Senso Incomum

O dia em que o TST conheceu um recurso... de ofício!

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27 de fevereiro de 2014, 8h00

Spacca
Explicação do titulo da coluna
Platão dizia que a linguagem pode ser um remédio ou um veneno. O titulo é deliberadamente provocativo, fazendo alusão ao "conhecimento de oficio" do Recurso de Revista pelo TST. Não é(ra) para geral mal entendidos. É óbvio que não há/houve conhecimento de "oficio". Aliás, como é possível perceber, em nenhum lugar do texto há menção a isso. "Ofício" quer dizer: "recebo a hora em que quero e porque assim entendo que devo fazer, mesmo que não estejam cumpridos os requisitos legais". Não pensei que os estagiários tivessem que levantar a placa com os dizeres: "Ironia"! Algo como conceder Habeas Corpus de ofício… Simples.

Explicando o caso
Li nesta ConJur a notícia TST reduz valor de dano moral em recurso rejeitado. Ou seja, conforme a novel decisão, mesmo nos casos em que o Recurso de Revista que pede a revisão da indenização por danos morais não é conhecido porque não preenche os requisitos de admissibilidade, o Tribunal Superior do Trabalho pode reduzir o valor da indenização se considerar a quantia abusiva. Este entendimento foi adotado pela 6ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho ao analisar recurso do Walmart contra decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região (PR) que beneficiou um ex-funcionário. Os ministros reduziram a indenização a ser paga por conta das revistas feitas por meio de detector de metais de R$ 25 mil para R$ 1 mil.

E sabem qual o dispositivo invocado para “conhecer-sem-conhecer” a revista? O artigo 5º, inciso V, da Constituição, que diz: “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”. Confesso que não entendi. Em que sentido e em que medida esse dispositivo tem algo a ver com a espécie em discussão? Melhor dizendo: até onde vai o grau de ativismo de nosso Judiciário?

Tenho batido duro nesse fenômeno chamado “ativismo judicial”. Não é o mesmo que judicialização. Para deixar claro: enquanto a judicialização é contingencial, porque acontece em qualquer país do mundo, o ativismo é behaviorista, porque depende da vontade do poder, portanto, da pura subjetividade do julgador (é, pois, comportamental). No fundo, faz-se uma versão daquilo que Kelsen desprezava e/ou deixava (talvez um desprezo epistemológico) de lado: o fato de que a decisão judicial é um ato de vontade (que eu acrescento: vontade…de poder — a velha Wille zur Macht nietzschena). Kelsen era um pessimista moral. Achava que os juízes eram incontroláveis. Por isso dedicou à interpretação e aplicação do Direito apenas algumas páginas. No finalzinho da TPD, está o mal-compreendido capítulo oitavo. Por isso elaborou a sua Teoria Pura do Direito, uma teoria do andar de cima da ciência (Kelsen é um autor sofisticado; para entendê-lo, devemos saber que ele flertou fortemente com o neopositivismo lógico; por tais razões, a ciência do Direito é uma metalinguagem da linguagem objeto, que é o Direito). Ele passou a se preocupar, pois, com a ciência do direito, separando esta do direito propriamente dito. Não separava Direito e moral, mas, sim, a ciência do direito da moral. Claro que isso gerou uma algaravia e uma má-compreensão daquilo que ele disse. Muitos acham que ele queria fazer uma Teoria do Direito Puro; outros acham que ele foi o maior positivista exegético. Ledíssimo(s) engano(s). Kelsen foi um outro tipo de positivista, problemática que explico em vários textos, em especial em Verdade e Consenso. Há literatura muito boa sobre Kelsen, por exemplo, o livro em homenagem a Kelsen organizado por Elda Coelho de Azevedo Bussinguer e Julio Pinheiro Faro intitulada A Diversidade do Pensamento de Hans Kelsen (onde tem um texto meu) e o livro escrito por Gabriel Nogueira Dias, Positivismo Jurídico e a Teoria Geral do Direitona Obra de Hans Kelsen.

