Ao regular separação judicial, Novo CPC tira dúvidas sobre instituto
30 de novembro de 2014, 6h30
Os leitores da revista eletrônica Consultor Jurídico foram brindados recentemente por mais um texto da lavra do professor Lênio Streck, tecendo críticas pontuais ao Novo Código de Processo Civil projetado no que respeita à abordagem da separação judicial em seu texto.[3] Segundo o destacado crítico do panprincipiologismo tupiniquim, tratar-se-ia de verdadeira repristinação de dispositivos que teriam sido revogados pela Emenda Constitucional 66 de 2010.
Pode-se afirmar que a Emenda Constitucional 66/2010 agrega uma série de projetos de emendas constitucionais que visavam facilitar o divórcio, e efetivamente retira do texto original do § 6º do art. 226 da Constituição Federal os prazos impostos para o divórcio. Entretanto, indaga-se ainda se a supressão da exigência do cumprimento de certos prazos para a obtenção do divórcio resulta na eliminação do instituto da separação judicial do ordenamento jurídico.
Ainda se verifica entre nós um impasse doutrinário e jurisprudencial no que diz respeito à manutenção do instituto da separação judicial. Muitos civilistas nacionais, especialmente aqueles mais identificados com o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), asseveram que a Emenda Constitucional n. 66/2010 implementou um “novo” divórcio no Brasil, bem como abrogou a figura da separação judicial.
Em linhas gerais, oficializou-se o no fault divorce entre nós, ou seja, a eliminação do “princípio da culpa” para a decretação do divórcio (Verschuldensprinzip). Alude-se a uma “oficialização” neste caso, porque já existia algo assim na práxis jurídica brasileira, ainda que implicitamente com o chamado “princípio da ruptura” (Zerrüttungsprinzip) na redação pretérita do § 6º do art. 226 da Constituição brasileira.
Nas razões da PEC 33/2007, o Deputado Sérgio Barradas afirma que “não mais se justifica a sobrevivência da separação judicial, em que se converteu o antigo desquite”; dando a entender que o escopo da mencionada emenda constitucional alcança efetivamente a supressão da possibilidade jurídica da separação judicial.
Ora, Pontes de Miranda alerta-nos sobre a necessidade de distinguir o texto da lei das razões do projeto de lei. Se os legisladores desejaram “A”, mas o texto que foi efetivamente aprovado e publicado foi “C”; deve se reputar que “C” é a regra jurídica. Pois, tais trabalhos que antecedem a aprovação da lei “são, portanto, elemento de valor mínimo. O que foi publicado é a letra da lei, com as suas palavras e frases”.[4]
O texto revogado prescrevia o seguinte: “§ 6º. o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos”. Uma das últimas versões debatidas para esta regra, na PEC 33/2009, dizia: “§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio consensual ou litigioso, na forma da lei”. Na última fase dos trabalhos acerca desta emenda, optou-se por retirar do texto as expressões “na forma da lei”, bem como “consensual ou litigioso”. Assim, após a Emenda Constitucional n. 66/2010, lê-se apenas: “§ 6º. o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio”.
Entretanto, afirmar que a simples retirada de palavras possa evidenciar uma opção constitucional pela eliminação da culpa no divórcio pode ser algo bastante extravagante; assim como também seria um exagero pensar que a Constituição impediu absolutamente a interferência do legislador ordinário em matéria de divórcio quando suprimiu a expressão “na forma da lei”.
