Senso Incomum

O que é a livre convicção dos indícios e presunções?

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13 de fevereiro de 2014, 7h00

Spacca
Já que o TSE vai rediscutir a Resolução nº 23.396/2013…
Pois é. Na medida em que parece que o TSE terá que rediscutir a proibição de o Ministério Público e a Polícia investigarem de ofício crimes eleitorais, a comunidade jurídica poderia pressionar o Parlamento para alterar a redação do artigo 23 da LC 64/90 (que estabelece casos de inelegibilidade etc.).[1] Afinal, em tempos de discussão de doações eleitorais e do modo como vai se investigar, parece que viria a calhar a introdução de pressupostos democráticos nessa legislação.  

Explico. Segundo o artigo 23 da LC 64, “O Tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral”.

Não encontrei na literatura jurídica especializada — e peço desculpas se estiver fazendo injustiças — comentário apontando para a incompatibilidade da disposição (ou parte dela) com a Constituição Federal (na verdade, como verão no final desta coluna, encontrei algo mais grave, como a defesa da ponderação…). O que impressiona, de todo modo, é que o Parlamento tenha aprovado esse ditame legal.

Aqui entra minha chatice epistêmica e minha (in)vocação constitucional (não esqueçamos: sou anterior à Constituição — portanto, passei pelo processo de recepção e filtragem hermenêutico-constitucional), ou seja, minha mania de querer compatibilizar as leis com a Constituição… Explico: na democracia, pressupõe-se que decisões judiciais sejam prolatadas a partir de provas provadas e que as-decisões-não-sejam-produto-de-impressão-ou-opinião-pessoal-do-julgador.

Para ser mais claro: de que adianta colocarmos na lei os anseios da sociedade em relação a determinado contexto se, ao fim e ao cabo, deixamos que os Tribunais apreciem livremente os “fatos”? Deixa ver se entendi bem: o Poder Judiciário (Eleitoral) possui o poder de apreciar livremente fatos públicos e notórios, além dos indícios e presunções e provas ainda que não alegadas pelas partes… Como assim “presunções”? Posso presumir alguma coisa, mas daí a existir provas, a distância é quilométrica. E, por favor, não venha alguém invocar Malatesta, aquele que mal-atesta…  

O vício hermenêutico
O que está por trás desse vício hermenêutico para o qual nem mesmo o Poder Legislativo se atentou? Na verdade, o Parlamento, ao aprovar esse dispositivo, deu um tiro no pé, porque retira a apreciação das irregularidades (lato sensu) ocorridas nos pleitos eleitorais a partir de critérios objetivos e entrega-os à livre apreciação de outro poder. E não se diga que tudo isso é para preservar o interesse público de lisura eleitoral, bastando, para tanto, lembrar da meia dúzia de votos comprados no caso do processo envolvendo o casal Capeberibe (Amapá) para constatarmos que a “a coisa não é bem assim”. O problema é esse: quanto mais apostamos na subjetividade (por exemplo, em presunções), mais aumenta o grau de insegurança. E de injustiças.

Comparando o referido artigo 23 com o artigo 131 do CPC[2] (que é de 1973, portanto, plena ditadura militar), é possível constatar que esse (artigo 131) é mais democrático (embora igualmente problemático) do que o dispositivo aprovado na democracia. Pelo menos esse dispositivo exige fundamentação, que não baseada em presunções (para ficar só nisso).

O Brasil é pródigo nesse tipo de “delegação”. Na verdade, o que se pode esperar de um sistema jurídico ou da dogmática jurídica que aceita pacífica e passivamente uma Lei como nome de chocolate suíço (Lindt), a tal LINDB — com pretensão de ser a “Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro”?

O conjunto da “obra”
Vejamos: mesmo com a vigência de um novo Código Civil desde 2003, continuamos com o fantasma da velha Lei de Introdução ao Código Civil de 1942, não obstante ter recebido uma nova denominação. Assim, com a edição da Lei 12.376, em 2010, passou a ter o título de Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). Um dos pilares da Lei é o artigo 4º, que, ao lado do artigo 126 do CPC, funciona como uma espécie de fechamento autopoiético do sistema jurídico, verbis: “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”. Em linha similar, tem-se o artigo 3º do CPP, também da década de 40 do século passado, segundo o qual a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais do direito. Já o artigo 335 do CPC, fruto do regime militar, acentua que em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece (sic) e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial. Chega a ser patético isso, pois não?