E o que o “coitado” do Kelsen tem a ver com esse ativismo do TST? Tudo, porque a partir dele se pode compreender porque ele escreveu uma Teoria para escapar justamente da discussão sobre atitudes voluntaristas. Bingo. No fundo, Kelsen desistiu de enfrentar o voluntarismo-subjetivismo judicial.

Mas muitos não desistiram. Dworkin, Habermas e tantos outros acreditam que é possível controlar decisões judiciais. Eu também acredito nisso. Por isso, a necessidade de discutir a decisão jurídica, como faço em Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. Qual é o busílis? Simples: a-democracia-não-pode-depender-de-atos-de-vontade (de poder) do tipo “decido-porque-acho-que…” ou “decido porque achei injusto…”. Ou de decisões do estilo do velho socialismo processual, lá da época de Menger e Klein. Poxa, como isso é velho. E anacrônico. Ou do solipsismo judicial pregado por Oskar Bülow, que achava que era tarefa dos juízes fazer a recepção do direito romano na Alemanha.

Ora, o direito não pode ser aquilo que os tribunais dizem que é. O direito do trabalho não pode ser o que o TST quer que ele seja. Fico impressionado com o silencio da comunidade jurídica diante de tantos atos de ativismo judicial em terrae brasilis. Somos fichinha perto de realistas jurídicos como o americano Duncan Kennedy. Aqui, ele seria um quase-exegeta, se me entendem o sarcasmo. E o velho Direito alternativo não faria melhor. Só que estamos em outros tempos. Naquela época, ser realista ou alternativista significava uma reação política contra um establishment não democratico. Depois da Constituição as promessas ainda não cumpridas da modernidade foram postas na Constituição. Portanto, passou a ser tarefa dos juristas-juízes cumprirem a legislação e, em especial, a Constituição.

Assim, na democracia, uma lei somente pode deixar de ser aplicada em seis hipóteses (vou repeti-las, embora já tenha delineado isso em outras colunas e nas obras que citei acima): a) quando a lei for inconstitucional, aplicando-se os mecanismos de controle de constitucionalidade; b) na hipótese em que, na relação texto e norma, for cabível uma interpretação conforme a Constituição; c) quando for caso de nulidade parcial sem redução de texto; d) quando se tratar de resolução pelo critério das antinomias — com os devidos cuidados, é claro; e) quando for caso de inconstitucionalidade parcial com redução de texto e e) quando for uma hipótese de uma regra se chocar com um princípio constitucional, claro que com os cuidados relacionados ao pamprincipiologismo. Fora dessas hipóteses, se o julgador quiser elaborar uma nova lei — e digo isso com toda a lhanesa e respeito — deve se candidatar a uma vaga no Parlamento. Simples, pois.

Portanto, não tem explicação que um tribunal deixe de aplicar a legislação atinente à admissibilidade de Recursos (de Revista), proferindo uma decisão ad-hoc, como foi o caso sob comento. E mais complexo ainda é conceber que o TST invoque, para cometer uma ilegalidade-inconstitucionalidade, a própria Constituição. E mais paradoxal é invocar o artigo 5º, locus privilegiado dos direitos fundamentais. O que o inciso V do artigo 5º tem a ver com a possibilidade de se passar por cima de critérios de admissibilidade recursal? Seria uma espécie de “cláusula geral” ou algo como uma pedra filosofal pela qual, sempre que o TST perceba uma injustiça, possa passar por cima de todos os procedimentos? Ou seria a hipótese da aplicação do fator Katchanga Real? Provavelmente nem Anton Menger aprovaria esse julgamento. Provavelmente, nem os instrumentalistas mais ferrenhos — que gostam dos malsinados “escopos processais” — estão de acordo com essa decisão.

A vingar a decisão do TST, abrir-se-á espaço para uma espécie de institucionalização do ativismo, isto é, a oficialização de uma prática instaurada em terrae brasilis: a juristocracia ou judiciariocracia. Qual é o problema disso? É que, fora da democracia, sempre dependeremos de atos individuais. E isso, por si só já é antidemocrático. E, mais do que isso, depende(re)mos de atos bondosos (ou não, porque essa apreciação é sempre subjetiva). E, como diz meu Amigo, psicanalista (e também jurista) Agostinho Ramalho Marques Neto, “Deus me livre da bondade dos bons”. Porque a bondade para mim pode ser a maldade para o outro. E vice-versa.

