Direito tributário

Doutrina está distante das decisões administrativas e judiciais

Autor

  • Andrei Pitten Velloso

    é juiz Federal da 4ª Região. Doutor em Direitos e Garantias do Contribuinte pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestre em Direito Tributário pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS.

20 de fevereiro de 2014, 8h13

Nos dias de hoje, nota-se um grande distanciamento entre a doutrina do Direito Tributário e as decisões administrativas e judiciais. Muitas vezes, as lições doutrinárias não são acolhidas e sequer consideradas pelos tribunais, seja porque, assentadas numa visão minimalista do papel da Ciência do Direito, não trazem critérios realmente úteis para a solução dos hard cases que a Administração Tributária e o Poder Judiciário têm de decidir diariamente, seja porque elaboram construções teóricas tão distanciadas da realidade que jamais poderiam ser concretizadas na prática, tal qual sucede com a propalada exigência de que o legislador somente utilize “conceitos fechados”, absolutamente precisos, para a formulação das normas tributárias.

Daí a importância de se refletir sobre os limites e as funções da Ciência do Direito Tributário. Neste exíguo espaço, faço-o tomando de empréstimo os recentes, e lapidares, escritos de André Folloni e Humberto Ávila.

André Folloni principia sua festejada tese doutoral apresentada à Universidade Federal do Paraná, que deu origem ao livro intitulado “Ciência do Direito Tributário no Brasil: Crítica e perspectivas a partir de José Souto Maior Borges”, com a categórica assertiva de que a “ciência do direito tributário brasileiro, em boa medida, é construída sobre bases irreais” (p. 23), vendo o antídoto contra esse lastimável quadro na obra de José Souto Maior Borges (p. 24), da qual parte para ir além, elaborando uma proposta teórica própria, que preconiza o reconhecimento da complexidade do Direito e o refinamento da teoria jurídica.

Embora as limitações impostas pela lógica devam ser aceitas, impõe-se “superar o pensamento exclusivamente lógico e suas limitações” (p. 331). O Direito não pode ser adequadamente compreendido, explicado e aplicado à luz de teorias minimalistas e reducionistas. Tem de ser analisado de modo integral. A complexidade do Direito deve ser assumida e enfrentada, haja vista que “complexo o objeto, complexo deve ser o estudo” (p. 400). A missão da doutrina não é “descrever abstratamente a abstração”, mas “orientar a aplicação do direito ao caso concreto, além de seu aprimoramento, em ciência normativa”. Aos juristas cabe assumir essa incumbência, enfrentando com argúcia as variadas nuances do universo jurídico, em toda a sua amplitude, pois “se a doutrina não faz esse papel, a quem recorrerá o Juiz?” (p. 427).

Trilhando a mesma vereda, Humberto Ávila, que prefaciou a obra de André Folloni e, ao fazê-lo, qualificou-a como “uma das mais importantes publicadas nas últimas décadas no Brasil” (p. 15), critica o reducionismo epistemológico em dois alentados artigos: “A doutrina e o direito tributário” (in: “Fundamentos do Direito Tributário”, Marcial Pons, 2012) e “Função da Ciência do Direito Tributário: do Formalismo Epistemológico ao Estruturalismo Argumentativo” (Revista Direito Tributário Atual, nº 29).

No primeiro escrito, Ávila adverte que a doutrina perdeu algo fundamental no decorrer do tempo: o seu “papel orientador” (p. 243). Isso decorreu, sobretudo, da aplicação ao Direito do empirismo como paradigma de ciência, levando a que a doutrina, norteada pelas concepções assentadas pelos integrantes do “Círculo de Viena” e capitaneada pela paradigmática Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, buscasse a verdade mediante testes de correspondência factual entre os enunciados descritivos dos juristas com os enunciados prescritivos dos diplomas jurídicos, em ordem a que a interpretação científica fosse absolutamente objetiva, neutra e imparcial, limitando-se a indicar as alternativas interpretativas a partir dos usos linguísticos, sem jamais propor a adoção de uma delas, tida como a correta, a mais justa ou a mais apropriada à luz dos princípios e do sistema jurídico. Essa exigência desmedida teve uma consequência indesejada, que sentimos até hoje: “os problemas que não podiam ser objeto de descrição objetiva e imparcial não eram problemas da doutrina, apenas do aplicador, que deveria resolvê-los, sem o auxílio da doutrina” (p. 224). Destarte, o papel da doutrina limitava-se a descrever o Direito positivo, sem fornecer qualquer critério adicional para orientar a aplicação prática dos enunciados jurídicos.

