Saco cheio

Não há lugar para a bica d’água nem para o açude

Autor

  • Fernando Foch

    é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e membro da COMCI — Comissão Mista de Comunicação Institucional do TJ-RJ.

27 de junho de 2013, 16h12

Depois da arrogância, o lenitivo. Governadores e prefeitos acabaram por reduzir preços de passagens de transportes coletivos. E só. Deixando de lado a consequente redução de investimentos públicos, já que, subsidiados, concessionários e permissionários continuarão isentos dos ônus da solidariedade social, o cala-boca apenas confirma a perplexidade dos governantes diante das manifestações que tomaram inúmeras cidades nas últimas semanas. Não entenderam nada.

Na sexta-feira, 21 de junho, depois de dias de paralisia, a presidente da República falou em cadeia nacional de rádio e televisão. Assumiu as reivindicações das ruas, mas não indicou quais eram e muito menos o que pretendiam. Ficou a salvo de comprometimentos. Enfatizou que mudanças só virão através de partidos políticos e da democracia representativa. Deu algumas explicações sobre serviços públicos e gastos com arenas. E mostrou-se mal informada, ao dizer que a Lei de Acesso à Informação já é cumprida pelo Executivo e em breve o será pelos outros Poderes, os quais, no entanto, já a cumprem faz tempo. Advertiu que a baderna não será tolerada e se disse predisposta a conversar com as lideranças do movimento.

No dia 24 protagonizou dois espetáculos midiáticos de puro marketing. A reunião com governadores e prefeitos e o encontro com os que seriam líderes do Movimento Passe Livre, de São Paulo. No primeiro falou da óbvia necessidade de respeito à Lei de Responsabilidade Fiscal e de controle da inflação, proclamou a necessidade de serviços públicos de qualidade. Defendeu a contratação de médicos estrangeiros, como se a medida, de duvidosa constitucionalidade, fosse capaz de recuperar aparelhos comprados e jamais utilizados ou tivesse o dom de consertar materiais e aparelhos quebrados ou inexistentes, de recuperar hospitais e de aparelhar UTI’s e criar leitos.

Também anunciou a liberação de recursos para melhorias nas áreas de saúde, educação e de transporte público, além de desoneração do setor. Propôs a utilização dos royalties do pré-sal apenas na educação. Por fim, lançou a ideia de plebiscito de induvidosa inconstitucionalidade para consultar a população acerca da convocação de uma assembleia constituinte exclusiva e por isso mesmo inconstitucional, para a reforma política que pode muito bem ser patrocinada pelo Executivo e submetida ao Congresso Nacional.

Lançou a ideia de transformar a “corrupção dolosa” em crime hediondo, o que é inócuo. Primeiro por pecar juridicamente por vários motivos, como inovar ao admitir haver corrupção culposa, em que o criminoso tira proveito de sua conduta, mas sem querer, ou seja, por imprudência, negligência ou imperícia — algo no mínimo curioso. Segundo por não esclarecer que corrupção é essa: ativa (CP, artigo 333) ou passiva (CP, artigo 317)? Terceiro, porque omite outras condutas gravíssimas e de notória banalidade, como facilitação de contrabando ou descaminho (CP, artigo 318), prevaricação (CP, artigo 319), condescendência criminosa (CP, artigo 320) advocacia administrativa (CP, artigo 321). Quarto, porque o precário sistema penitenciário brasileiro torna utópica a execução da pena, ainda que a lei penal, impondo pena restritiva de liberdade, proíba seu cumprimento em outro regime que não o fechado.

Exceção feita à PEC 37, a PEC da impunidade, contra a qual se insurgiram as massas, e sobre o que nada foi dito, não saiu do campo das promessas e das palavras. Os temas ocuparão a mídia por semanas e meses. Outras reuniões do mesmo naipe, com outros órgãos do Estado e com entidades da sociedade civil vão abastecê-la, como as do dia 25. É clara a intenção de entreter as massas.

