Senso Incomum

Por analogia, advogados devem invocar em seu favor o princípio da amorosidade!

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18 de setembro de 2014, 8h00

Spacca
caricatura lenio luis streck 02 [Spacca]É simples. O que me levou a escrever esta coluna foi ter lido sobre alguns novos princípios inventados por aí. Já havia falado aqui na ConJur sobre esse fenômeno que não me canso de denunciar: o pamprincipiologismo, doença contemporânea do direito, algo como uma espécie de direito-alternativo-tardio (woodstock jurídico) utilizado contra a lei e a Constituição, tudo em nome de valores morais (o que seria isto?) e coisas como “princípio da primazia da realidade” (o que é isto – a real-idade?). Listei já dezenas de pseudo princípios, que não passam de enunciados com pretensões performativas[1] que vicejam em dissertações, teses, acórdãos e cardápios de cursinhos de preparação. Cito, de cabeça, alguns como “princípio” da confiança no juiz da causa, proibição do atalhamento constitucional (este deve ser indicado ao oscar dos princípios), da pacificação e reconciliação nacional, da eventual ausência do plenário (nesse, a deontologia é ontológica!), do livre convencimento, da livre apreciação da prova (esses dois são princípios omnibus), da rotatividade (também conhecido como princípio Fogo de Chão por causa da remessa ao significante “rodízio”), do deduzido e do dedutível, da proibição do desvio de poder constituinte, da parcelaridade (princípio Casas Bahia), do subprincípio da promoção pessoal (princípio série B ou princípio Instagram), da nulidade do ato inconstitucional (cuja inutilidade é autoexplicativa), etc. Trata-se de uma bolha especulativa dos princípios, espécie de subprime do Direito. Ou seja: uma fábrica de derivados e derivativos.  No meu Verdade e Consenso, faço uma listagem de mais de quarenta desses standards jurídicos, construídos de forma voluntarista no seio da comunidade jurídica.

Para não esquecer: um dos meus preferidos é o Princípio da afetividade. Sobre ele já muito falei. Esse standard apenas escancara a compreensão do Direito como subsidiário a juízos morais (sem levar em conta os problemas relacionados pelo “conceito” de afetividade no âmbito da psicanálise, para falar apenas desse campo do conhecimento). Isso para dizer o mínimo. Trata-se, na verdade, de mais um álibi para justificar decisões pragmatistas e que dão capa de jornal. É evidente que a institucionalização das relações se dá por escolhas pela relevância delas na sociedade. Ocorre que as decisões devem ocorrer a partir de argumentos de princípio e não por preferências pessoais, morais, teleológicas, etc. No fundo, acreditar na existência desse “princípio” é fazer uma profissão de fé em discursos pelos quais a moral corrige as “insuficiências ônticas” das regras jurídicas. Em nome da “afetividade”, tudo é possível, como registrar dois ou três pais para um filho (duas mães e um pai – leia aqui) registrar filho só com pais (sem mãe), dar a metade da herança para a amante-concubina-adulterina, etc (rogo para que os comentaristas não se digladiem sobre se um filho pode ser registrado com dois pais e sem mãe; usei apenas como exemplo a partir do princípio da aleatoriedade!).  Aliás, a vingar a tese, por que razão não elevar ao status de princípio o amor,[2] o companheirismo, a paz, a proibição da tristeza, enfim, tudo o que pode ser derivado do respeito (ou não) do princípio da dignidade da pessoa humana, alçado, aliás, à categoria de “superprincípio”? Por que só a afetividade?

Qual é o “busílis” desses princípios-que-não-são-princípios? Simples: servir de katchanga real (ler aqui). Quando a lei e/ou a Constituição estão contra o que se pensa, bingo! Saca da manga do colete um princípio. Se ainda não existir um que caiba na tese, construa um. É facinho. Algo como o conselho que o pai dá ao seu filho Janjão, ao completar 18 anos, no conto A teoria do Medalhão, de Machado de Assis: “Longe de inventar um Tratado Científico da Criação de Carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar…”.  É bem fácil, útil e proveitoso…

