A decadência do direito de anular o ato administrativo
27 de agosto de 2015, 9h00
O artigo 54 da Lei 9.784/99 dispõe sobre a decadência do direito de a administração pública anular seus próprios atos, quando esses gerarem efeitos favoráveis a seus destinatários:
“Artigo 54. O direito da administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.
§ 1° No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.
§ 2° Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.”
O referido direito de anulação do ato administrativo decai no prazo de cinco anos, contados da data em que esse ato foi praticado. Durante esse lustro, o administrado permanece submetido a eventual revisão ou anulação do ato administrativo que o beneficia; a sua relação com a administração ainda não está totalmente estabilizada nem imune a alterações.
Porém, encerrado o prazo decadencial, o administrado deve ter suas relações com a administração consolidadas e albergadas pelo manto da segurança jurídica.
Trata-se de um limite imposto ao princípio da autotutela administrativa em favor da estabilidade das relações jurídicas, assegurada ao administrado previsibilidade em seu comportamento. Jorge Amaury Maia Nunes, no livro Segurança Jurídica e Súmula Vinculante, assim leciona:
“É claro que a regra geral cede perante peculiaridades do caso concreto. É possível que o ato da administração pública tenha gerado direitos que ingressaram na esfera patrimonial do administrado. Nessas circunstâncias, a instauração do processo administrativo com todos os requisitos da Lei 9.784/99 pode não ser capaz de assegurar a pretendida anulação. É que, às vezes, o tempo decorrido foi suficiente para permitir a consolidação do direito no patrimônio do administrado, sem que esse tivesse agido de má-fé. Em hipóteses desse jaez, o princípio da legalidade estrita cede passo ao princípio da segurança jurídica[1].”
O parágrafo 2º do dispositivo analisado, acima transcrito, equipara, ao exercício do direito de anulação, “qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato”.
Uma primeira leitura desse parágrafo poderia conduzir à conclusão de que qualquer medida administrativa teria o condão de interromper o prazo decadencial veiculado no caput do artigo 54 da Lei 9.784/99.
Essa interpretação implicaria, por sua vez, prerrogativa excessiva em favor da administração, atentatória ao próprio fundamento do caput, que é o de preservar a segurança jurídica nas relações entre administração e administrado.
A partir do momento em que adotasse “qualquer medida administrativa”, a administração passaria a dispor do tempo que julgasse conveniente para decidir a respeito da anulação do ato.
Enquanto isso, o administrado permaneceria abusiva e indefinidamente refém da administração, alijado da previsibilidade para poder programar sua vida.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Mandado de Segurança 28.953, adotou entendimento paradigmático sobre a matéria. Nessa ocasião, o ministro Luiz Fux assim esclareceu:
“No próprio Superior Tribunal de Justiça, onde ocupei durante dez anos a Turma de Direito Público, a minha leitura era exatamente essa, igual à da ministra Carmen Lúcia; quer dizer, a administração tem cinco anos para concluir e anular o ato administrativo, e não para iniciar o procedimento administrativo. Em cinco anos tem que estar anulado o ato administrativo, sob pena de incorrer em decadência (grifo aditado).
Eu registro também que é da doutrina do Supremo Tribunal Federal o postulado da segurança jurídica e da proteção da confiança, que são expressões do Estado Democrático de Direito, revelando-se impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando sobre as relações jurídicas, inclusive, as de Direito Público. De sorte que é absolutamente insustentável o fato de que o Poder Público não se submente também a essa consolidação das situações eventualmente antijurídicas pelo decurso do tempo[2].”
Ao assentar que a administração dispõe de cinco anos para efetivamente anular o ato administrativo, o ministro Luiz Fux estabelece uma maior confiança na relação entre administrado e administração.
Retira-se da administração o abusivo poder de perpetuar sua prerrogativa de anulação do ato administrativo, assegurado maior equilíbrio entre as partes interessadas.
Na medida em que delimita o alcance temporal do poder de revisão conferido à administração pública, o entendimento aqui analisado encontra-se em eloquente sintonia com o paradigma do Estado Democrático de Direito, tendente a nivelar a relevância dos interesses público e privado.
Bruno Fischgold, em seu livro Direito Administrativo e Democracia — A inconstitucionalidade do princípio da supremacia do interesse público —, discorre sobre a transição do Estado Social para o Estado Democrático de Direito:
“A transição paradigmática para o Estado Democrático de Direito impõe a releitura de inúmeros institutos do direito administrativo, especialmente daqueles tipicamente comprometidos com os pressupostos do Estado Social. Figuras clássicas dessa disciplina jurídica — discricionariedade, atos de império, poder de polícia, legalidade estrita, supremacia do interesse público, entre outras — devem agora ser interpretadas a partir de uma perspectiva democrática, que busca nivelar os interesses em jogo à luz do sistema de direitos fundamentais assegurados na Constituição e, assim, viabilizar a submissão da atividade estatal a diversos mecanismos de controle por parte dos administrados.”
Para arrematar, o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, quando da apreciação do Mandado de Segurança 28.953, respeita a regra geral da ininterrupta fluência do prazo decadencial, estabelecida no artigo 207 do Código Civil[3].
Em suma, é notória a importância do posicionamento adotado pela Corte Suprema, pois, a um só tempo, propicia maior segurança jurídica; respeita a regra geral de contagem do prazo decadencial; assim como reduz privilégios da administração pública, em sintonia com o paradigma do Estado Democrático de Direito.
[1]NUNES, Jorge Amaury Maia. Segurança jurídica e súmula vinculante. São Paulo: Saraiva, 2010. – (Série IDP). p. 152.
[2]A relatora, ministra Cármen Lúcia, entendeu que despacho de encaminhamento interno de denúncia, por deixar de conter verdadeira contestação, oposição ou questionamento sobre a validade do ato, não é capaz de ensejar interrupção do prazo decadencial (STF, MS 28.953, relatora Cármen Lúcia, 1ª Turma, unânime, DJe 28/03/2012). O ministro Luiz Fux, enquanto ministro do Superior Tribunal de Justiça, já destacava: “Ora, a Lei não concede à administração cinco anos para iniciar a anulação do ato, por isso que se assim o fosse, a conclusão poder-se-ia eternizar a pretexto de ter-se iniciado tempestivamente. Destarte, a segurança jurídica como bem tutelável em primeiro lugar pela administração não conviveria com tamanha iniquidade e instabilidade. Em resumo, a administração dispõe de cinco anos para efetivamente anular o ato, sob pena de eventual situação antijurídica convalidar-se, como é usual no Direito. A posse de má-fé consolida-se, os atos anuláveis perfectizam-se, os casamentos legitimam-se, as uniões espontâneas também, os impostos indevidos incorporam-se ao patrimônio estatal etc.” (STJ, AgRg no MS 8.692, relator ministro Luiz Fux, 1ª Seção, unânime, DJ 22/04/2003, grifos aditados).
[3]“Artigo 207. Salvo disposição legal em contrário, não se aplicam à decadência as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição.”
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