No entanto, está claro que no país da propaganda política, das palavras vãs e das promessas descumpridas ou mal cumpridas, a opinião pública, esse implacável juízo coletivo da verdade, vê qualquer palavrório como mera fanfarrice. Sintomaticamente, ao fim do outro evento marqueteiro, um jovem integrante do Movimento Passe Livre, de São Paulo, sentiu-se autorizado a dizer à imprensa que a presidente não está preparada para discutir a pauta que propusera ao grupo, restrita, é verdade, a transporte.

Tudo isso desnuda a perplexidade, a surpresa, a estupefação nas quais as ruas acuaram os governantes. Revela, de outro lado, resposta inadequada.

Acostumados à assessoria não de sociólogos, cientistas políticos e outros cientistas sociais, mas de marqueteiros e prestidigitadores políticos, eles, os governantes, como tal entendidos também deputados, senadores, ministros de Estado, prefeitos, secretários estaduais e municipais, se mostram apenas preparados para ganhar eleições e exercer o poder na base do fisiologismo e da barganha de cargos públicos, disputados quase a tapa não pelo que neles se possa fazer no interesse público, mas pelo que representam em lucros eleitorais.

A eles há de ter sido dito que a legitimidade dos governantes é tão maior quanto maior for a aprovação popular, e aí o que se vê, envolta em maciça propaganda, é a política da bica d’água e do açude — a bica d’água na favela, o açude no agreste, o mínimo do mínimo onde não há nada, para o máximo de clientelismo — que com o tempo se transmudou nas bolsas-isso, nas bolsas-aquilo e em coisas como a política de pacificação de favelas que, se tem algum mérito, tem o demérito de empurrar delinquentes para outros lugares. São apenas exemplos. É enorme o rol de medidas que atacam os efeitos e não as causas dos graves problemas sociais brasileiros, como é de nossa triste tradição político-administrativa.

Não se vão calar as multidões com conversa fiada em se assumir vagamente o discurso que as ruas sugerem ou em se anunciar vaga predisposição ao diálogo. Nem se vai conseguir calá-las levando à Justiça uma meia dúzia de arruaceiros que têm aproveitado as oportunidades para apedrejar, incendiar, depredar e de permeio saquear o comércio, dado que essas brigadas, se são compostas por um grupelho trotskista que com certeza nunca leu Leon Trótski, hão de ter o reforço prestimoso de quem tenha interesse em justificar repressão policial mais contundente, além, é claro, do concurso indisfarçado de delinquentes de variadas especialidades criminosas.

É preciso que os governantes entendam o que se passa, o que tem levado multidões às ruas, em impressionantes manifestações sem líderes e sem partidos, sem chefes e sem centrais sindicais, aliás, expressamente, estas e aqueles, rejeitados pela massa. Buscar essa compreensão é dever de quem exerce o poder. Não é difícil. Se alguma dificuldade nisso existe, ela é a de se exercer o poder com sincera consciência de que quem o detém dele deve-se desincumbir em consonância com a vontade média do povo e em prol do interesse público, não em benefício próprio, de um grupo de apaniguados, de um partido político ou de uma coligação partidária, aliás, no Brasil, de inconvincente substância ideológica.

Se essa dificuldade for vencida, entender-se-á que na malversada democracia brasileira o povo tem enfiado a viola no saco das insatisfações. Insatisfações com os serviços públicos e com a corrupção, com a educação e com a insegurança, com a desordem urbana e com a carga tributária, com a compra de parlamentares e com as licitações fraudadas, com as chacinas e com a falta de saneamento básico, com a Polícia e com a saúde pública, com a criminalidade e com a Justiça, com o desvio de verbas e com obras faraônicas para agrado da Fifa, com dólares em cuecas e com o dinheiro público jogado fora em coisas como, por exemplo, no Rio de Janeiro, a Cidade da Música e as praças esportivas (mal) construídas para os últimos Jogos Pan-Americanos.

