Milton Luiz Pereira e as facetas de um grande juiz
24 de fevereiro de 2013, 8h44
Os anos de profissão vão moldando as pessoas. Opiniões moderadas, hábito de dar a última palavra — mesmo que seja sobre a compra do carro do cunhado — e a inconsciente tendência de ouvir o outro interessado, aplicando o devido processo legal até na disputa dos filhos pelo leite condensado.
Mas, ainda que o tempo torne todos meio semelhantes, inclusive nos currículos, criando um pensamento quase uniforme sobre o Direito e a vida, alguns acabam saindo do padrão. Para o bem e para o mal.
Conheci centenas de magistrados ao longo de minha vida. Não só federais. Dez anos de MP estadual deram-me visão razoável dessa Justiça. Muitos anos de política associativa introduziram-me na Justiça do Trabalho e na Militar. Cursos, visitas, palestras ao redor do mundo deram-me a noção de que os juízes pensam de forma semelhante, em locais tão diferentes como Quênia, Honduras e Austrália.
Entre os magistrados que conheci, muitos me impressionaram. Falarei de um deles, movido pelo fato de ter participado, dia 22 passado, da cerimônia de colocação de seu nome em um Fórum da Justiça Federal em Curitiba. Refiro-me a Milton Luiz Pereira.
Conheci-o no ano de 1981, quando assumi a 2ª Vara Federal de Curitiba. Éramos apenas seis juízes federais para todo o estado. Mas ele era, visivelmente, o líder, o condutor. Sua figura rigorosa, a par da gentileza no trato, impressionou-me. E o tempo me fez compreender aquele homem singular.
Assistindo a aposição de seu nome no edifício que ele instalou em 1983, vieram-me à mente, como naqueles filmes em que sucessivas estações do ano revelam a inexorável passagem do tempo, as inúmeras passagens da vida de Milton Luiz Pereira. Muitas eu presenciei. Outras, me contaram. Vale a pena mencionar algumas. Pequenas coisas, que distinguem os que fizeram a diferença daqueles que, burocraticamente, apenas cumpriram seu papel.
O primeiro caso que me ocorre, contaram-me os servidores. Diziam que ele foi ao Detran resolver um problema e, após horas na fila sem se identificar, no momento em que ia ser atendido, o funcionário disse solenemente: “expediente encerrado” e fechou a pequena janela sua cara. Ele identificou a pessoa e mandou um convite para que fosse à Justiça Federal. O homem lá chegou, amedrontado, vivia-se no regime militar. Ele o recebeu educadamente e mostrou os três andares da Justiça Federal, à época na rua 15 de Novembro. Finalizou, levando o homem ao térreo e disse, sem qualquer sermão: “Sr. Fulano, eu só queria mostrar-lhe que aqui fazemos questão de atender bem a todos que nos procuram”.
Nos anos 1980, vez por outra, vinham ministros do Tribunal Federal de Recursos. Em 1983 chega um deles e era preciso recebê-lo bem. Milton avisou-nos que daria um jantar em sua casa. Lá fomos todos, cerca de 12 pessoas. A comida, preparada por sua esposa Mary — morreram com horas de diferença, no mesmo hospital, com 52 anos de matrimônio — feita com capricho. Seus cinco filhos, ainda crianças, ajudaram a servir e arrumar a mesa, depois brindaram-nos tocando piano. Vi algo incomum, uma linda e diferente recepção familiar.
Quando da mudança da Justiça para o prédio que agora leva o seu nome, estava eu sentado em uma mesa, com dois diretores de Secretaria, deliberando sobre a lotação de funcionários, porque a Vara havia sido desmembrada em duas. Ele passou e, percebendo a dificuldade da divisão, recomendou-me: “Na dúvida, pense no que atende mais ao interesse público e decida”. Essa lição levei para toda minha vida.
Dessa época, outra passagem curiosa. Milton, como diretor do Foro, foi a Brasília em viagem oficial. Ao retornar, entregou ao diretor administrativo as notas fiscais de suas despesas e, dando um cheque em branco e assinado, disse: “as despesas foram menores que as diárias, portanto, recolha a diferença a favor da União”. O diretor, após tentar convencê-lo de que não precisava devolver o dinheiro, perdeu dias até descobrir como recolher a diferença aos cofres públicos, porque até então nunca alguém tinha procedido daquela forma.
O corregedor do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Tadaaqui Hirose, conta que, ao prestar o concurso em Brasília, no dia da prova oral, recebeu a visita de Milton Pereira, então convocado no TFR. Dele ouviu: “Dr. Tadaaqui, hoje de manhã fui à Igreja e rezei para que o senhor faça uma boa prova”.
Poucos anos depois, indicado em lista tríplice para o TFR, foi procurado por um advogado de péssimo conceito, que ofereceu apoio político. Evidentemente, para depois tornar-se credor do favor e cobrá-lo com juros e correção monetária. Ele respondeu: “Dr. Fulano, se o senhor quer me ajudar, reze por mim”. A um só tempo, rejeitou a oferta e não melindrou o homem, revelando sabedoria política.
Quando foram criados os TRFs, ele foi para São Paulo, presidir o TRF-3. Um assessor conta que, certa feita, o tribunal decidiu, administrativamente, pelo pagamento de diferenças salariais. Ele entregou um ofício ao assessor, dizendo: “Entregue no setor de pagamentos, não aceito receber esse dinheiro. Recomende ao diretor que não comente isto com ninguém, pois não quero parecer melhor do que os outros”. Em outra ocasião, o assessor entrou na sua sala, às 13 hs, e encontrou-o ajoelhado, rezando. Saiu rapidamente. Depois, chamado, ouviu a explicação: “Temos sessão hoje e sempre peço a Deus que, nos meus julgamentos, eu não cometa injustiças”.
Nomeado ministro do STJ, jamais se deixou inebriar pelo cargo. Jamais aceitou que o carro oficial o levasse do aeroporto à sua casa quando ia visitar a família, em caráter particular.
Quando foi coordenador do Conselho da Justiça Federal, criou um curso de hermenêutica à distância. Narra a presidente do TRF-4, Marga Tessler, que ao fazer o curso surpreendeu-se com o interesse do ministro que, inclusive, se comunicava com os participantes enviando mensagens. Por expressa recomendação dele, ela leu o livro Didascalion – a arte de ler, escrito por Hugo de San Victor em 1127, que acabou influenciando-a por toda a vida.
Em 2007, já aposentado, recebeu em sua casa a visita do diretor do Foro Marcelo Malucelli e da presidente da associação local, Flávia Xavier, que vinham pedir autorização para que fosse dado seu nome ao Fórum Federal. Exibiram ambos ato do Conselho da Justiça Federal, permitindo que pessoas vivas fossem assim homenageadas, desde que aposentadas. Ele ouviu atentamente, agradeceu e não aceitou. Disse: “Esperem que eu morra”.
Dezenas de passagens de Milton Luiz Pereira são transmitidas oralmente. E não só das atividades de magistrado, mas também dos tempos de estudante de Direito — venceu um concurso nacional de oratória —, de radialista, de advogado, de prefeito de Campo Mourão — onde recebeu, ao deixar o mandato, um Volkswagen de presente da população — e de professor — dedicado e rigoroso.
Exemplos como o dele devem ser lembrados e divulgados. E que frutifiquem, para o bem do Brasil.
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