O “decido conforme a consciência” dá segurança a alguém?
15 de maio de 2014, 8h00
Esta coluna não deve ser lida por quem não aprecia questões sofisticadas sobre o Direito. Quem acha que discutir filosofia e “crise de paradigmas” é perfumaria, não deve perder seu precioso tempo. Pare por aqui. Portanto, ninguém poderá alegar desconhecimento acerca do “produto”.
A entrevista do Desembargador Ricardo Dip
Domingo, abro o ConJur e leio o título “Segurança Jurídica” acima do titulo “juiz precisa ter consciência que erra”. Era a entrevista do desembargador Ricardo Dip, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). Pensei: sob esse epíteto “segurança” e esse título da entrevista, vou me deliciar. Finalmente alguém do Judiciário vai entrar rachando na temática “segurança jurídica” e na problemática do “erro de apreciação judicial”. Alvíssaras.
Já no início, fiquei animado. O entrevistado, com base filosófica considerável e grande convivência com a literatura (o que atraiu, de pronto, minha simpatia), faz uma crítica ao neosofistas contemporâneos. E fez críticas ao relativismo. Cada vez mais animado, fui adiante. Confesso que me vi nas palavras do desembargador Dip. Principalmente depois que li, dias antes, que um ministro do STF, abrindo uma conferência, citou um poeta sofista, para quem as coisas são segundo o cristal com se olha, isto é, nada mais, nada menos que a repristinação da máxima de Protágoras “o homem é a medida de todas as coisas”. Aqui, um esclarecimento necessário. No caso da sentença de Protágoras, faz-se necessário ressalvar que o fato de ser aqui o homem a medida de todas as coisas não representa um sujeito que por si só descobre os sentidos do mundo, construindo estes (os sentidos) seguindo a sua subjetividade ou consciência (Com Heidegger, é preciso observar que o ambiente da filosofia grega não conhecia conceitos próprios da modernidade como é o caso do conceito de sujeito). De todo modo, repito, o desembargador Dip fez críticas duras aos sofistas (inclusive nominando Protágoras). Que felicidade.
Mas eis que, na sequência, de repente, nosso entrevistado resvala epistemicamente, ao dizer que o juiz deve decidir de acordo com sua consciência. Como eu estava empolgado com o início da entrevista, tive que ler de novo. De fato, ali constava, verbis: “O juiz deve decidir de acordo com sua ciência e consciência. Em rigor, eu digo isso, e é um fato muito pessoal: minha consciência, em determinado momento, está totalmente voltada a Deus. Eu sei que eu vou responder pelos meus acertos e erros perante Deus”. Sobre essa “questão de Deus”, não falarei na coluna, uma vez que sou adepto da secularização plena, por assim dizer.
Prossigo. Em outro momento, quando fala do juiz ideal, lá aparece, esculpido-em-carrara, a figura do juiz solipsista, uma espécie de “juiz do justo concreto”. Então, qual é o problema? Onde reside o resvalo epistêmico?
Explico: os sofistas foram os primeiros positivistas (naquilo que se entende por positivismo de forma sofisticada). E isso é assim por causa de sua concepção convencionalista. Não há qualquer imanência ou ontologia entre palavras e coisas. Por isso o homem é a medida de todas as coisas. Foram combatidos por Platão, pela boca de Sócrates. O livro Crátilo deixa isso muito claro, quando os sofistas são colocados frente à frente com o naturalismo de Crátilo. Aristotéles pensava, inclusive, que Platão bateu pouco nos sofistas.
É certo que o relativismo contemporâneo deita raízes nos sofistas, embora essa concepção possa ser explicada de outros modos. Por exemplo, o pragmaticismo tem relação direta com o nominalismo (pensemos no personagem Humpty Dumpty de Alice Através do Espelho). Assim, o positivismo é relativista (Kelsen reconhece isso; e o positivismo tem um quê forte de nominalismo. E assim por diante. Michel Villey descreve muito bem essa relação do positivismo com o nominalismo e o relativismo.
