O ativismo judicial existe ou é imaginação de alguns?
13 de junho de 2013, 8h00
Nos últimos dias, essa temática veio de novo a estar na crista da onda, com a posse do novo ministro do STF — que aproveito, aqui, para cumprimentar e desejar êxito na nova jornada —, Luís Roberto Barroso. Segundo ele (clique aqui para ler), não existe “um surto de ativismo judicial” em curso no país. Para Barroso, a quantidade de leis declaradas inconstitucionais pelo Supremo é ínfima e, mesmo em casos emblemáticos, o tribunal tem como característica a deferência ao Congresso Nacional: “Por exemplo, no julgamento sobre a possibilidade de se fazer pesquisas com células-tronco embrionárias, o Supremo manteve a lei que foi editada pelo Congresso. Não há um padrão rotineiro de ingerência indevida.”
Para situar o leitor: Barroso dizia, até um tempo atrás, que havia bastante ativismo, para ser bem generoso com as suas críticas de então. Tudo está a indicar que, agora, já não considera haver tanto ativismo. É o que se depreende de sua entrevista. Todavia, ao mesmo tempo, em posição externada na sabatina do Senado, revela um movimento de defesa de um poder normativo criador por parte do STF: “Quando há uma manifestação política do Congresso ou do Executivo, o Judiciário não deve ser ativista, deve respeitar a posição política. Mas se não há regra, o Judiciário deve atuar”. Ao mesmo tempo, há a defesa de que o Supremo Tribunal Federal deva ser uma “vanguarda iluminista” pronta a atuar subsidiariamente ante a inércia dos demais poderes, verbis: “essa matéria [a ADPF tratando do aborto de anencéfalos], o processo legislativo, o processo político majoritário, não consegue produzir uma solução. E quando a história emperra, é preciso uma vanguarda iluminista que a faça andar. É este o papel reservado ao Supremo no julgamento de hoje.” (clique aqui para ler).
Vamos discutir isso, então. Ativismo e judicialização são temas que frequentam as grandes discussões da teoria jurídica brasileira. O acentuado protagonismo do Poder Judiciário vem despertando, não só no Brasil, um conjunto de pesquisas que buscam a explicação desse fenômeno. Nesse sentido, a formação de uma “juristocracia” (ou judiciariocracia) — chamemos assim a esse fenômeno — não pode ser analisada como uma consequência exclusiva da vontade de poder (no sentido da Wille zur Macht, de Nietzsche) manifestada pelos juízes, mas, ao mesmo tempo, deve-se levar em consideração a intrincada relação interinstitucional entre os três poderes. Em síntese, todas essas questões apontam para um acentuado protagonismo do Poder Judiciário no contexto político atual.
Indo mais fundo, nos termos propostos Ran Hirschl (Towards Juristocracy: The Origins and Consequences of the New Constitucionalism), pode-se dizer, transportando a discussão para terrae brasilis, que nosso grau de judicialização atingiu a mega política (ou, a política pura, como o autor gosta de mencionar). Por certo que este fenômeno não é uma exclusividade brasileira. Há certa expansão do Poder Judiciário a acontecer, em maior ou menor grau, no cenário mundial. O próprio Hirschl apresenta situações nas quais as decisões, tradicionalmente tomadas pelos meios políticos, acabaram judicializadas, como no caso da eleição norte-americana envolvendo George W. Bush e Al Gore; a decisão do Tribunal Constitucional Alemão sobre o papel da Alemanha na Comunidade Europeia, e o caráter federativo do Canadá.
Na verdade, a intensidade da judicialização da política (ou de outras dimensões das relações sociais) é a contradição secundária do problema. A grande questão não é o “quanto de judicialização”, mas “como as questões judicializadas” devem ser decididas. Aqui está o busílis. Este é o tipo de controle que deve ser exercido. A Constituição é o alfa e o ômega da ordem jurídica. Ela oferece os marcos que devem pautar as decisões da comunidade política.
Há um conjunto de obras que tratam da judicialização no Brasil e daquilo que pode ser considerada a sua vulgata, o ativismo judicial. Nelas — e cito (Jurisdição e Ativismo Judicial, Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais e Levando o Direito a Sério são algumas) — há uma forte acusação ao protagonismo judicial. Referidas pesquisas e reflexões apontam para o perigo que o ativismo judicial representa para a representação política, até porque uma ofensa à Constituição por parte do Poder Judiciário sempre é mais grave do que qualquer outra desferida por qualquer dos outros Poderes, porque é ao Judiciário que cabe sua guarda. Quem nos salvará se não há mais salvadores? Ou pior: quem nos salvará dos salvadores?