Regras do jogo… Como é difícil segui-las. Nesta altura, uma leitura de Bertolt Brecht ajudaria muito, mormente para vermos o comportamento do personagem do Juiz Azdak. Ele julgava como queria. Qualquer coisa era motivo para ele “fundamentar” suas decisões: do vento em sua toga ao perfume das flores.

Numa palavra, vamos ver se entendemos bem?
No caso sob comento, o TST, disse, mutatis, mutandis, que sempre que o valor de indenização se mostrar abusivo, não importa se o recurso foi ou não admitido… É disso que se trata, pois não? Vamos dar nomes às coisas. Estivéssemos no common law (logo, logo estaremos…), essa seria a holding do julgado (no caso, o princípio que se retira do julgamento). Isto quer dizer que, a partir de agora, quem for condenado a pagar determinado valor e o achar abusivo, basta reclamar que o TST resolve, não importando se o recurso de revista reúne ou não os requisitos de admissibilidade.

O problema são os efeitos colaterais disso. O problema são as consequências, que, como diria o famoso Conselheiro Acácio, “sempre vêm depois”. A questão é saber como funciona o controle disso tudo. Existiria uma espécie de “abusômetro” para saber em que momento a indenização foi muito alta? Ou um “injustômetro” para aferir o grau de (in)justiça do valor atribuído na indenização…

E, façamos uma brincadeira, invocando o mesmo artigo 5º da CF, só que, agora, o inciso que trata da isonomia e da igualdade: se o TST pode fazer isso nos casos de valor abusivo (para cima), pode fazê-lo em casos contrários (de valor para “baixo)? Pergunta que não quer calar: se o valor é abusivamente baixo, basta fazer um recurso (mesmo sem preencher os requisitos) que o TST corrige?

Outra coisa: a redução em 25 vezes (de R$ 25 mil para R$ 1 mil) não configura também a violação do princípio da proporcionalidade (uso apenas o argumento para entrar nesse jogo decisionista)? E mais: é razoável (uso também o argumento para entrar no jogo) que se reduza uma indenização em 25 vezes? E por que não 10 vezes? Ou 15? Ou 30? Há algum precedente nesse patamar? Neste caso, provavelmente até quem gosta de praticar “ponderações” (argh) diria que a decisão fere a proporcionalidade, porque sopesando os “valores” postos em jogo…. Bom, deixa prá lá.

Eis o busílis da questão. Temos que rever uma porção de “coisas” no direito de terrae brasilis. Não somente os concursos públicos devem sofrer uma virada copernicana, um turning point. Não somente o ensino jurídico deve fazer um seriously turn. Não somente a doutrina deve voltar a doutrinar, em uma espécie de mudança de rumo (uma Wendung) no seu papel (Rolle). Mais do que tudo isso, temos de construir as condições de possibilidade para saber o que queremos da democracia brasileira. Ela depende de que(m)? O que é isto — o Direito? Ele é o que os tribunais dizem que é? Essa resposta é da comunidade jurídica, que deve, urgentemente, fazer um desencantamento do mundo em que vive e em que sobrevive de migalhas de sentido.

Decidir não é o mesmo que escolher. O ato de decidir possui responsabilidade política diante da comunidade. Cada decisão — que não pode depender do solipsimo do intérprete ou do colegiado — tem efeitos colaterais. Se for mantida a nova “doutrina” estabelecida pela 6ª Turma do TST, todos os cidadãos da República poderão invocar uma espécie de “juízo de equity” dos tempos em que isso ocorria na Inglaterra com o Lord Chancellor. O TST e os demais Tribunais passariam a dar equitable remedies ad misericordium (ou non misericordiam) — se me entendem a ironia. O Lord Chancellor era a instância última, “resolvendo” as pendengas a partir da equity… Só que aqui não há Lord Chancellor. E nem mais lá. Isso já passou. Os ingleses evoluíram!

Como democrata e conservador (da lei, da Constituição e da democracia), fico pensando cá com meus botões: por vezes, uma boa dose de formalismo seria bom, pois não? Não prego isso, por óbvio, mas…

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