Mas não é só. Há evidente insatisfação com a iniquidade nas relações sociais, do que são exemplo as de consumo, as quais, tendo todo um Direito de proteção ao consumidor e, de um lado, toda uma estrutura vocacionada à sua efetividade, tem, de outro, planos de saúde, bancos, grandes organizações varejistas e concessionárias de serviço público em teimosa resistência ao cumprimento das obrigações que assumem, em renitente adoção de práticas abusivas e perseverante impingimento de cláusulas leoninas. Isso sem falar na Administração Pública das várias esferas federativas, que se recusam, eis a verdade, a fornecer medicamentos, terapias e exames a quem necessita sem por eles poder pagar, e tergiversam na hora de cumprir as condenações judiciais que recebem. Comprovam-no as demandas aos milhares, senão milhões, levadas ao Judiciário, que, por seu turno, a elas não dá pronta resposta porque um arsenal de recursos processuais, não por acaso engendrado, conspira contra a efetividade da prestação jurisdicional.

Aliás, a Justiça tem sido poupada. Mas ninguém se engane. Está aí a Ação Penal 470, que teria sido, segundo abalizada voz, um ponto fora da curva do Supremo Tribunal Federal. Ela estará no foco das massas a partir do momento em que uma profusão de recursos levar à absolvição de qualquer dos condenados do “mensalão”. Ou à prescrição dos crimes que lhes foram imputados.

Antes que isso aconteça, vencido o desafio do exercício impessoal do Poder, não será difícil constatá-lo e, mais que isso, verificar que o saco está cheio. As massas, ao que parece, dele tiraram a viola. O saco pode se transformar numa Caixa de Pandora.

A imprensa tem dado sua contribuição para acalmá-la, como se panaceias fossem o suficiente. Nas transmissões ao vivo das manifestações e nos noticiários, derramou-se em elogios à imensa maioria ordeira dos manifestantes. Disse que as passeatas eram bonitas. Afirmou que elas, pacificamente realizadas, eram saudável exercício da democracia. E deplorou a ação dos depredadores, a quem, com razão, chamou de vândalos. Adjetivou, tomou partido, mudou a regra de ouro da reportagem. Agora anuncia que líderes do movimento decidiram não convocar outras manifestações porque o objetivo foi alcançado.

Mostrou, no mesmo dia 21, meia dúzia de pessoas, uns jovens, outros nem tanto. Seriam os chefes do tal Movimento Passe Livre, todos assustadíssimos com o que resultou do protesto que convocaram contra o aumento de passagens de ônibus na capital paulista. Ainda não reanimados com o que consideraram despreparo da presidente da República, disseram eles que não mais promoveriam outras manifestações porque o objetivo fora alcançado. No entanto, os protestos continuaram, o que confirma que os amedrontados líderes não exercem liderança alguma.

Parece, assim, que governantes e mídia não entenderam que a tal liderança desse, não se diga movimento, mas fenômeno, não é identificável. Ela é a informação, que sempre pressupôs o direito de ser informado e o de informar. Portanto, será inócuo reunirem-se com os representantes do Movimento Passe Livre, cuja eventual cooptação, ainda que pela força de sincero convencimento, por certo resultará em nada. O recurso é por demais velho para os tempos que correm.

A única novidade relevante é que a rede mundial de computadores, a world wide web, ou, como se prefira, a internet, especialmente através das redes sociais, democratizou o direito de informar. Tornou-o efetivo. Ele não mais se reparte entre o Estado e a mídia, que, como seus únicos titulares, dele fizeram um poder. Hoje o direito de informar é efetivamente de todos. Como revelou o jovem Edward Snowden, os Estados Unidos acordaram para isso e montaram seu Big Brother. Na mesma esteira, a China vive às turras com a Google, o Facebook, o Twiter e com assemelhados.

Nesse cenário, a lição que tem de ser aprendida pelos governantes é a de que a aprovação que legitima o poder exige políticas públicas de efetivos conteúdo, eficiência e eficácia. Não há lugar nem para a bica d’água nem para o açude, na velha ou na nova acepção. Também não há lugar para os marqueteiros nem para prestidigitadores políticos. Nele se exercita a verdadeira política e a verdadeira política não é mercadoria nem ação entre amigos.

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  • é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e membro da COMCI — Comissão Mista de Comunicação Institucional do TJ-RJ.

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