Segunda Leitura

Parentes de juízes têm relações profissionais ambíguas

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

6 de abril de 2014, 8h00

Spacca
Os juízes, como todos, podem ter filhos, irmãos, namorados, cônjuges ou companheiros que atuam na área jurídica. Até aí nada de mais. Médicos, artistas ou  motoristas de praça, também têm na família seguimento profissional comum, seja por vocação ou por comodidade. É mais fácil trilhar um caminho já conhecido, tendo por guia um parente experiente, do que desbravar novas áreas.

Evidentemente, isso não é privilégio de juízes. Dá-se o mesmo com advogados, agentes do Ministério Público, cartorários e policiais. No entanto, aqui o foco será exclusivo dos magistrados, porque esta é a atividade que julga, que decide. Óbvio que, por isso mesmo, é a mais fiscalizada pela sociedade. 

Quando falo em juízes estou a referir-me a magistrados de todas as instâncias, do juiz substituto ao ministro da Suprema Corte. Refiro-me a juiz, mas óbvio que isto pode ocorrer, da mesma forma, com uma juíza.

A atuação profissional dos parentes de juízes é tema recorrente nas conversas forenses, mas nunca posto em discussão pública. Não se sabe bem quais os limites legais ou éticos. E, no entanto, as múltiplas situações que a vida apresenta suscitam dúvidas e polêmicas que impõem trazer o tema à discussão.

A primeira observação a ser feita é a de que parentes de magistrados não devem ser punidos por ostentarem tal condição. Em outras palavras, devem ser tratados como todos os outros e não com maior rigor. Por exemplo, soa exagerado proibir o filho de um juiz federal que faça estágio em qualquer Vara ou Tribunal da União. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra.

Comecemos pelo início da vida profissional na magistratura. O jovem juiz  começa sua carreira no interior. Às vezes em comarcas com uma ou duas  varas. Sua parceira muitas vezes é formada em Direito, às vezes da mesma turma de faculdade. Na monotonia da cidade pequena, opta por advogar. Não só por dinheiro, mas por realização profissional e pessoal. E aí podem surgir conflitos.

No imaginário popular, ela terá maiores chances de sucesso, será protegida pelo colega de seu marido, falará diretamente com o promotor, terá facilidades no cartório. Será isto realidade? Talvez sim, talvez não, tudo a depender das pessoas envolvidas. Mas o fato é que a crença na imparcialidade do magistrado estará em risco. Comentários serão inevitáveis.  Eventualmente poderá despachar, sem saber, um processo volumoso em que sua mulher tenha procuração. Seu colega, ao processar ação em que sua mulher é advogada, poderá receber uma exceção de suspeição, só porque os casais foram vistos  almoçando  juntos no clube.

Que fazer? É justo que o parceiro seja tolhido na sua liberdade profissional? Justo não é, mas o injusto faz parte da vida. Quem escolhe a magistratura ou se casa com magistrado, sabe de antemão que sofrerá limitações. E esta é uma delas.

Na verdade, o parceiro não precisa abdicar do Direito. Basta evitar situações constrangedoras. Se for advogar, escolher área em que o marido não atue. De preferência em outra Justiça, a do Trabalho, por exemplo se ele for juiz de Direito. Ou, pelo menos, em matéria diversa. Se ele é o juiz da vara criminal, dedique-se a Direito de Família ou, no mínimo, à área cível.

O sacrifício é temporário. Poucos anos depois o casal estará em cidade maior, onde o poder se dilui e o parceiro poderá atuar com liberdade profissional absoluta.

Mais um pouco à frente o filho do casal estará cursando Direito. E o juiz, ou a mãe juíza, terá avançado na carreira, quiçá sonhando com o Tribunal. Os colegas de classe imaginam que o filho (ou a filha, obviamente) está com o destino assegurado. Nenhum problema terá pela frente. Errado.

O filho do magistrado começa por carregar um peso de responsabilidade maior. É sempre comparado ao pai (filho de peixe, peixinho é…).  Quando alcança uma vitória, muitos colegas a atribuirão à sua condição de filho. Vantagens? Talvez exista uma única, qual seja, maior facilidade na obtenção de estágios.

Uma vez  formado, sofrerá como todos os outros as dificuldades do Exame de Ordem. E, se for prestar concurso, enfrentará as centenas de perguntas objetivas, como todo mundo. Perguntas muitas vezes formuladas por uma instituição externa, estranha ao tribunal. Se o concurso for para a magistratura, terá, como todos, a prova oral filmada e submetida a discussão judicial, se houver indício de fraude.

