García Márquez, inventor de Macondo e mágico da realidade
20 de abril de 2014, 8h01
Seu autor, o colombiano Gabriel García Márquez, seguia os passos da renovação literária sul-americana, linha à qual também pertenciam os argentinos Julio Cortazar e Jorge Luís Borges e o cubano Alejo Carpentier. Alguns matizam o grupo com as tintas de um modo realista fantástico de compor prosa moderna. Cem Anos de Solidão, na opinião de Pablo Neruda, poeta chileno, perderia em estatura e alcance, em lingua espanhola, tão somente, para o Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, o imortal escritor castelhano. Essas linhas e informações estão em todos os grandes jornais desta semana, nas notas e textos que tratam da morte de Gabriel García Márquez.
Barack Obama, Dilma Rousseff, Lula, Dona Marisa Letícia, Juan Manuel Santos, Luis Fernando Veríssimo, Roberto DaMatta, Nélida Piñon, Gilberto Gil, e tantos outros, lamentaram a morte do escritor colombiano, pranteando sua obra e influência em nossa literatura e visão de mundo. Lamentou também a morte do colega escritor o peruano Mario Vargas Llosa, que teria esmurrado García Marquéz, por acreditar que o inventor de Macondo teria se insinuado para sua esposa (ou por uma divergência política, segundo outros). Para Vargas Llosa, a propósito de García Márquez, “morreu um grande escritor cujas obras deram grande difusão e prestígio à literatura da nossa língua”. A indicação e o recebimento do Nobel de Literatura em 1982 confirma a assertiva. Gabriel García Marquéz é um dos consolidadores da prosa espanhola contemporânea, truísmo que se reproduz como homenagem a uma obra singular e a um escritor genial.
García Marquez estudou Direito e Ciência Política em Bogotá. Não concluiu os cursos. Dedicou-se ao jornalismo e à literatura de ficção. Memorialista também, aproximou passado e presente, mediando o encanto de uma prosa simples e ao mesmo tempo hermética, com raízes e lembranças que se perdem e que remontam à Guerra dos 1000 Dias, travada intestinamente na Colômbia entre 1899 e 1902.
García Marquez remete-nos, assim, aos tempos de Rafael Nuñez, Miguel Antonio Caro, Manuel Antonio Sanclemente, José Manuel Marroquin e outros personagens da República Granadina. Liberais e conservadores reproduziram na Colômbia a saga dos tories e whigs, porque os há em todos os lugares, inclusive no Brasil dos saquaremas e luzias. Os conservadores colombianos assimilaram as ideias do tradicionalismo europeu. Juan Donoso Cortés e José de Maistre foram os heróis intelectuais dos publicistas colombianos que se reuniam em torno do jornal La Civilización. Contra eles, os liberais, que compunham a troupe do jornal El Aviso, ideário que circundou em torno de nomes como Ezequiel Rojas e Vicente Azuero.
É nesse mundo que viveu o avô de García Márquez, o coronel Nicolás, que lutou ao lado do caudilho Uribe. O avô é alguma inspiração a José Arcadio Buendía, fundador de estirpe de personagens, que confunde o leitor menos atencioso, ao lado da não menos real e ao mesmo tempo imaginária Úrsula Iguarán. Não por acaso a avô de Gabriel chamava-se Tranquilina Iguarán.
Nos Cem Anos de Solidão, o medo que circundava a união entre primos, José Arcádio e Úrsula, se revelava na apreensão e na premonição de que a descendência nasceria com rabos de porco… O cigano Malquíades, doublê de profeta e de sábio, previu um pouco do que viria. Remédios, a mais bela entre as mulheres, que está em todas as Erêndiras, é encantador caráter que transita solitária e esquisita entre tantos outros personagens de Cem Anos de Solidão. A matriarca Úrsula, que por volta de 120 anos viveu, a todos conheceu. A terra natal de García Márquez, Aracataca, é a topografia inspiradora de Macondo, ao que se acrescenta uma imaginária cidade de William Faulkner, a quem o escritor colombiano tanto admirava. O Amor nos Tempos do Cólera, outro livro singular de García Marquéz, remete-nos a Florentino e Firmina, transposições literárias dos pais do escritor que faleceu esta semana.
Literatura e realidade, reminiscências e referências, ideias e fatos, são instâncias que se confundem e que se apartam nas páginas de literatura de primeiríssima qualidade que nos legou García Márquez. Ativista político, amigo de Fidel Castro, de Jorge Amado, elogiado por Bill Clinton (que o comparou a William Faulkner), Gabriel García Marquéz é o intelectual latino-americano que transcendeu o trauma do europeu colonizador, a quem se culpou pela espada, pela cruz e pela fome, que dizimaram as famílias selvagens.
A América Latina está de luto.
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