte viés político, não podemos perder de vista os parâmetros dados pela ordem jurídica vigente, em especial pelo art. 131 da CF.

Ora, em 2002, ao julgar a ADI 2.713, o Supremo Tribunal Federal considerou constitucional a MP 43/02 que transformou os assistentes jurídicos da AGU em advogados da União. Foi entendido que a reestruturação de cargos não ofendia o artigo 131, que exige lei complementar para dispor sobre organização e funcionamento da AGU. O STF considerou que a criação e transformação de cargos podem ser feitas por lei ordinária, à luz do artigo 48, X, da CF.

Assim, à primeira vista, seria possível, por mera medida provisória, unificar todos os membros das quatro carreiras de advogados públicos federais numa só, sem necessariamente mexer nos órgãos hoje existentes — é que pelo menos a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional precisaria subsistir, uma vez que sua extinção só poderia ser feita por emenda constitucional, já que ela está prevista especificamente no § 3º do artigo 131 da CF.

Contudo, tal interpretação não resiste a um exame um pouco mais profundo.

Primeiro, porque é preciso ler toda a Constituição Federal e não só o artigo 131 isoladamente.

Ora, na medida em que incumbe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional a execução da dívida ativa de natureza tributária, a teor do § 3º do artigo 131, ela integra a administração tributária federal, a respeito da qual, existem vários outros dispositivos constitucionais esparsos. Em especial, confira-se o artigo 37, XXII, da CF:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional 19, de 1998)

XXII – as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)

Como se vê, em sendo a carreira de procurador da Fazenda Nacional a carreira específica da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, que, por força da própria Constituição, é órgão integrante da administração tributária, tal carreira não pode ser extinta para compor uma nova a ser criada. A não ser que seja alterada a própria Constituição Federal…

Contudo, mesmo em relação aos Advogados da União e aos Procuradores Federais[1] a pretendida unificação não é tão simples como parece à primeira vista.

Veja-se que o artigo 131 da CF cuidou apenas da representação da União propriamente dita — e, não, de suas autarquias e fundações.

Por outro lado, a lei complementar que dispõe sobre a organização e funcionamento da AGU (LC 73/93) segue no mesmo sentido, visto que seu art. 1º refere que A Advocacia-Geral da União é a instituição que representa a União judicial e extrajudicialmente”. Apenas os artigos 17 e 18 da lei complementar referem-se à representação judicial e extrajudicial, bem como a consultoria e assessoramento jurídicos, das autarquias e fundações públicas, ficando claro que não se confundem com a AGU, estando somente sob a supervisão do Advogado-Geral da União.

Já a Lei 10.480/02 que criou a Procuradoria-Geral Federal, órgão para o qual migraram os antigos procuradores autárquicos e fundacionais, criando-se a carreira de procurador federal, é muito clara ao dispor em seu artigo 9º: “É criada a Procuradoria-Geral Federal, à qual fica assegurada autonomia administrativa e financeira, vinculada à Advocacia-Geral da União.”

Esse entendimento, de que a rigor os procuradores federais não integram a AGU, mas, sim, um órgão a ela vinculado, foi expresso pelo próprio Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 602.381.

Nesse contexto, unificar carreiras é um grave risco para todos os envolvidos.

Os assistentes jurídicos, sim, já estavam na AGU. O que havia eram duas carreiras muito semelhantes na AGU e foi mantida uma delas (a de advogados da União), absorvendo a outra (a de assistentes jurídicos).

Mas os procuradores federais não integram a AGU e, ademais, têm função perfeitamente distinta de advogados da União e de procuradores da Fazenda Nacional (estes últimos defendem a União, enquanto Administração Direta, e os procuradores federais defendem outras pessoas jurídicas de Direito Público, quais sejam, as autarquias e fundações públicas, integrantes da Administração Indireta).

E a concepção da atual unificação é diferente da que pautou a unificação entre advogados da União e assistentes jurídicos, pois aí manteve-se uma das carreiras pré-existentes[2]; agora, pretende-se criar uma nova, abarcando as funções diferentes desempenhadas por cada uma das atualmente existentes, as quais deixarão de existir.

Por todo o exposto, unificar os procuradores federais com os advogados da União e procuradores da Fazenda Nacional, ou mesmo só aos advogados da União:

* implica necessariamente falar-se em transposição (que o STF, em outros casos, já considerou inconstitucional; na melhor das hipóteses, criará para todos uma profunda insegurança jurídica por muitos anos, até haver uma decisão definitiva do próprio STF);

* cria uma situação esdrúxula, pois os integrantes de uma mesma carreira (ou seja, os mesmos Advogados Públicos Federais) representarão pessoas jurídicas distintas e que podem, ainda que eventualmente, ter interesses jurídicos conflitantes;

* é inconstitucional, seja porque o artigo 131 da CF só cuida da representação da União, seja porque o artigo 131 remete à lei complementar sua organização e funcionamento e, ao contrário do que aconteceu no caso dos Assistentes Jurídicos, os Procuradores Federais não estão na AGU, à qual são apenas vinculados; ademais, têm por competência a representação de outras pessoas jurídicas que, embora integrem a Administração Pública, não se confundem juridicamente com a União; seria preciso mudar a AGU na própria LC 73/93 em termos de organização e funcionamento, para acometer-lhe a atribuição de representação, também, de autarquias e fundações; isso não pode ser alterado por mera medida provisória, ou mesmo lei ordinária.[3]

Por fim, ninguém pode, de antemão, garantir os direitos dos membros ativos, muito menos dos inativos hoje existentes. Dizer que “a gente resolve isso depois no Congresso Nacional” chega a ser de uma irresponsabilidade atroz!

