Como se produz um jurista? O modelo inglês (parte 17)
10 de junho de 2015, 14h45
Na coluna passada, começamos a análise do modelo jurídico inglês de ensino, formação, estrutura universitária e de carreiras profissionais. Nossa análise hoje se ocupará da regulação do ensino jurídico, o acesso à universidade, a formação do futuro jurista na Inglaterra e no País de Gales.
O texto de hoje é fortemente baseado no relatório para a Inglaterra e País de Gales sobre o papel da prática na formação jurídica, elaborado por Julian Lonbay, da Universidade de Birmingham.[1] Agradeço ao lecture Mattew Dyson, da Universidade de Cambridge, pelo auxílio nesta série de colunas.
Diplomas e regulação do ensino jurídico
Até o ano de 2008, havia 108 instituições de ensino superior reconhecidas pela Solicitors Regulation Authority (SRA) e pelo Bar Standards Board (BSB) como dotadas de competência para emitir os Qualifying Law Degrees (QLD).[2] Essas instituições de ensino superior não se localizam apenas na Inglaterra e no País de Gales, mas também na Irlanda do Norte e na República da Irlanda.[3] No entanto, a Inglaterra e o País de Gales só admitem a expedição de QLD para instituições que formem seus alunos em Direito inglês, a despeito de todas elas terem liberdade na definição de seus currículos.
A divisão entre SRA e BSB dá-se por efeito de uma divisão da advocacia em duas classes: solicitors e barristers, uma tradicional e antiga peculiaridade inglesa. Os solicitors são representados pela Law Society. A representação dos barristers cabe ao Bar Council. É absolutamente equivocado dizer que tanto a Law Society quando o Bar Council seriam uma “OAB inglesa”, como é frequente se ler em algumas publicações. Nenhuma dessas entidades possui natureza institucional ou prerrogativas político-jurídicas semelhantes ao que é conferido à OAB pela Constituição e pelo Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil. Em outra coluna, vai-se tratar especificamente das profissões jurídicas inglesas e galesas. No entanto, adiantam-se duas diferenças básicas entre solicitors e barristers: os últimos elaboram peças, emitem pareceres e eventualmente lecionam nas universidades. Eles não representam diretamente as partes em juízo e, duramente séculos, exerceram o monopólio da sustentação oral nos tribunais superiores. Essa restrição desapareceu de direito, mas, de fato, só os barristers têm exercido esse papel nos dias de hoje. Quantos aos solicitors, eles têm a função da representação judicial e extrajudicial das partes. Eles são os advogados, no sentido brasileiro, nos processos judiciais e em negócios jurídicos que dependam da participação de um profissional dessa natureza.
A SRA é um órgão regulatório da profissão de solicitor, ao passo em que o BSB exerce idêntica função em face do barristers.
A SRA é uma entidade que exerce uma função regulatória dos serviços jurídicos dos solicitors e bancas de advocacia, que foi instituída pelo Legal Services Act de 2007, tendo por objeto a defesa do interesse público, da rule of law, a melhoria da Justiça, a proteção e a defesa da concorrência dos serviços jurídicos, a defesa dos consumidores e o estímulo a uma boa formação dos profissionais do Direito.
Por sua vez, o BSB foi criado para idênticas funções em relação aos barristers. Sua composição é mista, tendo em seu conselho barristers e leigos, o que se justifica por uma necessidade de se dotar a classe de alguma forma de controle externo.
O valor das anuidades nos cursos de Direito
Para um brasileiro, que convive com o ensino superior privado pago e seu equivalente público sem qualquer contraprestação pelo aluno, é interessante observar que as universidades inglesas e galesas cobram de seus estudantes uma anuidade com teto fixado em 3.500 libras esterlinas, em valores de 2008. As universidades públicas são financiadas pelo Estado por meio de recursos complementares aos auferidos das anuidades.[4]
As universidades privadas, que são em número expressivamente menor que as públicas, cobram valores bem mais altos, algumas delas chegando a anuidades de 10 mil libras. A razão dessa disparidade é que as privadas não recebem qualquer tipo de subvenção ou apoio estatal.[5]
Os estudantes pagam essas anuidades com dinheiro da família, por meio de empréstimos (pagos após a conclusão do curso superior e muito onerosos para os recém-formados) ou por intermédio de fundos educacionais, que são contratados desde muito cedo por seus pais, à semelhança do que se faz no Brasil nos fundos de previdência privada ou nas cadernetas de poupança abertas para os filhos quando estes ainda são crianças. Cursar uma faculdade de Direito não é algo vulgar e exige enormes sacrifícios pessoais ou familiares para os alunos.
Como os alunos ingressam nos cursos de Direito?
Não existe um padrão nas universidades inglesas para o acesso aos cursos de Direito. Em algumas delas, o candidato tem de fazer um requerimento (a famosa aplication) no qual demonstram sua excelência como estudante no ensino médio, por meio da comprovação de um número específico de conceitos A (em geral, três conceitos A). Outras universidades usam ainda o National Admission Test for Law (LNAT).[6]
O LNAT é um exame utilizado desde 2004 pelas universidades de Birmingham, Bristol,
Cambridge, Durham, East Anglia, Nottingham, Oxford e pela University College London. Ele objetivou criar outros filtros para o ingress nos cursos jurídicos em razão do aumento da competitividade e dos níveis dos conceitos dos alunos.