O reducionismo epistemológico, portanto, é a causa primeira da perda do papel orientador da doutrina e, consequentemente, do distanciamento dos tribunais frente às formais e pouco úteis lições da doutrina apegada ao positivismo kelseniano.

Além da sua escassa colaboração à resolução de casos práticos, a doutrina empirista incorre numa verdadeira impropriedade, ao pressupor que as normas jurídicas sejam um dado preexistente, a ser “descoberto” pelo intérprete, como relíquias guardadas num antigo baú. Essa concepção é irreal, pois “a interpretação não envolve uma atividade meramente descritiva de sentidos, mas construtiva ou reconstrutiva de significações; o material, sobre o qual se debruça o cientista, é um material bruto, com uma série de elementos entremostrados que precisam ser construídos ou pelo menos coerentemente aperfeiçoados pelo intérprete, como a relação entre as normas, definição dos seus âmbitos de aplicação, …” (p. 235).

No segundo artigo, Ávila aprofunda tais ponderações, para demonstrar que os significados não preexistem à atividade interpretativa, mas são construídos a partir de significados mínimos dos dispositivos jurídicos (Função da Ciência…, p. 202), na medida em que “toda interpretação envolve uma escolha estruturada por métodos e suportada por argumentos” (p. 194). Logo, a interpretação jurídica não consubstancia atividade meramente cognitiva: trata-se de “decisão estruturada por métodos, argumentos e doutrinas” (p. 195).

Por consequência, não incumbe à doutrina apenas “descrever, mas também adscrever e criar significado” (p. 195). Daí a conclusão de que a tese descritivista da Ciência do Direito “nada mais é do que uma tese normativa e reducionista da Ciência do Direito”, assentada num modelo de ciência criado para o mundo físico, não para o universo jurídico, que fez, com o Direito, o mesmo que Procusto fazia com os viajantes que dormiam na sua cama: “se eram menores do que ela, eram esticados; se eram maiores, tinham partes do corpo amputadas” (p. 201).

Deveras, o corte epistemológico do positivismo kelseniano torna a doutrina infértil, incapaz de cumprir a sua missão maior, de orientar a compreensão, o estudo e a aplicação do Direito. Tamanhas são suas limitações que seus propalados defensores frequentemente se traem, seja em contradições performativas, desconsiderando por completo seu papel meramente descritivo para fundamentar, com os mais variados argumentos, variantes interpretativas específicas, seja em saltos argumentativos, extraindo conclusões que suas limitadas premissas não comportam, à luz da mais elementar lógica jurídica. Convenhamos, é absolutamente contraditório sustentar que cabe à doutrina simplesmente descrever variantes interpretativas e, logo em seguida, defender, com afinco, a variante que se considera mais correta, criticando veementemente as demais.

Como jurista, vejo nessas lições, aqui aligeiradamente expostas, a acurada expressão daquilo que sempre norteou minhas investigações acadêmicas, a busca pela solução “correta”, entendida como aquela mais consentânea com os direitos fundamentais, com os princípios e regras constitucionais e com a racionalidade do sistema jurídico, concebido como um todo.

Como magistrado, recebo-as como um alento revigorador para persistir a buscar subsídios na doutrina para solver os complexos casos concretos que aportam diariamente ao Poder Judiciário, com coerência, racionalidade e razoabilidade, a fim de oferecer, aos cidadãos, uma prestação jurisdicional segura, objetiva e justa.

Espero que esses trabalhos inspirem muitos a fazer verdadeira — e útil — Ciência Tributária no Brasil.

Autores

  • é juiz Federal da 4ª Região. Doutor em Direitos e Garantias do Contribuinte pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestre em Direito Tributário pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS.

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