Diz-se por aí que “princípios são valores”. Em nome disso outro dia a juíza Carine Labres, de Santana do Livramento, a propósito do casamento homoafetivo[3] em um Centro de Tradições Gaúchas  (CTG) no RS: “Estou tentando mudar a sociedade, suprimindo o véu da hipocrisia para que as minorias tenham voz ativa e possam concretizar seus direitos e felicidade como ser humano”. De acordo. Sou contra discriminações. Óbvio. Mas esse não é o busílis da questão. O ponto é: de que lugar queremos mudar a sociedade? Perguntando de outro modo: Por que não tínhamos pensado nisso antes? Juízes, promotores, delegados e defensores (e por que não procuradores do Estado, da Fazenda e oficias de justiça) todos querendo “mudar e melhorar a sociedade”. A sociedade não sabe pensar. É ruim. Nós, da guerrilha da VPJJ (Vanguarda do “Povo Jurídico-Judiciário”) temos a salvação dessas almas corrompidas. O lema: “Tudo o que ruim está na política; e tudo o que é bom está no nosso meio…”. Pois é. Vejam o que o PDP (Partido do Pamprincipiologismo) conseguiu fazer.

Sendo bem científico, digo: Ora, essa referência reiterada aos “valores” demonstra bem o ranço neokantiano que permeia o imaginário[4] de amplos setores do Direito (com pretensões críticas ou não). De fato, não é exagero afirmar que, em termos teóricos, parcela dos juristas brasileiros permanece, de algum modo, atrelada ao paradigma filosófico que se formou a partir do neokantismo oriundo da escola de Baden. Ou seja, ainda estamos reféns de um culturalismo ultrapassado que pretendia fundar o elemento transcendental do conhecimento na ideia sintética de valores, sendo que a união de todos esses valores, portanto, representaria o mundo cultural. Chega a ser intrigante o fato de que toda tradição constituída depois do linguistic turn — inclusive alguns setores da filosofia analítica — tenha criticado o objetivismo ingênuo dessa concepção do neokantismo valorativo, demonstrando que a questão dos valores não dava conta radicalmente dos fundamentos linguístico-culturais que determinam o processo de conhecimento. Sim: eu já escrevi isso. Mas não esqueçamos que sofro de LEER (Lesão por Esforço Epistêmico Repetitivo). Ou seja, invoco o “princípio da LEER”… E invoco também o “paradoxo de Humboldt”: nós possuímos linguagem porque temos cultura ou temos cultura porque possuímos linguagem? Portanto, o discurso axiológico no interior do Direito deveria ter sucumbido junto com o paradigma filosófico que o sustentava. A despeito disso, continua-se a falar — acriticamente, por certo — em “valores”, sem levar em conta a sua conhecida e problemática origem filosófica. Quando alguém fala em valores, tenho tremores. E vejo o direito esfarinhando. Dúctil. Fofo. Flambado.

E surgiram novos “princípios”…
Um deles é o mote desta coluna. Trata-se do “princípio” da coloquialidade, que, segundo consta, quer dizer o seguinte: que as palavras da lei devem ser entendidas no seu sentido coloquial, usual, “normal” (sic). Como assim? Quer dizer que se uma lei diz que três pessoas disputarão uma cadeira no Senado, a interpretação correta é que três pessoas disputarão o móvel do Parlamento? Cada uma pegando em um pé da cadeira? Como se interpreta “remédio heroico”? Como Fontol ou Melhoral? Aliás, como se afere o sentido “coloquial” de Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung, a famosa nulidade parcial sem redução de texto? E por que ele — o SC (sentido coloquial) — deve ser melhor do que o SJ (sentido jurídico)?[5] Mas, não somos juristas? O direito é uma mera questão de linguística? Por que então não substituímos os juristas por professores de português? Em que momento, por exemplo, esse “princípio” (sic) poderia entrar em campo (“campo”, aqui, não tem sentido coloquial…!)? E, raios, qual é a sua normatividade? Onde reside o seu caráter deontológico? Aliás, aqui vai uma pergunta: qual seria o sentido coloquial da palavra “deontológico”?  Será que não estamos indo longe demais?