Tais dispositivos — que são tudo “farinha-do-mesmo-saco-antihermenêutico” — a par de sua inequívoca inspiração positivista (permitindo discricionariedades e decisionismos) e sua frontal incompatibilidade com uma leitura hermenêutica do sistema jurídico, mostram-se tecnicamente inconstitucionais (não recepcionados). Com efeito, com relação à LINDB, é preciso ter claro que, na era dos princípios e do Constitucionalismo Contemporâneo, tudo está a indicar que não é mais possível falar em “omissão da lei” que pode ser “preenchida” a partir da analogia (sic), costumes (quais e de quem, cara pálida?) e os princípios gerais do direito. Isso apenas demonstra um atraso epistemológico da teoria do direito. Idade da pedra (lascada).

Ou seja, da LIIC à LINDB, nelas nada de novo se reconhece que nos permita entender normas como sendo o conjunto de regras e princípios.  Pela leitura da LINDB ainda temos na regra a pedra fundamental do sistema jurídico, ao ponto de precisarmos inserir o princípio na regra, como se a regra autorizasse ou validasse o princípio. O problema vai além. Ainda não conseguimos superar a velha teoria das normas (o que denuncio constantemente), confundindo os princípios constitucionais (elementares do constitucionalismo contemporâneo) com os princípios gerais do direito.

Assim, quando defino na lei que no caso de omissão o nosso juiz decide de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, estou enfatizando tal confusão, já que a lei me autoriza e direciona o uso de princípios (gerais do direito) na solução de controvérsias.  Quem ainda usa princípios gerais do direito está no tempo do Almanaque Renascim ou das Seleções Reader’s Digest.

Portanto, a força simbólica de(sses) dispositivos (artigos 23 da LC 64, 4º da LICC, 126 e 335, do CPC e 3º do CPP) enfraquece sobremodo o valor da doutrina na construção do conhecimento jurídico, com o consequente fortalecimento do papel do aplicador da lei. Ponto para o protagonismo judicial. Depois nos queixamos que a doutrina não mais doutrina…

Cada vez mais, os juristas ficam à mercê de decisões tribunalícias, como a dar razão ou a repristinar as velhas teses do realismo jurídico, pelas quais o direito se realiza na decisão, forma acabada de um positivismo que, buscando superar o formalismo‑exegético, abriu, historicamente, o caminho para discricionariedades e decisionismos.

Numa palavra: o que é isto, julgar por presunções?
Some-se tudo isso e temos o caldo de cultura no qual nasceu o malsinado artigo 23 da Lei 64. Um autêntico tiro-no-pé que o Parlamento se deu. Depois o Parlamento se queixa quando um prefeito ou deputado perde o mandato a partir de um julgamento cujo fundamento é o artigo 23. Afinal, o juiz ou o tribunal pode ter “sentido” o que ocorreu por ocasião da campanha eleitoral, a partir daquilo que se pode presumir… Mas, pergunto: se o voto é a manifestação sagrada do eleitor, para anular a vontade desse eleitor (ou de milhares ou milhões) não deveria a lei exigir, em vez de indícios e presunções, robustas provas? O que vale mais: um monte de votos ou os indícios (ou presunções) captados por um julgador? Essa pergunta quem deve responder é o Parlamento. O problema é que o réu não se ajuda muito…

No futebol, costuma-se dizer, pelo menos até a garfada que levou a Lusa a perder quatro pontos, que o que vale é taça no armário e faixa no peito. Nas eleições, o que deve (mais) é o voto na urna. Claro que essa vontade não pode estar conspurcada por corrupção ou outras atividades ilícitas. Isso é óbvio.

Mas parece-me que o que a lei deveria exigir é uma robusta prova de que a vontade do eleitor foi conspurcada e não que o-judiciário-formará-sua-convicção-pela-livre- apreciação-dos-fatos-públicos-e-notórios, dos-indícios-e-presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral.

Ora, o que é um fato público e notório? Qual é a definição disso? Será aquilo que o Tribunal vier a dar? O que são indícios? Como se os mede? Como se os afere? Existe um “indiciômetro”, aparelho para medir indícios? Há um “notoriômetro” para medir o grau de notoriedade de um fato? E uma presunção? Há um “presunçômetro”?[3] Não é o suprassumo do subjetivismo?

Aliás, se presumir já é um produto da subjetividade, o que dizer do poder de livremente (portanto, subjetivamente) dar valor a essa presunção? Os neopositivistas lógicos fizeram uma revolução no século XX em face da excessiva vagueza e ambiguidade da linguagem… Se vissem a redação do artigo 23 em tela, cometeriam um suicídio epistêmico.