Há que se convir que a Constituição e o Código Civil não partilham exatamente o mesmo objeto. É o que se convencionou chamar de “tese da disparidade”.[5] A Carta Magna, a priori, não é o espaço adequado nem o normalmente utilizado para a regulação das relações entre cidadãos e entre pessoas jurídicas. Nisto reside a tarefa específica do Direito Privado:
"(…), que desenvolveu nesse empenho uma pronunciada autonomia com relação à Constituição; e isso não vale apenas em perspectiva histórica, mas também no tocante ao conteúdo, pois o Direito Privado, em regra, disponibiliza soluções muito mais diferenciadas para conflitos entre os seus sujeitos do que a Constituição poderia fazer. Disso resulta uma certa relação de tensão entre o grau hierárquico mais elevado da Constituição, por um lado, e a autonomia do Direito Privado, por outro”.[6]
Parece caminhar no mesmo sentido da preservação da autonomia do direito privado a advertência de Gomes Canotilho quanto aos perigos da “panconstitucionalização” do direito civil. Tal colonização do direito civil pela constituição envolve “riscos evidentes quer para a constituição dos direitos fundamentais quer para a ordem jurídica privada”. Não porque a constituição esteja dissociada do direito civil, nem muito menos se assevera uma imunização do direito privado em relação aos direitos fundamentais; mas sim pela possibilidade do direito civil perder a sua autonomia porquanto as suas regras sejam substancialmente modificadas pela aplicação direta dos direitos fundamentais na seara privada. Logo, se é verdade que o direito privado deve respeitar os princípios decorrentes dos direitos e garantias fundamentais, “também os direitos fundamentais devem reconhecer um espaço de auto-regulação civil, evitando transformar-se em ‘direito de não-liberdade’ do direito privado”.[7]
Destarte, não faz sentido sustentar um suposto “interdito” constitucional à regulação do divórcio pelo legislador. A abstração e vagueza próprios do texto constitucional não se prestam a atender às exigências quanto à necessidade de uma regulação minuciosa da dissolução do casamento. Seria desnecessário, por exemplo, fazer constar do texto constitucional regras tais sobre o procedimento do divórcio como as sobre a resolução parcial e antecipada do mérito da demanda, que são de grande utilidade para as ações de divórcio, e serão objeto de regulação específica no Novo Código de Processo Civil projetado.
2. Houve abrogação constitucional?
Causa certa perpelexidade notar que ganhou um discurso que reputa que o estabelecimento de prazos – como os previstos no art. 1.574 do Código Civil -, e a separação judicial são supostamente incompatíveis com a Constituição vigente.
Tal atitude não era e nem nunca foi a predominante entre os juristas nos anos que antecederam a Emenda Constitucional sob análise. Afirmar a inconstitucionalidade da separação judicial não é algo que possa ser realizado, nem a partir do que restou no texto constitucional, muito menos com base naquilo que foi suprimido no tocante aos prazos para a conversão da separação em divórcio.
Pode-se dizer, entretanto, que a redução e/ou eliminação de prazos
"parece ser uma tendência do direito civil e processual civil atual. Vive-se hoje uma nova “velocidade” do direito. Se antes se recomendava a observância de longos anos de separação judicial ou de fato para que os separandos pudessem avaliar a conveniência da ruptura definitiva plasmada no divórcio, observe-se que a Emenda Constitucional nº 66/2010 simplesmente aboliu a observância de qualquer lapso temporal. O Código Civil brasileiro também parece seguir esta tendência, quando reduziu o prazo geral de prescrição de 20 (vinte) para 10 (dez) anos".[8]
Ou ainda, pode-se inserir esta questão no contexto de uma luta secular dos juristas contra a “legalidade arbitrária”[9]; diante da falta de razoabilidade na imposição do cumprimento de certos prazos para a aquisição e o exercício de certos direitos.
A questão, sem sombra de dúvida, se conecta ao movimento de constitucionalização do direito civil e, especialmente, do direito de família. A Constituição é um elemento deveras relevante para a interpretação e desenvolvimento (judicial) do direito privado.
O professor Paulo Lôbo, um dos expoentes deste movimento de constitucionalistas civilistas, advoga que houve a abrogação do instituto da separação judicial em virtude da “força normativa da constituição”:
"Há grande consenso, no Brasil, sobre a força normativa própria da Constituição, que não depende do legislador ordinário para produzir seus efeitos. As normas constitucionais não são meramente programáticas, como antes se dizia. É consensual, também, que a nova norma constitucional revoga a legislação ordinária anterior que seja com ela incompatível. A norma constitucional apenas precisa de lei para ser aplicável quando ela própria se limita ‘na forma da lei’".[10]
Observe-se, pois, que o argumento do ilustre civilista alagoano prende-se justamente na ausência da expressão “na forma da lei” no texto constitucional sob análise.
Entretanto, o estilo de escrita da Constituição é diverso do estilo do Código Civil, porquanto faça uso de palavras muito menos precisas do ponto de vista semântico do que as utilizadas no Código Civil, além de perseguir outros objetivos. Tratam-se de “duas formas diversas da técnica de legislar, distintas formas de pensamento e tradições. Como afirmou expressamente Fachin (…), por detrás desses esforços de figuração há ‘uma grande vontade política’”.[11]
Ademais, o recurso a certas categorias argumentativas próprias do chamado neoconstitucionalismo, do modo como vêm sendo aplicadas “no Direito, em geral, e no Direito Civil, em particular, também servem para derruir a chamada ‘dignidade da legislação’”. Uma série de questões de elevada relevância social deixam de ser discutidas no âmbito próprio para tal, o Parlamento, e passam “para as sedes de juízos e tribunais, notoriamente deficitários em termos democráticos”. [12]
Deve-se ter em mira, portanto, que a questão da interpretação da Emenda Constitucional n. 66/2010 não reside, certamente, apenas nas sete palavras que ficaram na Constituição.