Sigo. Recebi, semana passada, uma sentença proferida por um juiz do Espírito Santo, nos Juizados Especiais, em que ele manda emendar uma inicial porque esta tinha dezoito laudas, com citação de doutrina e jurisprudência. Fundamento para o emendamento: o princípio da simplicidade. Bingo. Katchanga! Agora vai. Outro argumento usado foi o de que a lei dos juizados fala em “pedido”. Como o advogado fez uma petição, haveria, ali, uma ilegalidade. Minha pergunta: entraria, aqui, o “princípio” da coloquialidade, para “determinar” o sentido de “pedido”? Petição não é o mesmo que pedido? E onde está escrito que o causídico não pode sustentar o “pedido” com doutrina e jurisprudência? Vão nos impedir até de fazer isso? Teremos que escrever como no twitter?

Pois é: advogar está se tornando, além de uma corrida de obstáculos e um exercício de humilhação, um mal-estar para a “civilização jurídica”. Chegará o tempo em que o advogado, para protocolar uma petição, terá que passar por um fosso de jacarés e escapar, ziguezagueando, de um snipper postado no edifício do fórum. E ainda terá que passar pelo detector de metais, o mau humor do porteiro e enfrentar o olhar sobranceiro do escrevente-atendente da Vara. Que coisa, não? Dias atrás um juiz do Rio Grande do Norte indeferiu uma petição porque era muito extensa. Por favor: deixemos os advogados trabalharem. Cada um no seu quadrado.

Vamos aplicar a amorosidade por analogia?
Por fim, nessa toada (estou sendo coloquial, entendem?), ainda gostaria de registrar um “princípio” sobre o qual aqui já falei, mas, no contexto, vale repetir, até para invocá-lo contra decisões e despachos como o do Juiz que indeferiu a petição e daquele que mandou emendar a petição mandando transformá-la em “pedido”: falo do Princípio da amorosidade. Faço uma conclamação aos magistrados de todo o Brasil: Eis um princípio a ser invocado por todos os causídicos. Esse princípio está no Diário Oficial e deverá nortear o atendimento no SUS (leia aqui). Ou seja: se no SUS deve haver amorosidade e sensibilidade no atendimento aos utentes, deduzo que nos-fóruns-e-tribunais-deve-haver-também (minha dedução vem a partir do princípio do deduzível — boa essa, não?). E a aplicação é por analogia, conforme o artigo 4º da LINDB (boa essa também, não?).  Pronto. Eis aí uma ideia para uma SV — súmula vinculante. Nada mais preciso dizer, pois não?

Numa palavra final
Vejam os leitores que, se substituirmos os aludidos princípios por qualquer palavra com caráter retórico (por exemplo, canglingon), nada mudará, por uma razão simples: onde está a normatividade dos aludidos standards? Onde está o caráter deontológico? Se princípios são normas (dever-ser), restaria ainda uma pergunta fatal: qual-é-a-legitimidade-de-sua-constituição? Quem os elaborou? Em que condições? Mas, e a lei e a Constituição, construídos democraticamente, o que fazer com esse material? Afinal, somos juristas, pois não? Se decidir é algo como “escolha moral”, não é melhor deixar que gente mais especializada cuide disso, como filósofos morais? Se a realidade tem primazia, não é melhor chamar os sociólogos?

Invocando o princípio da economia de linhas vigorante na ConJur, descanso minha causa (sendo coloquial, para não dizer I rest my case!). 


[1] Estagiário levanta a placa com os dizeres: procurar nas colunas anteriores o significado de “enunciado performativo”.

[2] Deixei de fora, deliberadamente, o propalado “princípio da felicidade”. Sobre ele falarei em coluna própria. Já o fiz em outros tempos. Mas prometo voltar ao tema.

[3] Por favor: que os leitores não abram polêmica sobre se os gaúchos do CTG devem aceitar nos seus clubes casamentos heterodoxos. Não é disso que trata esta coluna. Poupemo-nos, pois, dessa discussão. Estou tratando da relação direito-moral e os limites da fabricação de princípios. Estamos entendidos?

[4] Com se explicaria o conceito de “imaginário” a partir do “princípio da coloquialidade”? Ganha um exemplar de Lições de Crítica Hermenêutica do Direito quem acertar.

[5] Por que as siglas SC e SJ? Por nenhuma razão. Fi-lo apenas para flambar epistemicamente a discussão…! É que, quando escrevi a coluna, estava de bom humor.

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