Na verdade, além de inconstitucional, o dispositivo é contraditório e paradoxal. Para preservar o interesse público e a lisura, devemos exigir que qualquer anulação de eleição (ou algo do gênero) deve estar calcada em provas firmes. Robustas. Consistentes. E que esses fatos (e indícios e presunções) não possam ser apreciados livremente. Na democracia — e tenho insistido nisso — não há espaço para livre convencimento e tampouco (ou muito menos) livre apreciação da prova.

Moral da história: Só um parlamento fraco — ou ignorante (no sentido de não saber do que está tratando) — aprova coisas contra si mesmo (e contra a democracia). Um parlamento preocupado com a democracia começaria amanhã mesmo (ou ainda hoje) um trabalho de filtragem nas leis existentes, a começar pelos dispositivos que acima elenquei (incluída a Lei com nome de chocolate, que envergonha a teoria do direito e que só serve para deleitar professores de cursinhos e bancas de concursos públicos que adoram fazer pegadinhas invocando a tal LINDB).

Se o parlamento, que tem a função de fazer as leis não fizer isso, alguém espera que o Judiciário abra mão da prerrogativa e do poder da livre apreciação dos fatos, indícios e presunções? Sempre prefiro, apesar dos pesares, apostar na lei. Apostar na lei feita pelo Parlamento. Mas, como disse, o réu precisa urgentemente se ajudar… Por exemplo, se levássemos o Direito a sério, de verdade, o próprio Judiciário declararia inconstitucional esse artigo 23. Ou faria uma interpretação conforme (verfassungskonforme Auslegung), dizendo que esse dispositivo só é constitucional se entendido como… bem, a conclusão está dita acima!

Numa palavra final: o que é isto — ponderar no direito eleitoral?
Não bastasse tudo isso que se tem em termos de legislação, descubro que a doutrina não se ajuda muito. Em um livro sobre direito eleitoral (de Jose Armando Ponte Dias Jr, intitulado Elegibilidade e Moralidade), descobri que o juízo de prognose acerca da moralidade no tocante ao exercício do mandato deve ser feita por ponderação (sic) que coteje de maneira proporcional as restrições recíprocas entre moralidade e elegibilidade (sic). Diz o autor que isso será feito racionalmente… Ora, todos conhecemos a racionalidade ínsita à ponderação. E como…! Com ela, diz-se qualquer-coisa-sobre-qualquer-coisa. Aliás, se substituirmos a palavra “ponderação” pelo vocábulo Kanglingon, nada muda. Trata-se do skeptron, da fala de Homero… Ou a concha, do livro The Lord of Flies. Ou o jogo da Katchanga (Real).

Mais ainda, na sequência, o citado autor fala em densificação do direito à moralidade para saber como o juiz atribuirá valor ao componente linguístico da palavra moralidade… Ora, essa “coisa” da ponderação já foi longe demais, pois não? Falar em ponderação é quase um ato de improbidade epistêmica (sugiro a leitura da tese de doutorado de Fausto de Moraes, defendida na Unisinos, sob minha orientação, que desmonta, com números, o ab-uso da ponderação em terrae brasilis). Quer dizer que o juiz faz uma ponderação entre moralidade e elegibilidade? E é de sua subjetividade que exsurgirá a resposta? E como ele — o julgador — construirá a regra adstrita (que todos os ponderadores de terrae brasilis teimam em esquecer)? E que história é essa de densificar o componente linguístico da palavra “moralidade”? Que positivismo semântico é esse em tempos de democracia? Quer dizer que o resultado de uma eleição estará dependente

a) do juízo sobre presunções e indícios (artigo 23 da LC 64);
b) do livre convencimento (idem);
c) da ponderação do juiz (defendida por parte da doutrina) e
d) de um dicionário de linguística (idem)?

O que quero dizer é que a democracia não se coaduna com esse grau de subjetivismo, subjetividades e/ou com epítetos “tipo-ponderação” ou qualquer coisa similar. Eis o dilema: de um lado, o parlamento dá um tiro no pé; de outro, a doutrina diz “todo o poder aos juízes para ponderar”. E, de outro, o Poder Judiciário eleitoral que acredita nesse (di)lema.

E o voto? Onde fica? Depois nos queixamos. 

 


[1] Há um conjunto de pesquisas sobre o assunto sendo feitas no MINTER mantido pela Unisinos com a FACID, de Teresina, Piauí (minha segunda terra), em especial pelos mestrandos Alexandre Nogueira, Margarete Coelho e Georgia Ferreira Martins Nunes.
[2] CPC, Art. 131: “O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento”.
[3] Se existisse um presunçômetro, com certeza haveria vários modelos. Para candidatos do andar de cima, presunçômetros digitais; para um candidato patuleu, um presunçômetro fabricado no Paraguai.

 

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