Entretanto, há uma obra que nega que haja ativismo. Trata-se de Thamy Pogrenischi.[1] Tratarei desse livro apenas por alto, neste momento. No livro Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, que em breve sairá pela RT, faço a devida apreciação (e crítica).
Sim, há ativismo em excesso
Ao contrário do que diz o novo ministro e ao contrário do que sustenta Thamy Progrenischi (que, aliás, no seu livro critica Barroso, que, paradoxalmente, parece, agora, concordar com a crítica que lhe foi feita), há, sim, excesso de ativismo. E quando digo excesso, não estou admitindo um “ativismo adequado ou necessário”. Permito-me dizer: ativismo é vulgata da judicialização. Não há bom ou mau ativismo.
Então, o que se entende por ativismo?
Já de pronto, não creio que se possa definir o grau de ativismo pelo número de ADINs rejeitadas ou deferidas (é o que dizem Progrenischi, em seu livro, e Barroso, na entrevista à ConJur). Pergunto: desde quando somente um ato positivo de inconstitucionalidade é que demonstra o ativismo de uma Suprema Corte? Quer dizer que, se o STF julga de acordo com o parlamento ou de acordo com o governo, ele deixa de ser epitetado de ativista? Ativismo é só quando julga “contra”? Afinal, qual é o conceito de ativismo? Antes de tudo, é necessário dizer que a simples declaração de uma inconstitucionalidade não quer dizer ativismo ou não ativismo. O controle de constitucionalidade é justamente a função precípua e democrática de uma corte constitucional. Logo, número de Ações contra ou a favor não permite epitetar um tribunal de ativista (ou antiativista). Podem ser elementos que apontam algo. Mas não tudo. Aliás, por vezes os números escondem e não desvelam…
Mais ainda, por vezes, judicializar a política pode não ser exatamente o mesmo que praticar ativismos. Aliás, não é o mesmo. Se verificarmos bem, veremos que a judicialização é contingencial. Ela não é um mal em si. O problema é o ativismo (que é comportamental, espécie de behaviorismo cognitivo-interpretativo). Como venho referindo, há uma diferença entre judicialização e ativismo, problemática que já foi explicada à saciedade por mim tantas vezes e que está em bons estudos no Brasil (os excelentes trabalhos de José Ribas Vieira e Vanice do Valle, por exemplo).
Entretanto, em muitos livros no Brasil, ambos — ativismo e judicialização — são tratados de forma idêntica. Por exemplo, é bom lembrar que o fato de existirem, no STF, mais demandas indeferidas que as que foram deferidas se deve também ao enorme contingente de legitimados. Grande parcela de ações que tratam de questões constitucionais são fadadas ao fracasso ab ovo, por falta de requisitos formais. Isso não diminui o grau de ativismo.
Dizer, por exemplo, que o STF reforça a vontade majoritária do Poder Legislativo pode ser um enunciado que sofre de anemia significativa. Será que, como sustenta, por exemplo, Thamy Pogrebinschi, 14% de ações consideradas procedentes de uma produção legislativa de 21 anos é efetivamente pouco? Qual é o critério para o "pouco” ou “muito”? Não quero jogar com esses dados. Mas não afirmaria, tabula rasa, que tais números representa(ri)am um reforço do Legislativo.
Além disso — e permito-me insistir —, há casos que sempre devem fazer parte de qualquer pesquisa para aferir o grau de ativismo. Por exemplo, os mandados de segurança que o próprio parlamento busca junto ao STF… Como classificar o caso, recentíssimo, da ação judicial da oposição para trancar a pauta da apreciação dos vetos, com liminar deferida pelo ministro Luiz Fux? Isso é o quê?
Alguns autores — e aqui incluo exatamente T. Pogrebinschi — dizem que o fato de o STF se valer de sentenças interpretativas (interpretação conforme etc.) reforçaria o papel da lei e do Legislativo. Mas, indago: e se o STF, via interpretação conforme (ou nulidade parcial sem redução de texto), fizer exatamente o contrário do que propunha o Legislativo? Por exemplo, o Congresso nunca quis falar da regulamentação das uniões homoafetivas (atenção: não quero reiniciar a discussão do mérito dessa ação). Trata-se de um assunto que o Congresso, ao decidir não regulamentar, na prática o STF “regulamentou” de forma negativa. E o que fez o Judiciário, na ADPF 132? Fez interpretação conforme para excluir qualquer significado do artigo 1.723 do Código Civil que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, dando procedência da ação, atribuindo, inclusive, efeito vinculante. Ou seja, nem tudo o que parece, é.
