Direito Comparado

Conceito de liberalismo precisa ser visto com olhar crítico

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

10 de julho de 2013, 16h44

Quando Barack Hussein Obama foi eleito presidente dos Estados Unidos da América, seus críticos acentuavam sua posição política liberal como um dos grandes problemas de sua futura administração, que se comprometeria com causas antipáticas ao modelo tradicional de sociedade e de mercado no país, ao exemplo do apoio ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, o afrouxamento da política imigratória, a implantação de um sistema público de saúde e o maior intervencionismo econômico do Estado. No Brasil, um liberal é um defensor da abertura dos mercados, da redução da carga tributária, da mínima intervenção “econômica” e “na economia” do Estado, da livre iniciativa e da privatização das empresas estatais. Por outro lado, um conservador, no Reino Unido, ao menos em sua vertente thatcherista[1], poderia muito bem ser definido como um liberal segundo os padrões brasileiros ou, para não se limitar tanto o rótulo, de acordo com as ideias dos seguidores da Escola Austríaca, com sua fulgurante constelação de economistas do porte de von Hayek[2] e von Mises.[3]

Essa dificuldade de caracterização de pessoas, grupos ou mesmo um código como liberal ou conservador torna-se ainda mais sensível quando também se põe em evidência a clivagem esquerda-direita. O Partido Democrata, nos Estados Unidos da América, e o Partido Trabalhista, no Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, seriam representativos de um pensamento de esquerda. Daí se referir, especialmente na América do Norte, aos democratas como left-liberals (liberais de esquerda), o que torna ainda mais confusa essa classificação. Nos países do Leste Europeu, em muitas análises políticas ou jornalísticas sobre o equilíbrio de forças entre os antigos partidos comunistas e seus opositores históricos (antigos monarquistas, simpatizantes do modelo capitalista ocidental ou dissidentes ligados aos direitos humanos ou ao meio-ambiente), costuma-se dizer que os comunistas (ex-comunistas, neocomunistas ou socialistas) seriam os conservadores.

No final do século XX e início do século XXI, duas novas questões perturbaram profundamente a clássica divisão entre conservadores e liberais. A primeira está na explosão do movimento ambientalista. Os defensores do meio-ambiente são chamados de ecologistas, ambientalistas e…conservacionistas. Essa perspectiva evidenciou-se em um estudo interno da União Democrática-Cristã (cuja sigla em alemão é CDU[4], o partido conservador da Alemanha, fundado por Konrad Adenauer e que une católicos e protestantes). Nesse relatório, identificou-se que os ambientalistas seriam o eleitorado mais “conservador” a longo prazo. Não haveria nada mais conservador do que um membro do Partido Verde e, nesse sentido, haveria uma convergência natural dos eleitores de tendência religiosa (como são os do CDU) e os verdes. Não deixa de ser irônico que, no Brasil, essa profecia haja sido realizada na pessoa da ex-senadora Marina Silva, ela mesma uma legítima defensora das causas ambientais e uma cristã protestante ligada aos novos movimentos evangélicos.

A segunda questão é a relativa aos costumes, cuja sede material estava e está ainda hoje na família e seu papel histórico. O conservadorismo em costumes foi, até pouco tempo, uma nota distintiva de partidos como o Republicano, o Conservador, a CDU, o Partido Popular (Espanha) ou o Partido Social Democrata (Portugal). A defesa da família dita tradicional afastou essas agremiações (e seus eleitores) de temas como o casamento (ou as uniões) de pessoas do mesmo sexo, o aborto, as uniões simultâneas e o controle de natalidade. Hoje, no entanto, essa monolítica orientação quanto aos costumes sociais está repleta de fissuras. Abstraindo o aborto e o controle de natalidade e ficando-se apenas nas uniões não heterossexuais (aí compreendidos outros arranjos), salvo evidentes exceções, o Partido Conservador, a despeito de forte resistência interna, abandonou suas restrições ao tema. No Partido Republicano, existem muitos dissidentes, cada vez mais fortes, diga-se, à vedação jurídica às famílias constituídas fora dos esquemas clássicos.