Sozinhas, elas não dizem muito, além da garantia de que o legislador não pode proibir o divórcio – o que, em si, por outro lado, já é muito.
O problema de interpretar a reforma diz respeito, antes, à avaliação do que “saiu” com as vinte quatro palavras removidas do aludido 226, § 6º, da Constituição Federal, e do que “entrou”, ou teria entrado, no nosso direito de família, segundo o que se pretende. Resta explicar como se põe algo na Constituição tirando texto.
Aliás, o fenômeno da “civilização da Constituição”, em matéria de direito de família, é uma faca de dois gumes. A introdução de regras do direito de família na Constituição já foi usada tanto para garantir o casamento civil (1824), passo republicano, com certeza; como também para mantê-lo igual ao religioso, “insolúvel”, que foi o que ocorreu até 1977.
A atual situação de dúvida é efeito colateral desse fenômeno peculiar.
A melhor interpretação, portanto, parece ser no sentido de considerar que a reforma teria eliminado os prazos para o “divórcio”, mas não eliminado a “separação judicial” do sistema, que permaneceria inalterado, no mais. Não teria havido abrogação tácita do instituto da “separação jurídica”.[13]
Até mesmo porque, como se verá mais adiante, a reforma importa praticamente na equiparação de efeitos entre a separação “de fato” e a separação “judicial”. Talvez exista um certo exagero – que decorre da vontade política (ou vontade de poder?) sob as vestes da constitucionalização -, em considerar que o texto constitucional seja capaz de abolir a separação dita “de fato”.
3. A aproximação entre a separação de fato e a separação judicial.
Já se dava grande destaque, nas primeiras décadas do século passado, ao “fático” nos domínios do direito. A linguagem do direito rende grandes homenagens ao “fato”, desde então. Esta é uma linguagem relativamente recente no direito. Assim, pouco a pouco se incorpora no vocabulário jurídico. No direito civil, por exemplo, fala-se em domicílio de fato, separação de fato, sociedade de fato, etc. As estruturas “de fato”, em diversas áreas do direito, tendem a ganhar eficácia jurídica, à semelhança das correspondentes estruturas “abstratas” ou “ideais”, tradicionalmente reguladas.[14]
Pode-se dizer que os institutos jurídicos vinculados às estruturas “abstratas”, como a separação judicial e a adoção, “exprimem a fé do jurista no poder augusto do magistrado”; seu poder de desfazer uma união conjugal, ou de estabelecer a filiação. Entretanto, “a separação de fato significa que os esposos estão materialmente separados sem precisar recorrer a um juiz; este simples fato é suficiente para a constituição de uma nova situação jurídica”.[15]
Portanto, toda separação (seja judicial ou de fato) é jurídica, pois é juridicamente relevante.
Se a diferença entre fático e jurídico mostra-se artificiosa já na teoria do direito, mais frágil é sua distinção em matéria de separação, no direito de família.
A reforma constitucional significou o fim da “separação jurídica”?
Ora, certamente existe ainda, e sempre existirá, um estágio, que é determinado pelos fatos mesmos, embora não seja puramente fático: a separação propriamente dita. Antes de se divorciarem, mas sem estarem mais vivendo juntos, os cônjuges estão “separados”. E isso deve passar a ser entendido como relevante inclusive do ponto de vista do “estado civil”, porque então a pessoa já está “livre”, juridicamente, para constituir nova família pela união estável e essa condição deve ser dada a conhecer publicamente. E podem os cônjuges inclusive determinar isso negocialmente, por escritura.
Assim, pois, parece que uma das conseqüências menos óbvias dessa reforma constitucional é aquilo que a mais antiga Proposta de Emenda Constitucional tencionava alcançar: a igualdade entre separação de fato e de direito.
Só que então se queria igualdade de prazo; agora, igualdade conceitual, identidade entre separação de “fato” e de “direito”.
Desde que a doutrina e a jurisprudência admitiram efeitos para a separação de fato, inclusive o de fazer cessar o regime de bens, os deveres conjugais, bem como o de afastar o “impedimento” para contrair união estável, essa também é uma separação “jurídica”.
