Normas Internacionais

Brasil deve garantir segurança jurídica com o novo regime contábil

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25 de setembro de 2014, 7h09

Artigo produzido no âmbito das pesquisas desenvolvidas no NEF/FGV Direito SP. As opiniões emitidas são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

Em 8 de setembro passado, na linha dos trabalhos desenvolvidos pelo Núcleo de Estudos Fiscais FGV Direito SP, recebemos o Dr. Nelson Carvalho[1] com a apresentação do tema Forma versus Substância na relação entre direito e contabilidade. Professor da Universidade de São Paulo (USP) e diretor de pesquisas da Fipecafi, Carvalho trouxe valiosas reflexões sobre as transformações que vêm ocorrendo no cenário contábil-fiscal brasileiro e os desafios de ordem prática a serem enfrentados.

Segundo Carvalho, a tradição legalista brasileira em matéria tributária influenciou significativamente a contabilidade financeira e societária. As respostas às questões que envolviam o direito tributário e a contabilidade eram sempre encontradas em regras dispostas nos diplomas legais e infralegais. Como consequência dessa cultura jurídica, o aspecto econômico das operações sempre ficou subjugado à representação legal das transações[2]. Não havia plena consciência de um processo interpretativo das normas contábeis pelos operadores, e sua aplicação ficava, na esmagadora maioria das vezes, adstrita ao fundamento jurídico. 

Em contraposição a essa tradição histórica, Carvalho ressalta que o país vive, substancialmente desde meados da década passada, o auge do processo de transformação de sua contabilidade, em busca de alinhamento com os padrões do International Financial Reporting Standards (IRFS), os quais preconizam a prevalência da essência econômica das operações em detrimento das formas legais dos negócios  e transações empresariais. Na expressão utilizada por Carvalho, o novo “mantra” é accounting follows economics[3].

Esse processo teve sua origem no movimento de modernização da parte contábil da Lei 6.404/76, nos idos dos anos 90, quando se constatou que sua disciplina não mais atendia o objetivo de garantir transparência aos acionistas e credores[4]. Essa iniciativa culminou com a promulgação da Lei 11.638/2007.

Dentre os principais fundamentos incorporados pela Lei 11.638/07 no ordenamento jurídico-contábil brasileiro, Carvalho apontou que hoje as normas são muito mais principiológicas, sendo preciso desmistificar algumas questões antes consideradas como verdadeiras na abordagem de problemas tributários e contábeis.

Hoje não basta apenas dominar os conceitos contábeis, é preciso conhecer detalhadamente as operações realizadas, a sua realidade fática e representá-las de modo fiel. Preconizar a essência sobre a forma na representação das operações, consoante o princípio maior do True and Fair View, significa que as operações devem ser registradas segundo a melhor interpretação subjetiva dos fatos, não se confundindo com sua representação aparentemente exata.

Para Carvalho, o Brasil deverá enfrentar grandes desafios na importação dos novos padrões contábeis, que em certa medida eliminaram a “contabilidade codificada”, inserindo no Brasil o regime contábil do Commom Law.  Esta nova sistemática, em oposição à nossa cultura civilística, direciona os operadores a refletir as operações empresariais de acordo com a melhor interpretação da realidade fática e as representarem financeiramente.

Sob este aspecto, Carvalho ponderou que só existem três dados exatos no balanço contábil: a data, o caixa e o número de ações emitidas e estes são insuficientes para representar de forma fidedigna a realidade[5]. Portanto, com o novo regime, o mundo ficou muito mais próximo de representações dos impactos das decisões empresariais e suas consequências sobre ativos, passivos exigíveis, resultados e efeitos patrimoniais na empresa, mas ao mesmo tempo, muito mais difícil complexo e subjetivo de ser representado.

No mais, consignou que precisamos ver a contabilidade não como uma fotografia do passado. Sua função mais nobre está no trabalho prospectivo de antecipar, dados os negócios feitos e decisões tomadas no passado, quais os fluxos de caixa esperados no futuro, conferindo previsibilidade para os investidores e credores com padrão aceitável de segurança.

