Guerra fiscal

Ineficiência do federalismo brasileiro é desafio para a reforma tributária

Autores

  • Gisele Barra Bossa

    é advogada pesquisadora Núcleo de Estudos Fiscais (NEF/ FGV Direito SP). Mestre em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

  • Ana Teresa Lima Rosa

    é advogada mestre em Direito pela Universidade da Califórnia – Berkeley. Especialista em Direito Tributário pela FGV Direito SP. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Fiscais (NEF/FGV Direito SP).

9 de outubro de 2014, 11h17

Artigo produzido no âmbito das pesquisas desenvolvidas no NEF/FGV Direito SP. As opiniões emitidas são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

No último dia 17 de setembro, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional o Protocolo ICMS 21/2011 do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) por meio do julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 4.628 e 4.713. O impasse decidido pela corte materializa a deformidade da legalidade relacionada à estrutura constitucional do federalismo brasileiro e reforça a alta complexidade e o elevado grau de insegurança jurídica do nosso sistema tributário.

O Protocolo 21 foi celebrado em 2011 como uma forma de autotutela de dezoito estados — em sua maioria das regiões norte e nordeste — contra a perda de arrecadação do ICMS decorrente das vendas interestaduais de mercadoria pela internet (e-commerce). O Estado onde se localiza o consumidor final da mercadoria ficaria autorizado a cobrar parcela do ICMS incidente na operação de venda.

Em termos práticos, a aplicação desse protocolo pelos Estados signatários gera enorme contingência para as empresas comerciais considerando que o ICMS é cobrado duas vezes: primeiro integralmente pelo Estado do estabelecimento comercial (origem) e depois parcialmente pelo Estado onde o consumidor final está localizado (destino).

Com efeito, diversos contribuintes optaram por ajuizar medidas judiciais visando afastar a dupla incidência e, ao mesmo tempo, resguardar a continuidade das operações. O descumprimento voluntário dessa nova regra geraria potenciais autuações fiscais com a exigência de pesadas multas, bem como a apreensão de mercadorias nos postos de fiscalização das divisas estaduais.

Após três anos de espera, o Plenário do STF referendou a decisão cautelar concedida no início do presente ano ao reconhecer que o Protocolo ICMS 21/2011 seria materialmente inconstitucional por criar espécie de substituição tributária, sem previsão constitucional.

A Corte reconheceu o impacto negativo decorrente da tributação do ICMS pelo Estado de origem, especialmente sobre o crescimento econômico e sobre a distribuição das receitas estaduais. No entanto, consignou que as patentes distorções alocativas não seriam suficientes para legitimar a imposição unilateral da norma de incidência tributária sem a prévia autorização do Confaz. Também foi ressaltada a necessidade de diálogo legislativo para implementação de reforma do modelo constitucional do ICMS[1].

Essa decisão está em sintonia com o que o STF tem decidido sobre o tema guerra fiscal e com os julgados relativos à inconstitucionalidade dos benefícios fiscais concedidos unilateralmente pelos Estados. Ademais, a Corte Suprema tem estudado mecanismos eficientes para tornar autoaplicáveis essas decisões, como é o caso da edição de Súmulas Vinculantes.

Sob a perspectiva política e institucional, a análise da decisão sobre o Protocolo ICMS 21/2011 merece ser aprofundada vez que ilustra uma das inúmeras arestas do sistema tributário brasileiro a serem lapidadas caso haja o interesse nacional em aumentar o grau de confiança no país, o volume de investimentos, reduzir o custo Brasil e promover o desenvolvimento econômico e social sustentáveis.

A origem desse impasse vai muito além do cenário atual do nosso sistema tributário. Apesar do Protocolo ICMS 21/2011 estar relacionado com a mudança da forma de comércio de mercadorias propiciada pelo desenvolvimento tecnológico, o cerne da questão remonta o modelo de pacto federativo proposto pela nossa Constituição Federal.

Ao optarmos por um modelo federativo que busca outorgar autonomia aos Estados-Membros e lhes garantir a arrecadação do ICMS como fonte de receita, acabamos por criar um sistema de tributação fundado no princípio da “origem”. Privilegia-se o local da produção da mercadoria gerando expressiva alocação de investimentos e da riqueza nacional na região.

É evidente que essa sistemática arrecadatória se mostra insustentável, pois agrava a desigualdade econômica entre os Estados que, como reação natural, criam instrumentos de autotutela dos entes menos favorecidos para atrair investimentos e aumentar sua receita.

Os impactos desse modelo malsucedido também podem ser facilmente verificados em razão da complexidade do sistema tributário brasileiro — para atrair investimentos cada Estado cria suas próprias exceções à regra geral de arrecadação do ICMS (por exemplo, regimes especiais, créditos presumidos, etc.) que comprometem a lógica do sistema e da concorrência fiscal — a guerra entre os Estados para a atração de investimento reduz o custo privado da produção e aumenta o custo social, na medida em que representa apenas uma realocação interna de investimentos.

A par destes fatores, há o aumento do grau de litigiosidade. O STF recebe inúmeras Ações de Inconstitucionalidade para cada lei que cria um incentivo sem observar as regras constitucionais e os tribunais administrativos e judiciais dos Estados estão repletos de processos discutindo autuações milionárias sofridas por contribuintes que fazem jus aos incentivos.

Esse diagnóstico nos mostra a ineficiência estrutural do federalismo constitucional brasileiro. Projetar a reforma tributária sem enfrentar esse entrave é buscar soluções que na prática serão inviáveis. É necessário repensar o sistema de repasses e financiamento dos Estados, resgatando o elo entre o direito tributário e financeiro para construir um sistema arrecadatório mais simples, eficiente, igualitário, estável e transparente.


[1] Sob este aspecto, ver http://goo.gl/4H5lH0.

Autores

  • é advogada, pesquisadora Núcleo de Estudos Fiscais (NEF/ FGV Direito SP). Mestre em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

  • é advogada, mestre em Direito pela Universidade da Califórnia – Berkeley. Especialista em Direito Tributário pela FGV Direito SP. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Fiscais (NEF/FGV Direito SP).

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