Direito Comparado

EUA tem guerra por acesso a publicações científicas

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

8 de maio de 2013, 17h24

Há uma passagem na “Autobiografia de Hans Kelsen”, cuja tradução brasileira encontra-se na quarta edição, que é muito curiosa e merece ser transcrita: “o trabalho [a tese de livre-docência de Kelsen] foi publicado em 1911 com o título Hauptprobleme der Staatsrechtslehre, entwickelt aus der Lehre vom Rechtssatz [Principais problemas da teoria do direito público, desenvolvidos a partir da teoria da norma jurídica], por J. C. B. Mohr, em Tübingen, mediante consideráveis custos de impressão que precisei pagar, e formou a base da minha livre-docência na Faculdade de Direito e Ciência Política, que ocorreu no mesmo ano”.[1]

Em uma das riquíssimas notas explicativas à autobiografia, elaboradas por Matthias Jestaedt, sob coordenação do Instituto Hans Kelsen, tem-se a real dimensão das circunstâncias desse episódio:

“Paul Siebeck, então proprietário da editora J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), informou Kelsen por correspondência de 1.9.1910 que precisaria ser pago, ‘tendo em vista o caráter teórico de sua pesquisa, um módico subsídio para os custos de impressão’ de um montante de 15 marcos por folha de impressão de 16 páginas. Portanto, o subsídio para os custos de impressão para uma quantidade total de 735 páginas deve ter chegado a cerca de 690 marcos. Para comparação: em 1910, a renda anual média de um trabalhador equivalia a 1.078 marcos brutos. O preço de venda dos Hauptprobleme era de 16 marcos (18,50 marcos em capa dura)”.[2]

Uma das mais importantes obras jurídico-filosóficas do século XX, na qual se pode dizer está o marco inicial (e mesmo a criação) da Teoria Pura do Direito, só foi publicada graças à assunção dos custos editoriais por parte de seu autor, então um jovem e pouco conhecido livre-docente austro-húngaro. E, segundo o próprio Kelsen, isso ocorreu em uma época de grandes dificuldades, pois “a situação financeira na casa dos meus pais alterara-se de modo muito desfavorável”, com a falência da empresa de seu pai, o que obrigou Hans Kelsen a ministrar aulas particulares para sobreviver.[3]

Essa amarga realidade de 100 anos atrás se reproduz em nossos dias. Muitas editoras jurídicas fecharam, entraram em situação pré-falimentar ou foram vendidas a grandes grupos internacionais. Não se trata de um privilégio brasileiro. Pode-se dizer que é um fenômeno internacional. Das casas publicadoras que remanescem, é nítida a especialização em três nichos de mercado: a) edições pagas pelos autores (algo impensável há alguns anos, salvo em gráficas); b) revistas científicas; c) obras para concursos públicos. As monografias, dissertações e teses caminham para sua proscrição pelas editoras comerciais. Salvo as publicações eletrônicas (e-books) e universitárias (em sua maioria tomadas por livros de outras áreas do conhecimento), essas produções intelectuais só entrarão no prelo se os autores pagarem, total ou parcialmente, os custos de impressão. As editoras tradicionais, em sua maior parte, não aceitam esse modelo, por escrúpulos compreensíveis, o que tem aberto espaço para pequenas casas publicadoras, algumas mais antigas, outras recém-criadas. Em muitos casos, o selo editorial é uma espécie de timbre para se identificar se um livro foi custeado ou não por seu autor para vir a lume.

Esse mercado editorial “por encomenda” é grandemente favorecido pelos rígidos controles de produtividade das agências de fomento ou de regulação da pós-graduação (no Brasil e no mundo). Além disso, há um novo fator estimulante para essas edições: os critérios de ingresso ou de promoção em carreiras públicas. E, por fim, o interesse em divulgar uma firma de advocacia, com a exposição da obra de um de seus integrantes.

As “revistas jurídicas” não passaram incólumes pelo dramático processo de transformação imposto ao mundo editorial pela internet. Antes um mecanismo essencial de acesso à jurisprudência e à literatura atualizada sobre temas cuja investigação demandava verticalidade intelectual, as revistas hoje concorrem com os bancos de dados dos tribunais, que, no Brasil, são magníficos. E também padecem com a explosão de textos doutrinários disponíveis livremente na rede.

No Direito, não há a tradição de se cobrar dos autores pela publicação de artigos em revistas especializadas. Algumas até pagam um valor simbólico para seus colaboradores. Nas ciências duras, o quadro é bem diferente. Os pesquisadores enviam seus artigos para as revistas científicas e pagam por sua publicação. Suas instituições, por sua vez, assinam esses periódicos e obrigam-se a restringir o acesso a um número específico de utentes. A razão para que os autores paguem para ver seus textos estampados nessas revistas está nos custos com a já famosa “revisão cega por pares” e com a edição em si.