Já o sujeito — da relação sujeito-objeto — é uma invenção moderna. A partir de Descartes, tem-se que os sentidos, se antes estavam nas coisas (porque estas tinham uma essência), agora passam a estar na consciência. Vale dizer, a filosofia cartesiana transfere a substância aristotélica que se colocava na natureza e naquilo que, diante da constante modificação, permanece inalterado, para a certeza de si do pensamento pensante (cogito). Todas as afirmações e dogmas da tradição foram colocados em dúvida pelo cartesianismo, até que essa dúvida encontrou qualquer coisa que já não podia ser posta em dúvida: enquanto se duvida, não se pode duvidar que aquele que duvida ele próprio existe e que tem que existir para que possa duvidar. Na medida em que duvido, portanto, eu sou. O eu é aquilo que não pode ser colocado em dúvida. Desse modo, antes da teoria acerca do mundo (esse sim, objeto da dúvida), deve colocar-se a teoria acerca do sujeito. Daqui em diante a teoria do conhecimento é o fundamento da filosofia, o que a torna moderna, distinguindo-a da medieval.
Para evitar mal-entendidos sobre o que estou dizendo
E aí é que está o problema da entrevista do desembargador. Vou pontuar bem essa questão para evitar mal-entendidos (sei que haverá muitos mal-entendidos, mas vou tentar reduzir os “danos” o máximo que puder). Note-se: o desembargador Dip faz menção à decisão conforme à “ciência e a consciência” (algo que me faz lembrar diversos pronunciamentos do ministro Marco Aurélio no plenário do STF) em uma pergunta cujo contexto está ligado ao atual apelo midiático do poder judiciário e ao excessivo caráter de publicidade que temos hoje em certos julgamentos, especialmente aqueles que são transmitidos pela TV Justiça. Todavia, nesse momento, aparece, como um sintoma, algo que está recrudescido no imaginário gnosiológico dos juristas: a ideia de que a “liberdade de decisão do juiz” está ligada a uma ideia de responsabilidade subjetiva dos julgamentos que profere. Algo como dizer que o-juiz-constrói-sua-decisão-a-partir-de-uma-simbiose-de-razões-e-sentimentos que são apenas seus (vale dizer, um juiz solipsista — um Selbstsüchtiger). Ora, dizer que o juiz decide conforme sua consciência retira o caráter institucional e político que reveste as decisões do Poder Judiciário. Daí que o desembargador, da — acertada — crítica que faz àquilo que se chama de “pós-modernidade” e ao relativismo dos sofistas, acaba por cair em um outro tipo de relativismo: aquele próprio da filosofia da consciência (ou nas vulgatas moderno-voluntaristas). É nisso que reside a “coisa”.
Daí a minha pergunta: De que adianta dizer que não há segurança jurídica hoje no Brasil e, ao mesmo tempo, sustentar que o juiz deve decidir conforme sua consciência? Ora, em termos de paradigmas filosóficos, estamos apenas saindo da crítica de uma concepção sofistica e indo em direção a uma concepção solipsista, para dizer o menos. Que segurança tem o jurisdicionado quando sabe que a decisão é dada conforme a consciência individual do decisor? Ainda que isto esteja afiançado por uma instância transcendente com pretensões de objetividade (Deus ou a Natureza).
Mas não estou satisfeito. Sigo para aprofundar mais ainda essa questão. É que da crítica bem feita aos sofistas o desembargador Dip cai na filosofia da consciência (ou nas vulgatas moderno-voluntaristas). Daí a minha pergunta: De que adianta dizer que não há segurança jurídica hoje no Brasil se, ao mesmo tempo, sustentar que o juiz deve decidir conforme sua consciência? Ora, em termos de paradigmas filosóficos, ele apenas saiu da critica de uma concepção sofistica e caiu em uma concepção solipsista, para dizer o menos. Trazendo para o direito: Em vez de a decisão ser dada de acordo com uma estrutura (na hermenêutica chamamos a isso de a priori compartilhado, que compreende a reconstrução da história institucional do direito, com coerência e integridade, o decisor prolata a sentença de acordo com o que a sua consciência. Ora, dizer que alguém decide assim implica ingressar na problemática dos paradigmas filosóficos. Sem tirar nem por.
