Estabilização de preços

Novo cálculo da inflação na contramão do artigo 192 da Constituição

Autor

  • Eduardo Dotta

    é professor conselheiro do programa de LL.M. em Direito dos Mercados Financeiro e de Capitais do Insper Direito e advogado em São Paulo.

26 de maio de 2014, 7h33

Artigo produzido por especialistas do Insper. As opiniões emitidas são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

Recentemente foi veiculada notícia da possível intenção governamental de retirar alguns itens de consumo do cálculo da inflação. A medida, segundo noticiado, consistiria em desconsiderar o preço de determinados alimentos, julgados não essenciais ao consumo populacional, do cômputo de determinado índice inflacionário.

Desta forma, a recente volatilidade observada no valor de mercado destes alimentos deixaria de interferir no resultado da métrica inflacionária.

A ideia foi alvo de críticas de diversos economistas, sendo os principais argumentos direcionados à inadequação da medida ao estancamento do crescimento da inflação —não haveria ataque ao “núcleo” da inflação —, e também à gravosa possibilidade de distorção entre o índice inflacionário e a efetiva elevação dos preços ao consumidor. Com isso, perder-se-ia a sensibilidade do índice a real corrosão do poder de compra da população.

Na visão dos economistas, com o abandono da aderência do índice inflacionário à perda do poder de compra da moeda, a população e os agentes econômicos não teriam também a correta referência da correção monetária, com implicações para o ajuste de diversos valores que formam a economia real (reajustes de contratos, salários, aplicações financeiras, condenações judiciais, são alguns exemplos).

Não pretendemos, contudo, sentenciar o acerto — ou desacerto — da ideia sob o ponto de vista econômico, mas debatê-la sob o ponto de vista jurídico da regulação do mercado financeiro e de capitais, com efeitos para a economia nacional.

Pois bem, ao visitar o artigo 192 da Constituição Federal — norma matriz da regulamentação do mercado financeiro e de capitais brasileiro — constatamos que o Sistema Financeiro Nacional deve ser estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade.

A doutrina que se posicionou sobre o tema é uníssona em ponderar que, para a promoção do desenvolvimento equilibrado do país e a colocação do sistema financeiro a serviço dos interesses da coletividade, é primordial que a mobilidade da poupança nacional efetivamente ocorra, e que, somente em um sistema financeiro em que o fluxo de capitais migre — em condições naturais de mercado — daqueles que dispõe de fontes de financiamento para aqueles que delas necessitam, é que poderá se pensar no desenvolvimento econômico equilibrado com o atendimento dos interesses da coletividade [1].

Referida compreensão parte da premissa que somente em condições de mercado, o que presume a ausência de artificialidade na formação de preços, é que haverá deslocamento de riquezas dos detentores de capital àqueles necessitados de capital.

Não é por outro motivo que a evolução da regulamentação do mercado financeiro e de capitais privilegia, com destaque, o acesso equânime e completo dos investidores às informações relacionadas aos ativos investidos (full disclosure), bem como a necessidade de consistência das informações veiculadas [2], no que se inclui o preço real e atualizado dos ativos. O foco da regulamentação é evitar que as falhas de mercado (como, por exemplo, a inexistência de um ambiente concorrencial saudável, a falta de transparência nas informações e a existência de informação privilegiada) prejudiquem a livre iniciativa, a existência de mercados sadios para hospedar os negócios e, consequentemente, o desenvolvimento econômico da nação.

Retomando a questão inicial — a possibilidade de se aferir o índice inflacionário com a desconsideração de alguns itens que antes integravam o seu cálculo —, a adoção da medida corresponderia, ao nosso sentir, a um retrocesso com reflexos na regulamentação dos mercados.

Ora, se os comandos regulatórios determinam aos agentes de mercado que forneçam todas as informações fidedignas e atualizadas dos ativos financeiros negociados aos investidores, como atuar em um cenário de incerteza na formação de preços?

Se, n’outro giro, os destinatários das informações fidedignas tiverem conhecimento da possibilidade de risco de imprecisão na formação do preço de um determinado ativo, de fato haverá investimento?

Um cidadão que, visando manter o poder aquisitivo de suas economias, queira adquirir uma quota de fundo de investimento de renda fixa, cuja valorização esteja atrelada a um determinado índice inflacionário, como deverá se comportar no cenário em que o indexador de valorização do seu investimento não seja capaz de acompanhar a volatilidade do custo da cesta básica que habitualmente consome…?

Outro ponto que não podemos desconsiderar é o risco de precedente. Uma vez retirado um componente que passou a admitir elevada volatilidade do cômputo da inflação, abre-se a possibilidade para a gradual retirada de outros itens que se tornem incômodos à apuração do índice, gerando total descontrole no estabelecimento de preços, com a inevitável perda da referência monetária.

A medida, assim considerada, nos parece caminhar contrária ao senso de regulamentação setorial, não sendo favorável à mobilidade de capitais essencial ao desenvolvimento dos mercados financeiro e de capitais.

Mesmo sem precisar o grau de impacto da medida para os títulos indexados ao fator inflacionário e, indiretamente, para os demais títulos de renda fixa, é possível pregar que parcela não desprezível dos ativos disponíveis no mercado poderiam ter sua absorção prejudicada, dada as incertezas geradas aos investidores. Em última análise, o próprio financiamento da dívida pública, atrelada a tais papéis, também seria atingido. De um lado os investidores teriam reduzido o interesse nesta modalidade de investimento, de outro os necessitados de capitais teriam uma fonte a menos de captação de recursos [3].

Realizadas estas breves considerações, nos parece razoável afirmar que a possibilidade de retirada de bens de consumo usuais ao cálculo da inflação, além das críticas de ordem econômica, caminha em sentido oposto à mobilidade de recursos essencial ao bom funcionamento do mercado financeiro e de capitais e à colocação do sistema financeiro nacional a serviço dos interesses da coletividade, dificultando o atendimento do comando presente no artigo 192 da Constituição Federal por parte dos destinatários da referida norma.

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[1] Neste sentido, confira-se MOSQUERA, Roberto Quiroga. Os Princípios Informadores do Direito do Mercado Financeiro e de Capitais – Aspectos Atuais do Direito do Mercado Financeiro e de Capitais. São Paulo: Dialética, 1999; NUSDEO, Fábio. Curso de Economia – Introdução ao Direito Econômico, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001; e PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2005.

[2] Neste particular, muitos avanços foram conquistados pela regulamentação do mercado financeiro e de capitais brasileira, em linha com o comando normativo constante do artigo 192 da Constituição Federal. Como exemplo, podemos citar a evolução das regras da Comissão de Valores Mobiliários para divulgação de informações e também as regras para marcação a mercado do valor dos ativos integrantes das carteiras dos fundos de investimento.

[3] É possível o argumento de que bastaria aos emissores de dívida indexar os papéis a outro fator que não inflacionário. A questão, contudo, que remanesce é que outros critérios de remuneração (vg. da taxa Selic), que indiretamente tendem a acompanhar a inflação calculada, também poderiam estar em patamar não condizente com a realidade dos preços de mercado.
 

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