Mas pode ser que ele opte por advogar. Por vocação, ambição financeira ou simplesmente porque não teve sucesso em nenhum concurso público. E aí o seu pai já estará no Tribunal. Como se dá esta relação, pai desembargador, filho advogado? Aí entram componentes variados, lei, ética e psicologia. Do ponto de vista legal a situação é fácil. O CPC e o CPP ditam os casos de impedimento por parentesco.

Do ponto de vista ético as coisas se complicam. Principalmente em capitais menores, em que o Tribunal de Justiça seja pequeno. O advogado poderá ser cooptado por um escritório forte, interessado em tê-lo nos seus quadros, ainda que seus méritos sejam duvidosos. Afinal, o filho do desembargador tem acesso a informações privilegiadas, contato direto com os colegas do pai, tratamento privilegiado pelos servidores, aos quais não interessa ter qualquer atrito com um desembargador. Não é pouca coisa, principalmente porque os clientes verão nisso uma chance maior de vitória.

As coisas não precisam ser assim. O pai não deve nem pode cercear a vida profissional do filho. Mas pode e deve deixar bem claro que ele tem vida própria. Ensinar ao filho que trate seus colegas de magistratura com respeito e formalismo, inclusive exteriorizando a distância existente aos olhos de terceiros. Deve impedi-lo de obter qualquer tipo de vantagem pela condição ostentada, por exemplo, ser atendido na frente de outros advogados que aguardam na sala de espera do gabinete.

Passa o tempo. Imagine-se que o magistrado foi alçado a uma posição superior em Brasília, ministro de um Tribunal. Será lá diferente do que se passou no resto de sua carreira, da pequena cidade ao TJ, TRT ou TRF? Sim na forma, não no conteúdo. A forma será mais sutil, sofisticada, entremeada com apetitosos jantares ao magistrado e um tratamento formal e respeitoso. O convite ao filho, jovem advogado, virá ressaltando seus méritos, reais ou imaginários. O conteúdo será o mesmo, abrir portas na Corte. Levar o memorial ao ministro, com direito a ser ouvido com toda atenção. Eventualmente, resultar no impedimento do pai, caso tenha posição contrária à tese, disto podendo resultar julgamento favorável. Os honorários serão evidentemente polpudos.

Falo de filho porque é o que mais chama a atenção. E é aí que muitos pais se perdem. Há casos de magistrados que passam a vida de forma exemplar, mas lá na frente, preocupados com a sobrevivência do descendente, cometem o deslize. Por vezes pressionados até pela sogra que, no almoço de domingo, fecha-lhes a cara, como que a dizer: “nem para ajudar o neto serve…” Recordo-me de um que teve vida exemplar, mas próximo dos 70 anos conseguiu um Cartório para o filho. Decepção geral.

Evidentemente, algo semelhante pode ocorrer com marido ou esposa, sobrinho ou irmão. A incidência é menor, mas existe. No STJ um ministro perdeu o cargo sob a acusação de que beneficiaria o irmão nas suas ações judiciais, mantendo contato e procurando influenciar os juízes do caso.

Das mil hipóteses que a vida apresenta, as situações de protecionismo por parentesco talvez sejam as mais difíceis de serem identificadas e por isso mesmo, sobre elas, nada se escreve.  Como tratá-las?

Quem se dispuser a enfrentar  tal tipo de situação deve estar preparado para a batalha. Não será fácil. Deverá coletar alguns julgamentos em que o protecionismo  do advogado fique evidenciado. Isto feito, cotejar os fatos com os dispositivos do Código de Ética da OAB. Por exemplo, o artigo 34, inciso XXV, diz ser infração disciplinar  manter conduta incompatível com a advocacia. Em um segundo momento, interpor exceção de suspeição do magistrado que julgará o caso. E, fechando o círculo, questionar a conduta do magistrado pai perante o Código de Ética da Magistratura, que no artigo 16 estabelece que o magistrado deve comportar-se na vida privada de modo a dignificar a sua função.

É fácil? Não, por certo. Mas nem por isso deve haver conformismo, porque daí certamente o mal crescerá. E o estudo, a dedicação, os cursos de mestrado e doutorado cederão espaço ao mal, ao tráfico de influência. A batalha é grande é não deve ser enfrentada sozinho. O interesse de muitos deve ser canalizado para uma entidade, a fim de que não se pessoalize. Habilidade e sobriedade também são necessárias. 

Em suma, os casos apontados são exceção, pois a maioria absoluta dos magistrados conduzem-se com ética. Mas eles carregam consigo uma carga maior de responsabilidades e, entre elas, está a de zelar para que seus filhos e parentes bacharéis em Direito imponham-se por seus méritos e esforços. Daí a vitória será maior, psicologicamente mais saudável, o orgulho justificado e as relações de família envolvidas em amor, respeito e admiração recíprocas.

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