Assim, a partir da diferença entre ativismo e judicialização e da relevante circunstância de que o STF não representa o estado da arte dessa fenomenologia deste país de proporções continentais, há uma série de pontos que devem ser abordados. Como venho referindo em vários livros e textos, os tribunais e o STF fazem política quando dizem que não fazem; eles fazem ativismo quando dizem que não fazem; e judicializam quando sustentam não fazer. Por exemplo, quando o STF decide que, no artigo 366 do CPP, a prova considerada urgente fica ao arbítrio do juiz decidir, está não somente fazendo ativismo, com a institucionalização da discricionariedade judicial — ponto importante para aferir o grau de ativismo e da judicialização — como também está “legislando”. Não parece que o legislador, ao estabelecer, nos marcos da democracia, que a prova considerada urgente possa ser colhida de forma antecipada, tenha “querido” deixar isso ao bel prazer do juiz… Bom, mas foi isto que o STF disse que o dispositivo “quer dizer”.[2] Atenção: sei que o STF mudou sua posição depois disso (HC 114.519). O que importa, entretanto, é que assim já havia julgado.
Ainda: quando o legislador institucionaliza o sistema acusatório no Código de Processo Penal, mediante a aprovação de uma alteração significativa do artigo 212, o STJ e o STF negam validade ao dispositivo, sem qualquer arguição sobre a inconstitucionalidade do novel dispositivo. Simplesmente se negam a cumprir o dispositivo. Isso é ou não é ativismo? O sol nascerá amanhã? O produto do legislador não está conspurcado pelo Poder Judiciário? E veja-se o alcance desse tipo de decisão (por todos, o HC 103.525 – STF). Com isso, diariamente, milhares de acusados têm seus direitos violados por falta do cumprimento de um dispositivo que trata de direitos fundamentais. E assim por diante.
Poderia trazer centenas de decisões que, por vezes, aplicam o formalismo jurídico como se estivéssemos no século XIX (ou no direito de antes de 1988), quando leis antigas são aplicadas à revelia da atual Constituição; e, ao mesmo tempo, não são poucas as decisões prolatadas de acordo com… o livre convencimento do juiz. Aliás, a livre apreciação da prova ou o livre convencimento do juiz — e as inúmeras decisões que tratam disso (por exemplo, o recente processo do mensalão[3] que muito se utilizou do “livre convencimento”) — seriam enquadradas em que conceito? Judicialização ou ativismo? Quando o STF diz que, com base no princípio da verdade real (sic), aplica a livre apreciação da prova, ele está praticando o que?
Políticas versus princípios
Como venho afirmando, os problemas decorrentes do presidencialismo de coalização se estendem ao Poder Judiciário. Com efeito. No livro Compreender Direito,[4] trato dessa matéria, mostrando que o STF vem julgando por políticas em grandes causas e não por princípios. Na verdade, ele atende aos vários segmentos, numa espécie de presidencialismo de coalizão judicial. Vejamos: os segmentos a favor das cotas não manifestaram sua vontade política no sentido estrito; pelo contrário, foram diretamente ao Supremo reivindicar sua legitimidade. Do mesmo modo agiu o segmento que pediu a equiparação das uniões estáveis homoafetivas ao casamento, que seguiu na cauda dos que clamavam pela constitucionalidade das atividades de pesquisa com células-tronco embrionárias, dos governadores, no caso das guerras fiscais, dos que pediam a descriminalização do parto antecipado de fetos anencefálicos, e até mesmo os moralistas, que fragilizaram a democracia pela defesa da Lei da Ficha Limpa e os parlamentares, que, pedindo ao Supremo, validaram quase 500 medidas provisórias inconstitucionais por consequência de uma modulação de efeitos.
Por vezes, números enganam. E muito. Há pesquisas — e a mais detalhada, efetivamente, é a da brilhante Professora Thamy Pogrebinschi na obra citada — que apenas demonstram, por números, que, olhando os resultados dos julgamentos do STF, ele mais julga a favor do parlamento e do executivo do que contra. Mas, atenção: esses números escondem os demais julgamentos do STF. Mais do que isso, colocam uma cortina de fumaça sobre o imenso contingente de julgamentos ativistas dos Tribunais da República, que vão desde o simples descumprimento de direitos fundamentais (ativismo às avessas, pois não?) até decisões descontroladas fornecendo xampu para calvos. Ou seja, o que é isto, o ativismo? O que é isto, a judicialização?
Mas, tem mais…
Permito-me lembrar, desde logo, que essa é apenas uma das questões que dizem respeito à judicialização. No plano do controle difuso ou do uso de writs constitucionais, a judicialização (ou o ativismo) é muito mais significativo. A judicialização do direito à saúde, por exemplo, passa por uma ou duas ações no Supremo Tribunal Federal (controle concentrado) e por dezenas de milhares de ações nos fóruns e Tribunais da República, inclusive no STF. Portanto, as ADIs são só a ponta do iceberg, que podem induzir ao erro.