Nos países de tradição socialista, durante todo o século XX, prevaleceu a chamada “moral leninista”. A despeito da valorização da mulher e da igualdade na assunção de atividades econômicas e profissionais, os regimes comunistas foram tradicionalmente “conservadores” em matéria de costumes. Os homossexuais eram tidos como degenerados e havia previsões para sua reeducação ou confinamento. Cuba, um dos últimos estados comunistas no mundo, só recentemente começou a suprimir essa política discriminatória.

É bem provável que a perda de referencial simbólico, ideológico e também jurídico das expressões “liberal” e “conservador” haja sido causada pela ruptura histórica representada pelo fim da experiência do “socialismo real” na Rússia e na Europa do Leste. É evidente que não se podem simplificar as coisas e decretar a morte do marxismo, que permanece vigoroso e com renovado interesse por filósofos, juristas e sociólogos em todo o mundo. Mas, a experiência iniciada em 1917, com Revolução Russa, e extinta em 1989, com a queda do Muro de Berlim, permite hoje sua apreciação com o necessário distanciamento histórico. E, por essa razão, é possível afirmar que a mais importante categoria sociológica do século XX, o trabalho, perdeu sua capacidade de explicar isoladamente os fenômenos sociais.

A categoria “trabalho”, que foi a base das duas mais importantes tradições sociológicas do último século, lideradas por Karl Marx e Max Weber, era fundamental para dividir e ordenar as classes sociais, os costumes, a estética, a moda, as expressões lúdicas do povo ou a organização dos partidos políticos. Hoje, parece haver “tribos” (no sentido equívoco e vulgar do termo) e não mais “classes”. O bilionário Bill Gates não usa gravata e foge do estereótipo do capitalista tradicional, embora ele seja tão ou mais concentrador de renda e violentamente competitivo (com tudo o que isso significa) quanto seus precursores John D. Rockfeller, J. P. Morgan ou Cornelius Vanderbilt. Esses últimos eram conhecidos monopolistas nos setores do aço, petróleo e financeiro, com práticas comerciais tão peculiares que passaram à história como os “barões gatunos”. Diferentemente de Gates ou de Steve Jobs, eles prezavam o modo de vestir clássico e um estilo de vida religioso. Tanto para os barões do século XIX, quanto para os barões contemporâneos, porém, a vida espartana e a agressividade negocial permanecem idênticas.

O estilo de vida desses novos “barões”, que hoje faz sucesso em diversos países, como é o caso do Brasil, fez com que eles fossem hoje reconhecidos pela expressão “bobos”, ou seja, bourgeois bohemian, em português, “burgueses boêmios”, que foi adaptada por David Brooks, em um livro de 2000, publicado por Simon & Schuster, com o título muito sugestivo de “Bobos in paradise: The new upper class and how they got there” (Burgueses Boêmios no paraíso: a nova classe alta e como eles chegaram lá”). Diz-se adaptada porque “burguês boêmio” (bourgeoise bohéme) foi uma criação do escritor francês Guy de Maupassant, em seu romance de 1885, intitulado Bel-Ami.

Esses burgueses boêmios, no entendimento de Brooks, seriam o fruto da contracultura dos anos 1960, que romperam com o formalismo (jurídico, filosófico, cultural e estético) e com os costumes sociais baseados na religião, na família legítima (sobre esse ponto ler a coluna Limites da intervenção judicial na separação de bens) e moralidade dita burguesa. São capitalistas sem colarinhos brancos ou gravatas, que não temem as experiências hedonísticas (negadas pelo ascetismo judaico-cristão) e que defendem a extinção de hierarquias e de distinções nas empresas (“pode chamar-me de Steve e não de Mr. Jobs” ). Eles não mais apoiam os partidos conservadores e, sim, os liberais. Em seus negócios, eles enfatizam práticas politicamente corretas, políticas afirmativas e assumem-se como defensores da ecologia.