Segundo dados de 2008, 27.384 mil estudantes candidataram-se a um vaga nos cursos jurídicos ingleses e galeses, tendo sido admitidos 19.020 postulantes, o que implica um percentual de 69,5% candidatos aprovados.[7]
A estrutura do curso jurídico na Inglaterra e no País de Gales
Como vimos nas várias colunas anteriores, o ensino jurídico europeu foi transformado após a Declaração de Bolonha e, salvo exceções, sua estrutura é baseada em ciclos, sendo que o primeiro deles corresponde a uma média de 3 anos, seguido de 2 anos de formação complementar acadêmica (o “Mestrado de Bolonha”) ou de formação profissional voltada para os Exames de Estado. Na Inglaterra e no País de Gales, um curso jurídico padrão dura 3 anos, à semelhança do ciclo de formação básica europeia. É possível que ele se estenda por mais 1 ano se o aluno optar por cursar disciplinas de outra faculdade.[8]
Existem ainda cursos jurídicos com duração de 2 anos, mas que exige do aluno a comprovação de que ele já é graduado em outra faculdade. [9] Por fim, é também possível obter o GDL – Graduate Law Diploma Courses, que é realizado em apenas 1 ano, em circunstâncias específicas (desenvolver).[10]
Uma peculiaridade do modelo anglo-galês, que o aproxima do modelo francês, é a não obrigatoriedade da conclusão de uma faculdade de Direito para que alguém se habilite a se tornar um solicitor ou um barrister.
O currículo e formação do aluno nas faculdades de Direito
A matriz curricular de um curso jurídico padrão (modelo de 3 anos) é formada por, no mínimo, 2/3 de disciplinas obrigatórias. Há, assim como na Alemanha, uma correlação entre as disciplinas obrigatórias e as “sete matérias fundamentais” exigidas para os candidatos ao exame JASB, habilitante para as carreiras jurídicas. Essas 7 disciplinas do JASB são as seguintes: a) Direito Penal; b) Equity and Trusts; c) Direito da União Europeia; d) Obrigações 1 (Contratos); e) Obrigações 2 (Torts, que se pode traduzir literariamente como Responsabilidade Civil, embora seja mais literal traduzir por Delitos Privados); f) Property Law-Land Law, uma disciplina que geralmente é traduzida para Direitos Reais, embora seu conteúdo seja bastante diverso e envolve questões contratuais que, no Brasil, seriam típicas do Direito Obrigacional; g) Public Law, uma espécie de guarda-chuva no qual se inserem o Direito Constitucional, o Direito Administrativo e Direitos Humanos, esta última uma matéria mais voltada para o estudo do Tratado Europeu de Direitos Humanos e menos para os conteúdos mais elásticos que se costuma encontrar nos currículos brasileiros para as disciplinas sob esta rubrica. É também componente curricular a formação em legal research, traduzível literalmente por “pesquisa jurídica”, mas que em nada tem haver com o sentido brasileiro. Trata-se de um treinamento para que os alunos saibam pesquisar no emaranhando de precedentes do sistema jurídico inglês.
Alguns aspectos merecem especial atenção do leitor brasileiro.
O primeiro, que já se evidenciou nas traduções feitas acima, está na dificuldade de se compatibilizar ou comparar os nomes e os conteúdos de certas disciplinas inglesas com seus (aparentemente) correlatos brasileiros. Tal advertência pode parecer um truísmo, mas é muito importante quando se faz estudos sobre a matriz curricular inglesa a fim de apontar eventuais deficiências do modelo brasileiro ou mesmo com o intuito de transpor para o Brasil a experiência inglesa.
O segundo aspecto é a indiferença da matriz curricular obrigatória com disciplinas propedêuticas, como Filosofia, Sociologia, Antropologia ou Psicologia. O aluno inglês pode até cursar essas disciplinas, mas elas não são obrigatórias e têm quase nenhuma influência para a admissão do graduado em Direito nos exames que o habilitam ao exercício das profissões jurídicas. Não há correlação empiricamente comprovável entre qualidade de ensino e aumento de matérias metajurídicas nos modelos de formação jurídica que estudamos até agora. Este colunista entende que tais matérias são muito importantes para qualquer formação universitária – e não apenas a jurídica -, mas considera que é mais honesto intelectualmente defendê-las sob fundamentos coerentes com a realidade e não com base em impressões equivocadas sobre o modo como se estruturam as matrizes curriculares dos sistemas jurídicos mais eficientes.
O terceiro aspecto está na leitura prudente sobre outra afirmação comum hoje no debate sobre reformas curriculares no Brasil. O modelo inglês não adota uma variedade significativa de conteúdos curriculares “inovadores”. Em verdade, como se observou da enumeração acima, eles são tradicionais e voltados para a boa formação de um profissional que irá atuar nos espaços da advocacia, magistratura e Ministério Público. Evidentemente que cada instituição inglesa ou galesa possui liberdade para conformar suas matrizes curriculares e que existem inúmeras disciplinas que mesclam conteúdos jurídicos, políticos, econômicos ou de administração. No entanto, estas matérias atendem a uma demanda comum aos cursos jurídicos e não jurídicos, bem como às escolhas formativas dos estudantes. Não se constituem, porém, no eixo central da formação e nem se integram em um projeto uniforme ou em um planejamento acadêmico mais abrangente.
Um ponto também notável é que o curso jurídico anglo-galês, nesta chave, é mais próximo da realidade norte-americana, no que se refere ao compartilhamento de disciplinas e à abertura para alunos e docentes estrangeiros. O multiculturalismo e a diversidade, que são marcas da sociedade inglesa contemporânea, revelam-se também nos cursos jurídicos.
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Na próxima semana, veremos as profissões jurídicas inglesas e mais alguns aspectos da estrutura universitária.
[1] LONBAY, Julian. Report for England and Wales: the role of practice in legal education. p. 1-19. Abr. 2010.
[2] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[3] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[4] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[5] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[6] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[7] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[8] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[9] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
[10] LONBAY, Julian. Op. cit. loc. cit.
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