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Recuperação judicial de grupos de empresas gera controvérsia e transtornos

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6 de junho de 2015, 11h09

Uma série de questões tem aflorado à luz de pedidos recentes de recuperação judicial apresentados por assim chamados “grupos econômicos” ou “conglomerados de empresas/grupos de empresas”, assim como por empresas a eles pertencentes.

1. Nota-se a apresentação de pedidos de recuperação judicial conjunto por diversas empresas, em alguns casos, até mesmo por dezenas delas.

Uma justificativa comumente utilizada para tais pedidos aglomerados é de que se trata de “grupo de empresas” ou de “grupo societário” (com diversas considerações sobre serem grupos “de fato” ou grupos “de direito”) ou, ainda, “grupo econômico” (neste caso, não levando em conta a barafunda e as severamente adversas consequências do emprego dessa “figura” em outros âmbitos jurisdicionais).

Todos esses conceitos, que, nos pedidos de recuperação desses “conglomerados”, vêm alinhavados de forma bastante genérica, abrangente – inclusive do ponto de vista meramente econômico e operacional – e, portanto, atécnica, servem para embasar o suposto litisconsórcio ativo e, igualmente, tentar configurar, outro tanto aleatoriamente, determinado foro competente para o pedido (entre outras anomalias).

Ou seja, nada há de mais concreto, em termos operacionais, ou tecnicamente apurado que, salvo melhor juízo, sustente tais conceitos e as situações juridicamente embaraçosas que lhes são consequentes. Em termos práticos, esses processos já nascem com milhares de páginas e com os transtornos que isso acarreta para o juízo e para os jurisdicionados.

Nesse contexto, não se sabe (ou, a princípio, é difícil saber) qual das empresas arroladas efetivamente passa por crise econômico-financeira a justificar o pedido de recuperação judicial, até mesmo porque, em não poucos casos, aglomeram-se, no mesmo pedido, empresas dos mais diversos ramos de atuação, dos mais simples aos mais complexos (a justificativa que vem nesses requerimentos são, normalmente, genéricas e tratam, basicamente, de supostos problemas conjunturais que se tenta aplicar a todas elas).

Talvez, ainda que se pudesse aceitar o encaminhamento do pedido de recuperação para somente uma Vara, fosse o caso de que cada uma dessas empresas formulasse seu próprio pedido de recuperação, justificando e instruindo adequada, específica e convenientemente cada um deles (com sua própria lista de credores, por exemplo), a fim de que se pudesse atestar a real necessidade da medida pleiteada ou a fim de proporcionar ao juízo a possibilidade de verificá-la e apreciá-la.

Como decorrência, cada uma dessas empresas deveria apresentar, cada qual dentro de seu ramo de atuação, seu próprio e específico plano de recuperação judicial – tendo sido previamente deferido o processamento de seu pedido inaugural – não somente para que sua crise econômico-financeira venha a ser especificamente abordada, até mesmo em consonância, se caso, com a superação da crise de outras empresas do mesmo “grupo”, desde que haja efetiva e comprovada afinidade operacional entre elas, mas para permitir aos seus credores que avaliem, de forma correta, se existe efetiva plausibilidade e viabilidade a alicerçá-lo.

Ressalte-se que essa questão – diversas e variadas empresas de um mesmo “conglomerado” em litisconsórcio ativo no pedido de recuperação – não é somente algo utilizado pelos devedores, mas, frequentemente, algo solicitado por credores que, notando que as empresas em recuperação eventualmente não terão como honrar seu crédito (pelo menos, não da maneira como esses credores gostariam), passam a propugnar pela inclusão de outras empresas do “conglomerado”, eventualmente sadias em termos econômico-financeiros, em operação e adimplentes, porque vislumbram nos seus ativos (e na confusão de seus ativos com os ativos das empresas em recuperação) uma forma de socializar, por vias transversas, as perdas, utilizando os ativos dessas empresas para pagar os passivos das outras.

Assim, pugnam não somente para que venham a integrar a recuperação, mas basicamente pela paralisação de suas atividades normais e em curso, tentando bloquear suas operações e arrestar seus ativos.

2. Tem surgido, com frequência, por conta de estruturas mais complexas desses “conglomerados”, das obrigações em que incorreram e dos contratos que firmaram, a questão das garantias dadas por determinadas empresas do “conglomerado” – que não passam por situação de crise econômico-financeira – a outras empresas do mesmo “conglomerado efetivamente em crise e, portanto e em princípio, autorizadas a pedir sua recuperação judicial.

Nesses casos, as empresas garantidoras têm sido incluídas no polo ativo dos pedidos de recuperação, por conta do que se está a denominar, conforme o caso, de débitos por aval, por fiança, “contingentes” ou, até mesmo, “ilíquidos”, ao argumento de que, se e quando chamadas a honrar tais garantias, aí então atravessarão ou poderão atravessar uma crise econômico-financeira à qual o pedido de recuperação judicial, neste momento, propor-se-ia a antecipar.