Um poderoso capitalista que se deixa chamar pelo nome e que considera seu empregado como um “associado” ou “colaborador” e, ainda por cima, doa dinheiro para causas ecológicas e pode ser encontrado na padaria da esquina é algo totalmente subversivo para as clivagens clássicas de liberal e conservador. No Direito, esse fenômeno também se nota, especialmente nas profissões jurídicas. Veja-se um hipotético exemplo de uma firma que ganha polpudos honorários de empresas poluidoras ou que devastam o meio ambiente, mas que defende pro bono causas humanitárias, politicamente corretas ou em favor de minorias.

Há, em tudo isso, um processo de deturpação do sentido das palavras, daí a imensa dificuldade em se utilizar essas expressões. E, o que é mais grave, uma espécie de acomodação dos conflitos, fazendo com que as causas reais da desigualdade social, da concentração de renda ou transformação de cidadãos em consumidores sejam obnubiladas por um discurso politicamente correto. E, até mesmo essa retórica do “bem absoluto”, que mais se parece com uma religião laica, é comprometida por sua função paralisante. É difícil atacar quem defende o pandinha em extinção ou quem afeta um comportamento igualitário em relação a seus empregados, mas que os remunera tão mal quanto a política de custos mínimos na empresa o permita. E, de resto, essa política de (aparente) defesa do meio ambiente e de causas coletivas é uma bela (e gratuita) propaganda da empresa, sob o selo irreprochável da “responsabilidade social”.

Nesse aspecto, o descolamento entre a defesa de costumes tradicionais, em termos de moral e família, e a preservação do modo de produção capitalista conferiu aos novos “bobos” uma esfera de imunidade.

Essa contradição essencial entre a manutenção do modelo econômico e a adoção de práticas morais ditas avançadas está no centro do questionamento hoje formulável sobre o que é ser um liberal ou o que é um Código liberal?

Nas últimas duas colunas (clique aqui e aqui para ler), tem-se examinado o papel do Direito e do Código Civil alemão na formação do Direito Privado brasileiro. A conclusão dessa série visa abrir uma nova perspectiva sobre o aparente consenso em torno do “liberalismo” do Código de 1916 e do Código alemão. Por uma questão metodológica, fez-se necessário interromper a sequência das colunas para oferecer ao leitor um exame prévio (e indispensável) do conceito de liberalismo e de suas múltiplas nuanças em nosso tempo.

A complexidade da clivagem liberal-conservador não pode servir, contudo, para abandonar essas expressões por completo. Em verdade, passa-se a exigir uma elaboração mais refinada desses termos e a impedir que se proclame, de modo repetitivo e muita vez acrítico, que o Código de 1916 foi liberal, sem que se explique essa qualificação. Em suma, é preciso ser conservador na qualificação de algo como liberal.


[1] Relativo à administração da primeira-ministra britânica Margareth Hilda Thatcher (1925-2013), nobilitada como Baronesa Thatcher, nos anos de 1979-1990, marcada pela privatização de empresas estatais, instituição de um novo modelo regulatório de serviços públicos e pelo estímulo à livre iniciativa
[2] Friedrich August Edler [nobre] von Hayek (1899-1992), economista e filósofo, nascido em Viena, no Império Austro-Húngaro, prêmio Nobel de Economia (1974), é um dos líderes da Escola Austríaca e tem contribuições importantes na Economia, no Direito e na Psicologia. Ele defendeu a livre iniciativa, a liberdade individual e é geralmente apontado como o antípoda de John Maynard Lord Keynes, este último defensor da intervenção econômica do e no Estado.
[3] Ludwig Heinrich Edler [nobre] von Mises (1881-1973), economista e filósofo, nascido na Galícia, então parte do Império Austro-Húngaro, de origem judaica, expoente da Escola Austríaca, defensor de princípios como a livre iniciativa e a liberdade individual. Aos interessados em conhecer seu trabalho, sugere-se a consulta ao sítio eletrônico: http://www.mises.org.br/.
[4] Christlich Demokratische Union Deutschlands.

 

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  • Brave

    é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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