Justiça Comentada

Amplitude e limitações da competência disciplinar do CNJ

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21 de fevereiro de 2014, 8h01

Spacca
Não raras vezes, o Supremo Tribunal Federal vem sendo chamado a decidir sobre os limites constitucionais das competências do Conselho Nacional de Justiça, importante órgão de cúpula administrativa e disciplinar do Poder Judiciário criado pela Emenda Constitucional 45/2004.

Na ADI 4.638, o STF analisou a competência disciplinar do CNJ e a necessidade de compatibilização entre o princípio da autonomia dos Tribunais (CF, artigos 96, inciso I e 99) e as competências constitucionais originárias do Conselho Nacional de Justiça (CF, artigo 103-B, § 4º, III e § 5º, I, II e III), no âmbito disciplinar. Nessa ação, nossa Suprema Corte, compatibilizando os princípios e normas constitucionais, decidiu pela competência administrativa disciplinar originária e concorrente do CNJ, em duas hipóteses (a) competência originária disciplinar inicial e terminativa; (b) competência originária disciplinar revisional e terminativa.

No exercício de sua competência originária, disciplinar, inicial e terminativa, nos termos do inciso III, do § 4º, do artigo 103-B, poderá o CNJ “receber e conhecer das reclamações contra membros do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada a ampla defesa”, inclusive podendo, para cumprir sua missão constitucional, nos termos do § 5º, do citado artigo 103-B, receber as reclamações e denúncias, de qualquer interessado, relativas aos magistrados e aos serviços judiciários; exercer as funções executivas do Conselho, de inspeção e de correição geral.

Por sua vez, nos termos do inciso V, do § 4º, do artigo 103-B, poderá o CNJ, no exercício de sua competência originária disciplinar revisional e terminativa, “rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano”, pois como bem ressalvado pelo STF, as competências do CNJ não extinguiram a competência disciplinar dos tribunais.

A Constituição Federal permite essas duas hipóteses da mesma competência originária e terminativa do CNJ. Pela primeira, a atuação do CNJ é originária, terminativa e inicial, ou seja, será o Conselho Nacional de Justiça quem decidirá em única e última instância o processo disciplinar, seja mediante a instauração, seja mediante a avocação de processo disciplinar previamente instaurado no Tribunal de origem; enquanto pela segunda, a atuação do CNJ é originária, terminativa e revisional, ou seja, será o Conselho Nacional de Justiça quem decidirá em última instância o processo disciplinar, porém, mediante revisão de ofício ou por provocação, dos processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano.

O texto constitucional, portanto, fixou ampla competência disciplinar ao CNJ, permitindo-lhe dizer sempre a última palavra em matéria disciplinar, porém sempre respeitada uma das duas hipóteses de competência originária prevista expressamente na Constituição, pois a excepcionalidade da fixação de competências originárias do órgão de cúpula administrativa do Poder Judiciário, assim como ocorre secularmente em relação às competências jurisdicionais originárias do Supremo Tribunal Federal, exige previsão expressa e taxativa do texto constitucional, conforme princípio tradicional de distribuição de competências jurisdicionais nascido com o próprio constitucionalismo norte-americano em 1787, no célebre caso Marbury v. Madison (1 Cranch 137 – 1803).

Esse posicionamento — previsão constitucional taxativa das competências originárias da Corte Suprema — tem mais de 210 anos no Direito Constitucional norte-americano e mais de 120 anos na doutrina e jurisprudência nacionais, pois, igualmente, foi consagrado no Brasil desde nossos primeiros passos republicanos (RTJ 43/129, RTJ 44/563, RTJ 50/72, RTJ 53/776), uma vez que, o Supremo Tribunal Federal, que nasceu republicano com a Constituição de 1891 e com a função precípua de defender a Constituição em face, principalmente, do Poder Legislativo, por meio da revisão da constitucionalidade das leis, jamais admitiu que o Congresso Nacional pudesse alterar suas competências originárias por legislação ordinária, pois, como salientado por nossa Corte Suprema seu “complexo de atribuições jurisdicionais de extração essencialmente constitucional, não comporta a possibilidade de extensão, que extravasem os rígidos limites fixados em numerus clausus pelo rol exaustivo inscrito no art. 102, I, da Carta Política” (STF – Petição no 1.026-4/DF – Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 31 maio 1995, p. 15855. No mesmo sentido: RTJ 43/129; RTJ 44/563; RTJ 50/72; RTJ 53/776).

Esse mesmo princípio foi adotado pelo Legislador Constituinte Reformador ao editar a EC nº 45/04, e estabelecer as competências originárias do CNJ, tornando-as excepcionais, inclusive em respeito à autonomia dos Tribunais, que, igualmente, tem substrato constitucional, conforme se verifica nos artigos 96, inciso I, e 99 da Carta Magna.

No julgamento da citada ADI 4.638, além da definição da competência originária do CNJ ter substrato normativo retirado diretamente do texto constitucional, independentemente de outras atribuições que lhe possam ser conferidas pelo Estatuto da Magistratura, também ficou assentado por maioria de votos que o texto constitucional, no inciso III, § 4º, do artigo 103-B, estabeleceu importantes preceitos em relação à competência disciplinar do Conselho Nacional de Justiça: (a) A competência disciplinar do CNJ aplica-se não somente aos Magistrados, mas também aos serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados; (c) A competência disciplinar do CNJ não extingue a competência disciplinar dos respectivos Tribunais, que, porém, será passível de Revisão Disciplinar dentro do prazo decadencial de 1 (um) ano.

Patente, pois, que a competência disciplinar dos tribunais que, antes da EC 45/2004, era exclusiva e terminativa, passou, a partir da criação do CNJ a ser concorrente e não terminativa, mas não foi extinta e uma fez utilizada — com o processo e julgamento do processo disciplinar pelo Tribunal de origem — não poderá ser ignorada pelo CNJ, como se não houvesse ocorrido, mas sim, revista se necessário e sempre respeitado o prazo decadencial de um ano.

Jamais será possível, portanto, qualquer interpretação que possibilite a criação de uma terceira competência originária do CNJ, não prevista na Constituição Federal, que permita ao CNJ ignorar o prazo revisional de um ano das decisões dos tribunais locais e reiniciar o processo disciplinar como se não houvesse ocorrido um julgamento anterior, por frontal ferimento à segurança jurídica e legalidade, além dos Princípios de autonomia e independência dos Órgãos locais do Poder Judiciário, que encontram resguardo em todos os Estados democráticos de Direito.

As duas competências originárias são taxativas, competindo ao Conselho Nacional de Justiça sempre fixar a última palavra em relação ao processo disciplinar, inclusive quando determinar que o mesmo seja instaurado, instruído e julgado pelo tribunal de origem; quando então, permanecerá com sua competência revisional ampla, dentro do prazo decadencial de um ano contado a partir da decisão. Porém, não será permitido ao CNJ, simplesmente, ignorar os julgamentos anteriores dos tribunais locais e a qualquer tempo — mesmo passado o prazo decadencial de um ano — instaurar novo procedimento disciplinar pelos mesmos fatos.

A compatibilidade entre a autonomia dos tribunais e as competências originárias do CNJ foi alcançada pela ADI 4.638. De um lado, com grande fortalecimento desse órgão de cúpula, que sempre dirá a última palavra em termos disciplinares, seja inicialmente, seja por meio de avocação, ou ainda por meio de revisão; por outro lado, não se extinguindo a competência disciplinar dos próprios tribunais, que continuarão a atuar, apesar da possibilidade de revisão no prazo decadencial de um ano.

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