3. Na mesma esteira, surge uma questão inversa à precedente: credores de uma empresa do ”conglomerado” que, por sadia, não está arrolada no pedido de recuperação das demais, são incluídos na relação de credores destas últimas, passando a ser denominados credores “contingentes”, “ilíquidos”, “por aval ou fiança”, neste caso, porque as empresas em recuperação garantem os débitos incorridos pelas outras empresas que não foram incluídas no pedido de recuperação.

E passa-se a discutir se tais credores (“contingentes”, “ilíquidos”, “por aval ou fiança”) devem participar da recuperação das empresas que lhes garantem os créditos, por exemplo, com direito de voto ou sem direito de voto em relação ao plano de recuperação apresentado pela(s) devedora(s), discussão cuja solução resume-se no final a um só ponto: se votam pela aprovação do plano de recuperação, podem votar; se votam pela não aprovação do plano, não estão habilitadas a tanto.

4. Em outros casos, há credores das empresas em recuperação que, por sua vez, têm tais créditos garantidos por terceiros, sob a forma de contragarantias (uma instituição financeira que garante o crédito prestado, ao devedor em recuperação, por outra instituição financeira, por exemplo) e passa-se a outra discussão: quem “se habilita” como credor e por que montante? Quem vota relativamente ao plano de recuperação e quem não vota?

Até momento, também neste caso, desconhecem-se critérios ou parâmetros razoavelmente coerentes e uniformes para responder a tais questionamentos, seja porque os devedores (e os credores) tratam essas situações das mais variadas maneiras a depender de suas respectivas conveniências (quem, ao votar, aprova o plano e quem, ao votar, desaprova-o), seja porque, também aqui, a jurisprudência vacila e titubeia ao sabor de tais conveniências.

5. Finalmente, encerrando este limitado apanhado, sempre à guisa de desafio e de estímulo ao debate, surge a questão, cada vez mais recorrente e preocupante, da consolidação, em pedidos de recuperação aqui ajuizados, de empresas eventualmente do “conglomerado” sediadas no exterior.

E, para tanto, alegações e justificativas não têm faltado aos devedores (e a credores interessados em seus ativos, para adimplemento das dívidas contraídas pelas empresas em recuperação sediadas no Brasil):

– que se trata – novamente – de “conglomerado”, de “grupo econômico”, de “grupo societário”, de “grupo de empresas”, de “grupo” (tão somente), sem que saiba de que se está a falar;

– que se trata de empresas (as offshore) operacionais ou não se trata de empresas operacionais, uma distinção cujo embasamento e cuja racionalidade é difícil de perceber, até mesmo porque esse argumento é utilizado de forma aleatória, casuísta e oportunista, a depender do interesse de que a defende (devedor ou credor);

– que são meras “cascas” ou que são meras empresas captadoras, no exterior, de recursos outro tanto externos destinados a financiar atividades no Brasil (ou seja, se fossem para financiar projetos em outro país que não Brasil e levados a cabo por empresas brasileiras em recuperação, então essas “cascas” não seriam consolidadas?), argumento por si só suficiente para negar a sua consolidação em recuperações brasileiras, porquanto são formas de captação de fundos absolutamente normais e corriqueiras em âmbito mundial – e quem se habilitou a tanto, brasileiro ou não, está cansado de saber quais a regras internacionais de regência – especialmente em operações de project finance. A continuar assim, fechar-se-ão as portas para esse tipo de financiamento a empresas brasileiras ou, no mínimo, seu custo será substancialmente aumentado.

Aproveita-se, no bojo de tais argumentos para desconsiderar a boa-fé de quem contrata no exterior, sob lei estrangeira, sob jurisdição estrangeira, com empresa estrangeira (não obstante relacionada, de uma forma ou de outra, a empresa e às suas atividades brasileiras), passando esse contratante, de improviso, a ter seus direitos e obrigações adquiridos e contraídas no exterior, para serem respeitados e cumpridas no exterior – o que deveria ser aplicado e com maior razão e rigor, por quem e para quem sai do Brasil e vai, espontaneamente e com conhecimento de causa ao exterior em busca de capital – regulados, em caso de default, pela lei e pela jurisdição brasileiras.

6. Evidentemente, questões relevantes para o presente e para o futuro do instituto da recuperação judicial no Brasil, quer nos parecer.

E, pelo menos no cenário atual, de difícil resposta e ainda de mais difícil solução, porquanto esse instituto vem sendo aplicado embasando-se, muitas vezes à míngua de argumentos mais sólidos, objetivos e técnicos, dos pontos de vista jurídico e econômico-financeiro, no solitário argumento – por mais relevante que, à primeira vista, possa parecer, mas outro tanto abstrato e de complicada configuração e delimitação prática – da preservação da empresa, da manutenção da atividade econômica, como fontes geradoras de renda, emprego e tributos.

Não se sabe o quão longe iremos, albergados em tal argumento, a menos que os operadores do Direito deem-se conta de que esse caminho pode, efetivamente, tornar sem prestígio um instituto que veio a substituir outro – a concordata – àquela altura já sem qualquer credibilidade.

 

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