Alternativa para investimentos

Mesmo com esforços, há barreiras para equity crowdfunding

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9 de abril de 2014, 9h39

Equity crowdfunding é uma expressão de moda nos principais debates sobre financiamento de startups no mundo. A possibilidade de startups arrecadarem capital para o seu desenvolvimento através de plataformas de crowdfunding, oferecendo como contrapartida títulos representativos de participação societária nas empresas, é uma das tendências mais debatidas no cenário regulatório internacional nos últimos anos. Essa tendência foi especialmente marcada pela aprovação do JOBS Act nos EUA, em 2012 (legislação cujo objetivo é criar o arcabouço regulatório para a expansão das atividades de equity crowdfunding no país), e pelo surgimento de diversos sites na Europa e nos EUA que têm buscado oferecer alternativas para a expansão dessas práticas.

Embora tenha se tornado lugar comum dizer que a complexa legislação brasileira não permite a realização, na prática, do equity crowdfunding no Brasil, poucos artigos têm se dedicado a analisar com profundidade esse assunto, especialmente tendo em vista os esforços empreendidos pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) na última década para facilitar a captação de recursos para micro e pequenas empresas. Nosso objetivo não é esgotar as discussões sobre o tema — mas sim incentivá-las — e, para tanto, vemos como necessários alguns apontamentos preliminares sobre a adequação do equity crowdfunding ao atual regime jurídico brasileiro.

Desde 2003, a CVM tem baixado diversas instruções, em especial as Instruções 400/2003, 480/2009 e 482/2010, com foco em micro e pequenas empresas que desejam captar investimentos via emissão de títulos e valores mobiliários. Essas empresas, segundo as Instruções da CVM 400/2003, conforme alterada, e 480/2009, estão dispensadas do registro de companhia aberta e de oferta pública, desde que a captação pretendida não ultrapasse R$ 2,4 milhões por ano e desde que requisitada à CVM, previamente, a dispensa da formalidade para a oferta pública.

Esse regime simplificado cria a impressão de um cenário favorável para a prática de equity crowdfunding no Brasil. Todavia, não se registra, até a presente data, qualquer pedido perante a CVM para dispensa do registro de oferta pública nos termos colocados acima. Mas por que motivo as disposições dessas instruções não são adotadas pelo mercado? Ainda que a falta de publicidade a respeito dessas instruções possa ser considerada uma hipótese relevante para responder à pergunta acima, parece-nos que a própria estrutura regulatória brasileira oferece incoerências que, na prática, impossibilitam a realização de operações de equity crowdfunding no Brasil.

Na Instrução CVM 400/2003, dispõe-se que estão dispensadas do registro de oferta pública de distribuição de valores mobiliários as “empresas de pequeno porte e microempresas, assim definidas em lei”. No Brasil, a lei que define o conceito de micro e pequenas empresas é a Lei Complementar 123/2006 (Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte). Em seu artigo 3°, o estatuto dispõe sobre os requisitos para que uma empresa seja considerada de micro e pequeno porte e possa, assim, fruir dos benefícios concedidos pela legislação brasileira, expressamente excluindo do conceito de micro e pequena empresa aquelas “constituída[s] sob a forma de sociedade por ações” (Lei Complementar 123/06, artigo 3º, § 4º, X). Dessa forma, a captação pública de valores mobiliários através de equity crowdfunding no Brasil, utilizando-se das disposições previstas pela CVM, só poderia ser realizada através de uma sociedade limitada, o que representaria entraves para as estruturas de investimento mais praticadas no mercado, bem como uma série de riscos para empreendedores e investidores.

Em uma sociedade limitada, os direitos políticos e patrimoniais dos sócios são determinados pela proporção do valor investido (o valor pago por suas quotas) e o valor do capital social, diferentemente do que ocorre em sociedades anônimas, em que os direitos políticos e patrimoniais dos acionistas são determinados pela quantidade e natureza das ações detidas por eles, não havendo necessária relação com o valor pago por tais ações. Tendo em vista que as sociedades anônimas podem emitir ações sem valor nominal, há liberdade para que elas possam utilizar-se de diversos mecanismos para determinar o valor das ações emitidas para diferentes rounds de investimento, inclusive sem relação entre os direitos políticos e patrimoniais decorrentes de tais ações e o valor pago por elas.

Além disso, a sociedade limitada nem sempre oferece, do ponto de vista de um investidor, a proteção patrimonial adequada, especialmente levando em conta a tendência do judiciário brasileiro em classificar as limitadas em “sociedades de pessoas”, levando a uma maior exposição patrimonial dos sócios em situações em que há um interesse público envolvido (e.g. casos trabalhistas e de consumidor).

Ou seja, não faz sentido pensar em equity crowdfunding em uma sociedade limitada.