Eis a grande discussão a ser feita e que venho sustentando há tantos anos e que está no livro O Que É Isto – Decido Conforme Minha Consciência? Não há Direito sem Filosofia. Não há direito sem paradigmas filosóficos. Parece que já superamos o paradigma epistemológico da filosofia da consciência em outras áreas. A própria filosofia, depois daquilo que se consignou a chamar de linguistic turn, movimenta-se fora dos estreitos caminhos da subjetividade assujeitadora do mundo. Isso tanto no campo da filosofia analítica quanto no âmbito da assim chamada filosofia continental, no interior da qual se situa a corrente hermenêutica. Mas não no Direito. Parece que no Direito isso está impregnado. E desse enclausuramento de imaginário temos uma sequência de implicações à listar mas que, de um modo ou de outro, convergem para o mesmo ponto: a aposta no protagonismo judicial. O instrumentalismo processual começou com um “grito” solipsista de Oskar Büllow. Isso também pode ser visto nas posturas que defendem o realismo jurídico. É o que se chama também de positivismo fático. Enfim, um mix de posturas que acabam na defesa de posturas discricionaristas, que, ao fim ao cabo, são o produto da prevalência do sujeito indomado da modernidade.
Portanto, a defesa da segurança jurídica por parte do desembargador Dip se transforma na defesa de uma insegurança jurídica ou a segurança-conforme-o-decidir- individua(ista) da consciência de si do pensamento pensante (do julgador). E isso não dá segurança para ninguém. Apenas a sensação de que temos de torcer para que o juiz que decide nossa causa seja um “homem de bem”. E quem acredita na bondade dos bons?
Digo de novo: Não é implicância minha com quem assume a postura do “decidir conforme a consciência”, ou de sentença vem de sentire ou ainda de posturas que repristinam o velho socialismo processual dos tempos de Menger e Klein. São os paradigmas filosóficos que falam (d)isso. Cada um fala de determinado lugar. Lorenz Puntel explica bem que, quando fazemos filosofia, fazemos teoria. E que teoria pressupõem um quadro referencial teórico que permita articular os seus resultados em um contexto de sistematicidade. Ernildo Stein afirma algo similar, mas chama esse contexto amplo que acomoda a sistematicidade da reflexão de paradigmas filosóficos. Falar de um determinado lugar implica compromissos. Por isso, defender que o uma decisão deve ser dada conforme a consciência é permanecer refratário a todas as conquistas do giro linguístico do século XX. E isso não é invenção minha. Nem implicância.
O contexto e o nível da crítica
Vejam os leitores: minha crítica vai nesse nível em respeito e homenagem ao entrevistado. Se ele desfila um leque importante de autores e faz importantes críticas filosóficas no e do direito, penso que essa matéria deve ser enfrentada em um nível similar. Por isso faço esta coluna, jogando nas regras no jogo epistêmico, colocando à lume uma flagrante contradição. Na verdade, ao cair na armadilha da modernidade, o entrevistado anula toda a sua crítica ao modo atual de aplicação do direito. Ao colocar os exemplos para falar do “juiz ideal”, pouco mais fez do que repetir os próprios sofistas. Só que em uma versão 2.0. Sim, porque a diferença entre os sofistas e os filósofos da consciência está na “questão do sujeito”. Os sofistas estavam inseridos em uma dimensão de época — ou, poderíamos dizer, em um paradigma filosófico — que não conhecia a ideia de sujeito. Um mundo cheio de determinismos e, no interior do qual, os sentidos estavam dados.
O sujeito da modernidade, mesmo nos filósofos racionalistas, é livre para construir o próprio conhecimento. Não existe um sentido que lhe seja apresentado como determinante para a organização de sua vida. Ele é auto-nomos. Por certo que a modernidade filosófica não é uma mal-em-si. Destruir as “qualidades” que nos prendiam ao mundo antigo, no sentido de destruição das essências, é um aspecto fundamental para o processo civilizatório. Todavia, há que se ter em mente que essa libertação operada pela modernidade implica mais e não menos responsabilidade — pública — do sujeito/decididor. Dostoievsky, melhor do que todos, compreendeu isso quando perguntava: “Deus morreu, e agora? Podemos tudo?”, ao que já se emendava a resposta: “- não, agora é que não podemos nada”.
Enfim… O juiz do “caso Bernardo” decidiu conforme sua consciência…
O problema, em síntese, nem é o da aparente opção (ou permanência) no paradigma da filosofia da consciência. A questão a ser debatida — e isso venho fazendo amiúde — é a vulgata deste paradigma.