Em fevereiro de 2012, como noticiado na imprensa, iniciou-se um boicote contra a maior editora de periódicos científicos por um grande número de pesquisadores de Matemática.[4] A carta-manifesto desse boicote é intitulada O custo do conhecimento, na qual seus autores destacam que o papel das revistas científicas é a disseminação da pesquisa e de seus resultados, além da revisão por pares e da evolução profissional.[5] Esse movimento cresceu e atingiu algumas universidades norte-americanas. Antes de sua deflagração, o famoso MIT, desde 2009, já havia adotado a política do “acesso aberto” (open access, em inglês,) a seus artigos acadêmicos.[6] As editoras reagiram e defenderam que sua existência e sua função justificam-se pela essencialidade da seleção imparcial, profissional e organizada dos trabalhos científicos. Sem sua intermediação, não seria possível que 3 milhões de artigos enviados anualmente às revistas científicas fossem transformados em 1,5 milhão de textos publicados a cada ano. A atuação das editoras de periódicos evitaria que os cientistas despendam tempo com a administração e o custeio dessas publicações, o que importa o controle de processos de chamada, seleção, revisão linguística e por pares.[7]

Essa polêmica chegou ao Congresso dos Estados Unidos. Em 2011, apresentou-se um projeto de lei — o Research Works Act —, com apoio de associações de editoras e de defesa dos direitos autorais, com o objetivo de proibir que um órgão governamental divulgue (ou autorize a divulgação) de qualquer trabalho ou pesquisa científicos sem autorização do respectivo editor. Na prática, é uma forma de impedir que agências oficiais, que financiaram pesquisas com bolsas ou subvenções, assumam a titularidade dos respectivos direitos de autor.[8]

Em contrapartida, em fevereiro de 2013, o Congresso norte-americano recebeu um projeto de lei intitulado Fair Access to Science and Technology Research Act of 2013, que tem por finalidade liberar o acesso de textos científicos produzidos com base em financiamento público. Na exposição de motivos desse projeto, diz-se que os Estados Unidos têm interesse em maximizar o impacto e a utilidade das pesquisas científicas, além do que a internet tornou possível o acesso imediato e a avaliação dos resultados dessas investigações para cada cientista, médico, educador ou cidadão, seja em casa, na escola ou nas bibliotecas.[9]

No Brasil, desde 12 de fevereiro 2006, a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), nos termos da Portaria 13, determinou a obrigatoriedade da divulgação, em meio digital, de teses e dissertações elaboradas nos programas de pós-graduação em sentido estrito no País.[10] A fundamentação ideológica dessa norma está exposta em seu artigo 5o: “O financiamento de trabalho com verba pública, sob forma de bolsa de estudo ou auxílio de qualquer natureza concedido ao Programa, induz à obrigação do mestre ou doutor apresentá-lo à sociedade que custeou a realização, aplicando-se a ele as disposições desta Portaria”.

Esses novos conflitos envolvendo a produção científica, os direitos autorais e o futuro do mercado editorial devem ser analisados à luz das transformações da indústria cultural contemporânea. As pessoas hoje não querem mais pagar para ouvir músicas. O sentimento geral é de que esse bem cultural está disponível na internet e qualquer forma de contrapartida seria desnecessária. Essa “nova” perspectiva obrigou os artistas a voltar ao modelo de negócios do século XIX, antes das gravações fonográficas: sua renda é majoritariamente extraída das apresentações a públicos pagantes.

Em relação ao livro e à produção científica em periódicos, com a expansão de publicações digitais gratuitas, é muito provável a morte de um modelo negocial que se estruturou com base no copyright há mais de 300 anos.


[1] KELSEN, Hans. Autobiografia de Hans Kelsen. Tradução de Gabriel Nogueira Dias e José Ignácio Coelho Mendes Neto. Introdução de Mathias Jestaedt . Estudo introdutório de Otavio Luiz Rodrigues Junior e José Antonio Dias Toffoli. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 44
[2] KELSEN, Hans. Op. cit. 45
[3] KELSEN, Hans. Op. cit., loc. cit.
[5] Disponível em http://thecostofknowledge.com/. Acesso em 7-5.2013.
[8] Disponível em http://thomas.loc.gov/cgi-bin/bdquery/z?d112:h.r.3699:. Acesso em 7-5.2013.
[10] BRASIL. Ministério da Educação. CAPES. Portaria 13. Art. 1º : “Para fins de acompanhamento e avaliação destinados à renovação periódica do reconhecimento, os programas de mestrado e doutorado deverão instalar e manter, até 31 de dezembro de 2006, arquivos digitais, acessíveis ao público por meio da internet, para divulgação das dissertações e teses de final de curso”.

Autores

  • é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).

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