Por isso, não é que a “separação jurídica” tenha sido abrogada.
Assim, não faria sentido afirmar que um eventual interessado não possa recorrer ao judiciário a fim de dar certeza jurídica do seu estado, ou seja, obter o reconhecimento judicial da separação outrora apenas de fato.
O direito ao divórcio, contudo, não depende de comprovação da separação (judicial ou de fato). Remanesce, contudo, a separação judicial como uma faculdade conferida ao casal. Foi neste sentido o entendimento esposado em enunciado aprovado na V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “A EC 66/2010 não extinguiu a separação judicial e extrajudicial”.
Conclui-se, portanto, pela adequação do Novo Código de Processo Civil projeto à ordem constitucional brasileira. Na medida em que não se verificou a abrogação do instituto, não há que se falar em repristinação. A regulação do procedimento da separação judicial é uma medida acertada no âmbito do Novo Código de Processo Civil projetado, além de contribuir para a sanação de uma série de dúvidas que ainda pairam no ar.
[1] Advogado. Doutor em Direito – UFPE. Secretário Geral da Escola Superior de Advocacia Professor Ruy Antunes, da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção Pernambuco.
[2] Advogado. Doutor em Direito – PUC/SP. Professor Titular de Direito Civil da UFPE.
[3] Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-nov-18/lenio-streck-inconstitucional-repristinar-separacao-judicial Acesso em: 21 de novembro de 2014.
[4] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado – Parte Geral: Tomo I. 2 ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. XIII.
[5] NEUNER, Jörg. O Código Civil da Alemanha (BGB) e a Lei Fundamental. Revista Jurídica, a. 52, n. 326 (dezembro de 2004). Porto Alegre: Notadez, p. 10.
[6] CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. Revista Jurídica, a. 51, n. 312 (outubro de 2003). Porto Alegre: Notadez, p. 09-10
[7] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Civilização do direito constitucional ou constitucionalização do direito civil? A eficácia dos direitos fundamentais na ordem jurídico-civil no contexto do direito pós-moderno. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direito Constitucional – Estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 113.
[8] COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Sobre a prescrição e a boa-fé no exercício da pretensão executiva: breves reflexões a partir da reforma do direito obrigacional alemão. In: ADONIAS, Antonio; DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da (coords.). Execução e Cautelar – Estudos em homenagem a José de Moura Rocha. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 610-611.
[9] MOZOS, José Luis de Los. Naturalis et civilis ratio dans le droit privé moderne. In: Le raisonnement juridique. Actes du congrés mondial de philosophie du droit et de philosophie sociale: Bruxelles, 30 août – 3 septembre 1971. Bruxelles: Hubert Hubien, 1971, p. 101.
[10] LOBO, PAULO. Separação era instituto anacrônico. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2407201007.htm Acesso em: 21 de novembro de 2014.
[11] CASTRO JR, Torquato. Constitucionalização do direito privado e mitologias da legislação: código civil versus constituição? In: SILVA, Artur Stamford da (org.). O judiciário e o discurso dos direitos humanos. Recife: EDUFPE, 2011, p. 66.
[12] RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Estatuto epistemológico do direito civil contemporâneo na tradição de civil law em face do neoconstitucionalismo e dos princípios. O Direito, a. 143, v. II (agosto de 2011). Lisboa: Almedina, p. 60.
[13] DELGADO, Mário Luiz. A nova redação do § 6º do Art. 226 da CF 88: O porquê a separação de direito continua a vigorar no ordenamento jurídico brasileiro. In: DELGADO, Mário Luiz; COLTRO, Antônio Carlos Mathias (coords.). Separação, divórcio, partilhas e inventários extrajudiciais – Questionamentos sobre a Lei 11.441/2007. 2. ed. rev. ampl. e atual. pela EC nº 66/ 2010 (PEC do Divórcio). São Paulo: Método, 2010, passim.
[14] SAVATIER, René. Réalisme et idéalisme en droit civil d’aujourd’hui: structures materielles et structures juridiques. In: Le droit privé français au millieu du XXe siècle: études offertes à Georges Ripert. Tome I. Paris: L.G.D.J., 1950, p. 75-76.
[15] SAVATIER, René. Réalisme et idéalisme en droit civil d’aujourd’hui: structures materielles et structures juridiques. In: Le droit privé français au millieu du XXe siècle: études offertes à Georges Ripert. Tome I. Paris: L.G.D.J., 1950, p. 77.
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