Tampouco é razoável imaginar que a Lei Complementar 123/2006 possa vir a ser alterada, de modo que as micro e pequenas empresas possam optar pelo tipo societário de sociedade anônima. O controle da titularidade das ações, nas sociedades anônimas, é feito nos livros da companhia, que são mantidos em arquivo na sede. Consequentemente, diante do modelo atual, seria impraticável verificar o cumprimento, por uma teórica micro ou pequena empresa sociedade anônima, do disposto no artigo 3º, § 4º da Lei Complementar[1], que estabelece um rol de restrições relativas aos sócios das micro e pequenas empresas.

Ainda que fosse autorizado, por meio de nova legislação, que as micro e pequenas empresas se organizassem como sociedades anônimas, o fato é que, além dos altos custos relacionados a esse tipo societário (e.g. publicações em diário oficial e em jornal de grande circulação, para companhias que não se enquadrem na dispensa do artigo 294, II da Lei das Sociedades por Ações — menos de 20 acionistas, com patrimônio líquido inferior a R$ 1 milhão), em termos práticos, para viabilizar uma circulação ampla das ações no âmbito do equity crowdfunding, seria necessário adotar o modelo de circulação de ações de companhias abertas, as chamadas ações escriturais, que podem ser movimentadas por lançamentos a crédito ou a débito da conta do acionista, sem exigir a assinatura dos tradicionais livros societários. O problema é que a adoção de ações escriturais exige a contratação de instituição financeira autorizada pela CVM, com a decorrente assunção de custos incompatíveis com a realidade de empresas com receita bruta anual de até R$ 3,6 milhões (Lei Complementar 123/06, artigo 3º, incisos I e II).

Há quem aponte a possibilidade de emissão de títulos de dívida como alternativa para viabilizar o crowdfunding em sociedades limitadas, uma vez que a Instrução CVM 480/2009, em conjunto com a Instrução CVM 476/2009, autoriza às limitadas a emissão de cédulas de crédito bancário (que não sejam de reponsabilidade de instituição financeira) e notas comerciais (também conhecidas como notas promissórias comerciais) para distribuição ou negociação pública com esforços restritos, sem necessidade de registro na CVM.

Ocorre que a referida Instrução CVM 476/2009 obriga tais ofertas a serem intermediadas por integrantes do sistema de valores mobiliários (corretoras e distribuidoras de títulos e valores mobiliários) e limita tais ofertas exclusivamente a investidores qualificados. Investidores qualificados, para fins da mencionada instrução, são os fundos de investimento e pessoas físicas ou jurídicas que possuam investimentos financeiros em valor superior a R$ 300 mil e que, adicionalmente, atestem por escrito sua condição de investidor qualificado mediante termo próprio (art. 109, IV da Instrução CVM 409/2004), sendo que tais pessoas físicas ou jurídicas deverão subscrever ou adquirir, no âmbito da oferta, valores mobiliários no montante mínimo de R$ 1 milhão (art. 4º, II da Instrução CVM 476/2009). Nesse sentido, tendo em vista os custos envolvidos na contratação das corretoras e distribuidoras de títulos e valores mobiliários e a limitação da oferta a investidores qualificados, em nossa opinião, esse modelo de captação se afasta da realidade das sociedades que buscam recursos via crowdfunding.

Em que se pesem os esforços recentes da CVM em democratizar o mercado de capitais abrindo espaço para empresas menores, o cenário para a plena realização de atividades de equity crowdfunding no Brasil passa por diversos outros obstáculos, muitos deles fora da esfera de atuação da CVM. Uma solução inicial seria a produção de norma que dispensasse às empresas de pequeno porte e microempresas tratamento diferenciado e favorecido para a captação de recursos via crowdfunding, na linha do princípio estabelecido no artigo 179 da Constituição.

Desburocratização para a abertura de sociedades anônimas, redução de custos relativos a publicações oficiais e registro simplificado de títulos e valores mobiliários são outras alternativas que podem contribuir não só para o desenvolvimento de atividades de equity crowdfunding como para a expansão do empreendedorismo e a atração de investimentos para mercados menos maduros, como o de Internet e TI.


[1] § 4º Não poderá se beneficiar do tratamento jurídico diferenciado previsto nesta Lei Complementar, incluído o regime de que trata o art. 12 desta Lei Complementar, para nenhum efeito legal, a pessoa jurídica: I – de cujo capital participe outra pessoa jurídica; (…); III – de cujo capital participe pessoa física que seja inscrita como empresário ou seja sócia de outra empresa que receba tratamento jurídico diferenciado nos termos desta Lei Complementar, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II do caput deste artigo; IV – cujo titular ou sócio participe com mais de 10% (dez por cento) do capital de outra empresa não beneficiada por esta Lei Complementar, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II do caput deste artigo; V – cujo sócio ou titular seja administrador ou equiparado de outra pessoa jurídica com fins lucrativos, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II do caput deste artigo.

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