Na própria criação da Procuradoria-Geral Federal, por exemplo, os procuradores autárquicos e fundacionais aposentados ficaram em quadros de carreiras em extinção, perdendo a paridade com os seus equivalentes ativos, que deixaram de existir.

Em síntese, os argumentos em prol da unificação de carreiras são, na verdade, falaciosos e não resistem a uma análise técnica um pouco mais profunda:

* a unificação das carreiras, com a manutenção dos órgãos hoje existentes de que se tem falado, para viabilizá-la por medida provisória (sem alterar a lei complementar), não acarretará nenhuma economia para a sociedade, que só poderia advir da diminuição de órgãos; ademais, haverá custos de implantação administrativa da nova carreira;

* só se logrará, na verdade, criar um “carreirão” mais verticalizado e diretamente subordinado ao Advogado-Geral da União do que as carreiras que hoje existem, contrariando a tendência contemporânea de qualquer grande organização pública ou privada de especializar seus profissionais em busca de uma otimização da qualidade do trabalho pelo conhecimento acumulado;

* não pode ser feita sem, no mínimo, dúvidas profundas sobre sua constitucionalidade e compatibilidade com a LC 73/93, lançando todos os membros da AGU e a própria AGU, além dos próprios Procuradores Federais, de uma situação jurídico-institucional razoavelmente confortável como a que se tem atualmente para uma profunda insegurança jurídica;

* do jeito que está sendo conduzida, de afogadilho e sem a discussão de um projeto um pouco mais concreto, ninguém, em sã consciência, pode garantir a preservação dos direitos, seja de ativos, seja de inativos das carreiras que existem, até porque, como sabemos, não existe direito adquirido frente a novo regime jurídico. Muito menos, há como garantir a especialização de funções.

Mesmo assim, uma nova AGU é possível? Penso que sim! E incluindo os procuradores federais… Mas ela não precisa passar por uma unificação de carreiras.

A ideia de que “juntos somos mais fortes” pode persistir com o ingresso dos Procuradores Federais na AGU, mantendo sua característica de representantes judiciais e extrajudiciais das autarquias e fundações públicas.

Como visto acima, no mínimo, teríamos que alterar a LC 73/93 para dispor sobre um novo funcionamento e organização da AGU.

Somos todos advogados públicos federais e é absolutamente, totalmente injustificável o fosso que nos separa da magistratura e do Ministério Público.

Para bem defender o Estado brasileiro (Administração Direta e Indireta), precisamos nos fortalecer institucionalmente. Por exemplo, urge que seja estabelecido um prazo máximo para o exercício dos cargos em comissão (DAS), visto que estamos numa república e não numa monarquia, com verdadeiros privilégios vitalícios.

Mas, acima de tudo, precisamos de paridade de armas com as demais funções essenciais à Justiça, inclusive com pelo menos uma aproximação em termos remuneratórios.

E se o governo fosse minimamente estrategista, teria ele próprio abraçado a proposta da PEC 443, bem como tê-la-ia defendido com unhas e dentes.

A meu sentir, a única maneira da impedir que magistrados e membros do Ministério Público continuem se outorgando aumentos de subsídios descolados da realidade brasileira é… Colando-os à realidade brasileira!

Não é o caso de se interferir na autonomia institucional deles, que tem outras e boas razões para existir.

Mas, se estiverem atrelados à advocacia pública federal, cada aumento de subsídio que propuserem para si mesmos só passará no Congresso Nacional se for factível para todos, o que tornará necessariamente essa questão remuneratória muito mais responsável do que é hoje. E, sem dúvidas, mais justa.

Esse, a meu ver, é o discurso que as nossas associações deveriam estar fazendo — não o da unificação de carreiras.

Essa seria a melhor estratégia nas mãos do Governo Federal para resolver definitivamente a questão remuneratória pra todos os Poderes da República Federativa do Brasil.


1 Doravante, em todos os momentos que referir Procuradores Federais, estarei me referindo, implicitamente, também aos Procuradores do Banco Central, os quais são igualmente advogados de uma autarquia federal, como os Procuradores Federais o são de todas as demais.

2 Uma unificação semelhante a essa foi a que ocorreu por ocasião da criação da assim chamada Super Receita, pela Lei n. 11.457/07 – nesse caso, embora se tenha dado um novo nome, no fundo, o que ocorreu foi que a carreira de Auditor da Receita Federal foi mantida com funções um pouco ampliadas e absorveu a carreira de Auditor-Fiscal da Previdência Social; por outro lado, embora a “nova” carreira tenha tido suas atribuições ampliadas, tanto as funções dos antigos Auditores da Receita Federal, quanto dos antigos Auditores Fiscais da Previdência Social, diziam respeito à cobrança de tributos; não havia nenhuma grande diferença, no fundo, entre as atribuições de uns e outros, apenas uma distinção por natureza de tributo que criava efetivamente ônus para a sociedade e foi racionalizado (vide a questão da duplicidade de certidões em matéria tributária, hoje superada).

3 Isso sem falar na questão acima já tratada específica dos Procuradores da Fazenda Nacional, os quais, por integrarem órgão que compõe a administração tributária, a teor do art. 37, XXII, da CF, não podem ter sua carreira simplesmente extinta para integrar uma outra mais ampla.

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