Mais ainda, a discussão sobre a judicialização não deve ficar restrita à atuação (ou crítica à atuação) do STF. Basta vermos que várias unidades da federação gastam mais em pagamento de ações judiciais sobre o acesso à saúde e remédios do que nos próprios orçamentos. Em São Paulo, por exemplo, os gastos da Secretaria Estadual da Saúde com medicamentos por conta de condenações judiciais em 2011 chegaram a R$ 515 milhões, quase R$ 90 milhões gastos além do previsto no orçamento do ano destinado a medicamentos. Vladimir Passos de Freitas, colunista da ConJur (clique aqui para ler), mostra que, só neste ano, em cinco meses, 7.408 decisões judiciais obrigaram o município de São Paulo a promover a matrícula de crianças nas creches da prefeitura (que nem tem condições de cumprir). Isso é o quê? Esses dados entram ou não entram no “índice de aferição do ativismo”? É preciso dizer mais ou devemos fazer um passar d’olhos nas Varas da Fazenda Pública, na questão medicamental, internações, creches em outras capitais que não São Paulo, decisões discrepantes sobre o que é insignificância no furto e na sonegação de tributos? Deixo isso com meus fiéis leitores.
Talvez o problema na teoria do direito — quando trata do ativismo — esteja no conceito. Autores como T. Pogrebinschi dizem que a cultura jurídica brasileira estaria equivocada porque usaria outliers (casos mentirosos) para demonstrar um “excesso de ativismo” ou de judicialização. Segundo ela, seriam poucos casos e que, no cômputo geral, dariam um percentual pífio. Conclusão da autora: não é verdade que o STF seja ativista; não é verdade que o STF pratique judicialização. Se isso é verdade, nunca vi tantos casos outliers juntos…
Ora, isso não é tão simples assim. Um dos pontos que a autora não trata é, por exemplo, a decisão da Rcl 4.335-4, pela qual o STF decidiu, ao menos provisoriamente (o julgamento está suspenso há mais de cinco anos) que o artigo 52, inciso X, da Constituição é anacrônico. Sim. O STF nega validade a um dispositivo da Constituição originária, que trata da relação direta entre os poderes de Estado e isso não é levado em conta por aqueles que escrevem sobre o ativismo. Mas, isso seria o quê? Para se ter uma ideia — e esse assunto comento em artigo em conjunto com Martonio Barreto Lima e Marcelo Cattoni –, (clique aqui para ler) “graças” a essa decisão o controle difuso no Brasil foi equiparado ao controle concentrado. E há muito tempo o STF já não remete as decisões de controle difuso ao Senado. E isso não parece pouco.
A doutrina deve se dar o (devido) respeito
Portanto, não dá para dourar a pílula. A doutrina brasileira precisa, urgentemente, voltar a doutrinar. Ela não pode mais ficar caudatária das decisões. Doutrina “doutrina” e não “doutrinada”. Precisa exercer o seu papel de constrangimento epistemológico. E deve se dar o respeito. Não pode ficar silente. Quando, por exemplo, centenas e centenas de decisões — de cariz ativista — dizem que estão aplicando “a tal da ponderação”, quando, de fato, não estão nem perto do que dizia seu idealizador (Alexy), e a doutrina pouco ou nada diz a respeito, é porque corremos o risco de fracassar (aliás, há prova maior de ativismo do que o uso da vulgata da tal da ponderação, pedra filosofal da interpretação?). Como falei na Conferência de abertura do Conpedi (Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação), em Curitiba, dia 29 de maio último, fôssemos médicos e estaríamos ignorando coisas mínimas da ciência médica e nossos pacientes estariam morrendo. Assim o é com a doutrina. Na aplicação cotidiana do direito usam-se conceitos que deveriam ser contestados pela doutrina. Mas ela se queda silente-conivente. Verbi gratia, o que diz a doutrina sobre o projeto do novo CPC que, sob o pretexto de commonlizar o processo, institucionaliza, de vez, o julgamento sem base concreta, passando o Judiciário a julgar teses ao invés de casos (o que, inclusive, fere toda a tradição do common law)?
Eu faço a minha parte. Não é implicância minha. Os paradigmas filosóficos, que deveriam influenciar a doutrina e a jurisprudência, não são invenção minha. Eles estão aí. E não adianta o jurista encher o peito e dizer “o que vale é a prática”. Depois se queixam… Lembro, sempre, de Fernando Pessoa: “O universo não é uma ideia minha; a minha ideia do universo é que é uma ideia minha.”
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