Afirmar que o juiz deve decidir conforme sua consciência, atentando para a realidade ao seu redor, é ressuscitar o velho socialismo processual (para dizer o minus). Veja-se que o juiz do “caso Bernardo” (o menino de Três Passos (RS) que foi morto pela madrasta e pela enfermeira amiga dela, com a possível anuência do pai), ao decidir que o menino ficaria sob a guarda do pai, justificou-se, dizendo: “— decidi conforme minha consciência”. Sim, ele conhecia a realidade da pequena cidade…(hermeneuticamente podemos dizer que esses “sentidos empíricos exsurgidos da imediatez” é que são os mais perigosos, porque provocam uma espécie de “assujeitamento” do intérprete a esse “imediato”, sem questioná-lo e sem suspendê-lo). Veja-se o perigo que é decidir conforme a consciência. Afinal — o que é isto — a consciência de cada um? Este é o busílis da questão! Poderia ele, o juiz, ter decidido que não daria a guarda ao pai. Infelizmente, sua escolha foi ruim (em termos finalísticos, porque com a permanência da guarda, o menino foi morto). Eis aí, pois, a “coisa”: decidir não é o mesmo que escolher, como tenho escrito ad nauseam. Não é e não pode ser. Escolhas sempre podem nos levar a erros. E direito não é filosofia moral, se me entendem.
Por óbvio que (um)a decisão judicial não pode ser compreendida como um fato isolado em um cadeia de eventos — pensemos em Dworkin, que já nos alertou sobre a necessidade de integridade e coerência.
O perigo de tal afirmação — a de que o juiz decide conforme a sua consciência (ou segundo uma instância de fundamentum inconcussum como o ens creatum) — reside na possibilidade de o juiz valer-se, por exemplo, de argumentos metajurídicos criados ad hoc para legitimar sua decisão, que segundo “sua consciência” deveria apontar em certa direção (e que talvez pudesse ser diferente dependendo do juiz ou do humor do mesmo juiz naquele dia) para mitigar as consequências indesejáveis de sua decisão. Ou o juiz valer do conhecimento empírico “da realidade ao seu redor”…
Se acreditarmos nisso, teremos que passar a prestar atenção no que o juiz come, para que time torce, etc. Isso significa(ria) admitir que o fato de o juiz, quando pequeno, não ter ganhado uma bicicleta no Natal pode(ria) proporcionar — hoje — uma decisão X em lugar de y. Ora, ora. Outro dia vi uma pesquisa dando conta de que os juízes de Israel liberam mais acusados (réus presos) logo depois do café da manhã e são mais rigorosos antes do almoço. Ora, isso apenas prova que o juízes precisam se alimentar melhor… e que o Tribunal de Israel precisa colocar uma nutricionista na vida desses juízes (ironia, é claro!). Se uma decisão depender da fome ou de algo correlato, estamos lascados, para usar uma linguagem mais simples. Se dependermos desse modo de escolhas, podemos dizer: Fracassamos. Fechemos as Faculdades, paremos de escrever livros. E passemos a estocar comida…para dar uma parte da ração aos tais juízes que são mais rigorosos perto do almoço!
Por fim — e sempre ressalvando a importância do entrevistado e a relevância de suas críticas ao imaginário jurídico lato sensu (em boa parte com elas estou de acordo) — é inegável que é preciso resgatar a ideia de verdade na decisão judicial, e neste ponto o entrevistado está absolutamente correto. A descrença no conceito de verdade, seja moderna, negando sua objetividade, ou pós-moderna, negando sua existência, tem repercussões teóricas perigosíssimas para a teoria do direito. No programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos (Capes nota 6, máxima do ranking) mantemos um grupo de pesquisa com 15 integrantes (entre alunos e professores) que estudam esse tema.[1]
O problema surge nas soluções para este dilema. Na grande maioria das vezes, a resposta mira no padre e acerta na igreja. Contra a rigidez objetivista se aposta no voluntarismo niilista, e o contrário também é verdadeiro.
[1] Um dos pontos fulcrais, por exemplo, é que, para os sofistas, o problema da verdade estava no âmbito retórico, principalmente. Na modernidade, o problema é outro, metafísico. A necessidade de objetividade no conhecimento deslocou a fonte dos sentidos da coisa para o sujeito. Nesse sentido, ver o meu Hermenêutica Jurídica e(m) crise, 2013.
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