Assim, considerar as possíveis distorções e problemas que a utilização da nova contabilidade pode gerar também faz parte do desafio. Exemplo paradigmático apresentado por Carvalho foi a questão da Agência Reguladora de Companhias de Energia Elétrica (Aneel) que, para evitar um aumento significativo de preços da energia em razão das novas regras de contabilização, precisou implementar três balanços contábeis distintos para essas empresas: o balanço societário, o tributário e o regulatório.

Problemas como estes trazem à tona dúvidas se a adoção dos novos padrões contábeis representou avanços à temática ou se apenas  trouxe complexidade e insegurança jurídica ao sistema tributário nacional, com grande potencial de aumento do contencioso tributário.

Ao inserir ainda mais complexidade na apuração dos balanços a nova contabilidade, pensada como instrumento a serviço do objetivo maior do True and Fair Value, corre o risco de obstaculizar, no Brasil, o alcance da tão almejada Transparência Fiscal.

Sob este aspecto, a transição para a nova sistemática contábil contém uma grave lacuna, na opinião de Carvalho. Isto porque, considerando que a Lei 11.638/07 não determinou às grandes empresas constituídas sob a forma de Ltda (s) ou Sociedades Anônimas “fechadas” a necessidade de observância do novo ordenamento contábil, elas não têm sobre si o monitoramento das agências reguladoras ou do poder fiscalizatório do Estado. Com efeito, grandes e importantes companhias sentem-se estimuladas a fechar o capital ou se reestruturar sob a forma de Ltda. (s).

Esta tendência já é verificada em grandes companhias que se estruturam sob estas feições por não terem interesse em divulgar seus balanços[6].  Há grande dificuldade na obtenção de informações a este respeito no Brasil, especialmente porque a lei não traz esta obrigatoriedade, o sigilo está resguardado e, adicionalmente, o novo regime não tratou de contemplar esta realidade.

Diante deste cenário, cabe profunda reflexão entre juristas, economistas, administradores e contadores para garantir pleno atendimento e segurança jurídica na adoção do novo modelo contábil de forma a garantir real avanço econômico ao Brasil.


[1] Professor concursado no Departamento de Contabilidade e Atuária da FEA USP. Diretor de pesquisas da FIPECAFI. Coordenador do grupo de trabalho sobre Capacity Building da Organização das Nações Unidas (ONU-UNCTAD); Membro do Comitê Internacional para Relatórios Empresariais Integrados (IIRC – International Integrated Reporting Committee) e do conselho consultivo do Projeto Accounting for Sustainability (A4S); É membro de conselhos de administração de empresas e de comitês de auditoria; Membro do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) – Brasil e seu vice-coordenador de Relações Internacionais;

[2] A exemplo do tratamento contábil da depreciação dos ativos imobilizados, que era usualmente computada no balanço para os acionistas sob a rubrica das taxas permitidas para dedutibilidade fiscal, antes sem grande preocupação com o efetivo desgaste econômico do ativo pelo uso nas operações. Os 10% ao ano da depreciação praticada para Móveis e Utensílios, por exemplo, ignoravam se tais ativos duravam menos ou mais do que 10 anos de vida útil.

[3] O fenômeno contabilizável deve apresentar fundamento econômico para ser passível de contabilização.

[4] Os acionistas e credores pretendem conhecer taxa interna de retorno do investimento, resultados operacionais, lucro antes da incidência dos tributos e depreciações, retorno sobre ativos, retorno sobre investimentos, dentre outros indicadores de desempenho. As demonstrações contábeis impactadas por comandos tributários – legítimos para fins de apuração de lucros tributáveis, mas inservíveis para cálculo de rentabilidades – tiveram sua essência resgatada.

[5] Todas as demais rubricas contábeis apresentadas nas demonstrações financeiras estão direta ou indiretamente influenciadas por julgamentos, juízos de valor, subjetivismos.

[6] Inclusivamente, não tem a obrigação de se submeterem a crivos de auditorias independentes que teriam o poder de apontar descumprimento de normas contábeis.

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