Tradição e ideal de Esparta são criações de nossa cultura
24 de março de 2013, 8h01
“Sob o império tornou-se difícil a suposição de que Roma era uma Esparta melhorada, embora devesse ser dito, especialmente num sentido moral, que os Espartanos aproximavam-se da gravitas dos primeiros romanos.” [7]
Na Renascença a admiração por Esparta voltara a crescer, e mais uma vez a leitura de Plutarco tinha alguma responsabilidade:
“É óbvio que a Renascença estava destinada a admirar Esparta. (…) Essa admiração fora alimentada principalmente em Plutarco. As ‘Vidas’ foram traduzidas (…)” [8]
Esparta fora também admirada por Maquiavel[9] que aprovava totalmente seu modelo,[10] prescrevendo-o para as repúblicas italianas:
“Feliz é a república à qual o destino outorga um legislador prudente, cujas leis se combinam de modo a assegurar a tranqüilidade de todos, sem que seja necessário reformá-las. É o que se viu em Esparta, onde as leis foram respeitadas durante oito séculos, sem alteração e sem desordens perigosas.” [11]
O ideal espartano contaminara também Lutero e Calvino[12]. A trajetória de Lutero, sua obstinação, seu apelo pelo respeito à autoridade, têm um fundo espartano[13]. O calvinismo, como força cultural, propagado na Suíça, na França, nos Países Baixos, na Alemanha, na Hungria, na Inglaterra, na Escócia, nos Estados Unidos, no Canadá, na Austrália e na África do Sul[14] promove comportamento radical e espartano, que já fora noticiado por Max Weber[15]. Plutarco é a referência, dada sua imputação, a Licurgo, da fabulização de Platão:
“(…) Plutarco explicitamente elogiara Licurgo por obter, através de sua legislação, o que Platão e outros filósofos apenas sonhavam.” [16]
Jean Bodin também admirava a Esparta de Plutarco, através de Licurgo:
“A Esparta de Licurgo, lembramos, fora para Bodin uma democracia; de fato esses estados que igualam deuses assim como honras e direitos são para ele [Bodin] as verdadeiras democracias.” [17]
Milton, autor inglês (Paraíso Perdido) também considerava Esparta uma cidade-estado admirável[18]. Rousseau fora ainda mais enfático e é de Elizabeth Rawson a seguinte passagem:
“Poucas dúvidas há de que alguma laconiomania real existente no fim do século XVIII devia muito de sua força a Rousseau. O que ele sentia por Esparta era mais do que mera admiração; era uma profunda relação emocional.” [19]
É a mesma autora quem vincula a admiração rousseauniana por Esparta às leituras que o autor do “Contrato Social” fizera de Plutarco:
“As ‘Confissões’ sugerem que foram primariamente os heróis atenienses e romanos de Plutarco que encheram a imaginação da infância de Rousseau.” [20]
Em seu “Discurso sobre as Ciências e as Artes”, Rousseau declara sua admiração por Esparta, sentimento que recebera de Plutarco:
“Esquecer-me-ia de que foi no próprio seio da Grécia que se viu surgir essa cidade tão célebre pela sua feliz ignorância quanto pela sabedoria das leis, essa república antes de quase-deuses do que de homens, tanto suas virtudes pareciam superiores à humanidade. Oh! Esparta, eterno opróbrio de uma doutrina vã!” [21]
Com Maquiavel a admiração para com Esparta vive dimensão superlativa. Embora hoje se opere revisão na ideia despótica no pensador florentino[22], persiste, ainda, lugar comum que acena para posturas políticas autoritárias, ensejadoras da criação do adjetivo “maquiavélico”. E Maquiavel, como os humanistas italianos em geral[23], nutrira-se da tradição insuflada por Plutarco. Lê-se em Maquiavel:
“Entre os legisladores que elaboraram constituições semelhantes, o mais digno de encômios é Licurgo. Nas leis que deu à Esparta, soube de tal modo contrabalançar o poder do rei, da aristocracia e do povo que o Estado se manteve em paz durante mais de oitocentos anos, por sua grande glória.” [24]
A admiração por Esparta e por Licurgo é evidente em Maquiavel:
“Esparta, como já disse, governada por um rei e Senado pouco numeroso, subsistiu também durante vários séculos. Sua pequena população, a sua recusa de receber estrangeiros, a submissão às leis de Licurgo, tudo isto havia afastado as desordens, e permitido por muito tempo uma existência unida. Com suas instituições, Licurgo tinha estabelecido em Esparta mais igualdade de substância do que de grau, havia ali uma pobreza generalizada e igualitária. Quanto ao povo, este não era ambicioso, porque as honrarias do Estado beneficiavam poucos cidadãos e a conduta destes não era de molde a despertar a inveja dos populares.” [25]
E continua o florentino, ovacionando as instituições de Licurgo:
“A seus reis Esparta devia esta vantagem. Do trono, no meio da nobreza, só tinham um meio para conservar toda força da sua dignidade: defender o povo de qualquer insulto. Por isto o povo não temia nem almejava o poder — pelo que desapareciam os germes do tumulto, e todos os pretextos de discórdia entre ele e a nobreza; puderam assim viver por muito tempo na união mais perfeita. Esta concórdia teve duas causas principais: a reduzida população de Esparta, que tornava possível o governo por poucos magistrados; e a rejeição dos estrangeiros, o que afastava do povo toda causa de corrupção, e impedia a população de aumentar além do limite imposto pelos governantes.” [26]
Esparta e Veneza eram os modelos prediletos de Maquiavel, assim:
“Acredito que, para estabelecer uma república cuja existência se possa prolongar por muito tempo, o melhor seria organizá-la como Esparta ou Veneza, num local protegido, tornando-a forte o bastante para que ninguém pensasse poder vencê-la.” [27]
O historiador A.H.M. Jones descreveu a disciplina espartana com base em Xenofonte e Plutarco, aceitando que a mesma era atribuída a Licurgo:
“A famosa disciplina dos espartanos fora atribuída a Licurgo. Indubitavelmente é muito antiga e tem pontos de contato e analogias com costumes de muitas tribos primitivas. A disciplina é descrita por Xenofonte e Plutarco.” [28]
W.G. Forrest, historiador inglês, pensou do mesmo modo, ainda que um pouco mais eufórico:
“A Esparta clássica era renomada pela habilidade e coragem de seu exército e pela estabilidade e excelência de sua Constituição. Ambos, pensava-se, devia-se ao gênio de um homem, Licurgo, que, na aurora da história, criara todas as instituições que fizeram Esparta e espartanos o que foram.” [29]
Essa mesma visão é compartilhada por Eugène Cavaignac que reconheceu a fixação com Esparta da época clássica[30]. Oliver Taplin, entusiasta da cultura grega, acentuou diferença de perenidade entre Atenas e Esparta. De fato, persistem muitos monumentos que comprovam que a Atenas imaginária de fato existiu. Mas em Esparta não há o que se ver hoje. Justifica-se, assim, a perspectiva de Cavaignac, que procura em vão uma Esparta pretérita. Simplesmente, não há o que se ver na Esparta moderna:
“Os grandes monumentos de Atenas estão reunidos à volta da majestosa Acrópole: o local da antiga Esparta, que de facto consistia num grupo de povoações sem uma muralha defensiva, é agora um grupo de outeiros coberto por oliveiras, rodeado pelo fértil vale do rio Eurotas.” [31]
Pensa-se num modelo espartano, numa miragem, que radica na obra de Plutarco. É o mesmo Oliver Taplin quem confirma:
“Por muito repulsivo que isso possa parecer, foi construído ao longo dos séculos um mito de Esparta enquanto modelo de uma sociedade estável e patriótica — a “miragem espartana”, como é por vezes conhecido. A admiração de Platão foi significativa, mas a idealização mais importante pertenceu ao biógrafo Plutarco (cerca de 100 d.C.) especialmente em Vida de Licurgo Plutarco foi levado muito a sério durante o Renascimento e da obra anterior há uma excelente tradução quinhentista para o francês de Amyot. No século XIX, Mary Garth (…) escreveu um pequeno livro para seus rapazes, chamado História dos Grandes Homens extraída de Plutarco. É assim que muitas das cidades dos Estados Unidos se chamam Esparta; e esta é a razão por que em 1834, logo após a independência da Grécia, uma nova Sparti foi projectada junto do antigo local.” [32]
O elogio de Esparta é recorrente. Monteiro Lobato, em livro para crianças, faz Dona Benta dizer:
“[Esparta] era uma cidade da Grécia, de costumes bastante especiais. Escutem. Novecentos anos antes de Cristo, por lá apareceu um homem de nome Licurgo, que sonhou fazer de Esparta a mais poderosa do mundo. Para isso saiu a viajar, correndo os países que pôde para ver as causas da força de uns e da fraqueza dos outros. Viu que os povos que só davam importância aos prazeres da vida eram fracos, ao passo que os que punham o trabalho acima de tudo e cumpriam seus deveres, fossem agradáveis ou não, eram fortes. Voltando a Esparta, começou Licurgo a organizar a vida dos espartanos conforme as lições que aprendeu. Fez um código de leis severíssimas, que pregava o espartaninho ao nascer e ia até o fim da vida, a governá-lo com toda a dureza. ‘É de cedo que se torce o pepino’, devia ser a divisa desse código. Se os recém nascidos eram fracos, ou possuíam qualquer defeito físico, a lei mandava abandoná-los numa montanha, para que morressem. Licurgo não queria que houvesse um só aleijado de nascença em Esparta.” [33]
A concepção da grandeza espartana pode ser mais uma invenção de nossa cultura, mais um mito que nos remete a uma leitura imaginária de nós mesmos. Pode ser mais um exemplo de que a fabulização do passado seja um antídoto e um reforço para as nossas frustrações e lutas presentes.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!