Senso Incomum

Crítica do Direito, prêmio Ig Nobel e o aplicativo Lulu

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5 de dezembro de 2013, 7h00

Spacca
Os cinco problemas que o crítico enfrenta
Vou parafrasear a americana Maureen Ryan, crítica do Huffington Post, que tem um texto chamado “Como ser um crítico de TV”, comentado na Folha por Mauricio Stycer. São basicamente cinco grandes problemas que o crítico tem de enfrentar. Assim, já trazendo a problemática para o Direito:

1. Você perde boa parte do seu tempo vendo/lendo a baixa literatura que se produz por aí; tem de entrar nas livrarias e ver o que está sendo lançado, mormente naquilo que diz respeito à cultura standard, essa que tomou conta do ensino jurídico facilitado e dos concursos quiz shows.

2. O diálogo com os leitores, pela internet, é ótimo, mas também pode ser cansativo por conta de comentaristas mal-intencionados (nisso até não posso me queixar. Minha relação com os leitores está sendo ótima).

3. É preciso aceitar que, mesmo com bolsistas e estagiários lhe ajudando, você nunca será capaz de ler a tudo que quer. É verdade. A produção jurídica é algo que espanta os próprios ambientalistas, pelo número de árvores sacrificadas para tanta coisa banal que é produzida.

4. É triste constatar que muitos textos que você escreve e tantos outros que você admira fracassam e são, digamos assim, entre aspas, cancelados por falta de audiência (por exemplo, vejo livros belíssimos que não passam da primeira edição; além disso, o meu Verdade e Consenso vende mais na Europa do que no Brasil).

5. As pessoas que militam no mundo jurídico (doutrina faculdades, tribunais) nem sempre reagem bem ao que você escreve. Essa é a parte mais dura da função.

Recebo muito auxílio. Vejam o que o leitor Pedro Maracaípes nos diz, em comentário à coluna sobre os Dez Mandamentos:

“(…) Sou um estudante (Instituição Privada) do interior (do interior) de MT (por onde passou aquela Ladra Jane da OAB, rs), e me sinto apto a relatar com detalhes o ensino jurídico que nos é outorgado. As aulas são verdadeiros "cursinhos" voltados para ordem, as questões "discutidas" em sala são somente aquelas "objetivas-pegadinhas" que causaram polêmica no exame anterior. As provas têm limites de linhas (Responda em no máximo 06), não relacione ideias e responda como o professor "ditou" na aula passada. A biblioteca é recheada com livros esquematizados e simplificados. Tudo é uma versão menor de outra coisa. Nisso tudo, sinto-me perdido quando leio os inteligíveis textos dos autores deste site. Não terei com quem comentá-los, pois ninguém leu…nem mesmo o professor! Porquanto, se desejas ser muito mais que um Técnico em Direito (não me espantaria uma versão assim no Senai/Senac) é preciso buscar fora da instituição…comprar e estudar os clássicos em casa, refletir e comentar com…ahh, apenas refletir. Quanto às aulas, bom, a chamada é o ápice do saber, o suprassumo do dia, a real forma de se avaliar o aluno/cliente/consumidor é vê-lo em sala respondendo "presente"…enquanto o futuro (jurídico) será tão resumido quanto às aulas ministradas”.

Pronto. Eis aí um prato cheio para o crítico. No caso, o próprio texto do leitor é auto-explicativo. Gracias, Pedro.

Para quem iria o Prêmio Ig Nobel do Direito?
Desde 1991 existe o prêmio Ig Nobel para prestigiar as descobertas mais estranhas ou bizarras. A invenção é da Revista de humor Annals of Improbable Research (Anais das Pesquisas Improváveis). Por exemplo, em 2013 um dos ganhadores foi o americano Gustavo Pizzo, pela invenção de um sistema eletromecânico capaz de isolar e aprisionar sequestradores de avião entre duas portas, para em seguida arremessá-los de paraquedas.

Baseado nisso, pensei na premiação na área do Direito, por pesquisas ou “descobertas” óbvias, tautológicas, contra-legem ou despiciendas. Assim, o prêmio Ig Nobel de Direito poderia ir para o inventor do princípio da “amorosidade”, que constou no Diário Oficial como princípio reitor do SUS. Também é autoexplicativo.

Um comentário sem o qual a ciência jurídica não poderia sobreviver e que merece, sem dúvida, o prêmio Ig Nobel é de um livro de Direito Constitucional, que, para explicar o sentido da palavra “armas” do artigo 13 da CF, deixou claro que “armas” não quer dizer “armas de fogo”. And the IgNobel Premium goes to...! Sugiro um novo comentário: onde está escrito “selo” no mesmo dispositivo constitucional, não se pode ler “selo para selar cartas”.

O Ig Nobel vai, também, para todos aqueles promotores, advogados e juízes que trabalham com execução criminal e que conseguem, nada obstante, dormir à noite sem a ajuda de ansiolíticos. Já visitaram um presídio? Refiro-me não à Papuda (cujas agruras, segundo leio na imprensa, parecem estar reduzidas ao banho de água fria; aliás, mais um pouco e a Papuda virará um ponto turístico, se é que já não virou), mas às casas prisionais anônimas que integram o nosso sistema carcerário. No meu Rio Grande do Sul (e, pelo que conheço, a situação é até pior noutras paradas), o sistema faliu (em 2009, no dia 29 de maio, representei ao PGR para que fosse feita a intervenção no Estado, em face do caos do sistema prisional — claro que não deu em nada; o pedido dormita até hoje, sendo que o “sistema” piorou nesse período). Perdeu. Perdemos. Ou ganhamos. Sim, ganhamos o prêmio Ig Nobel.

Mas divago. Retomo. Pensem bem: qualquer manifestação num processo de execução de pena já nasce com o Ig Nobel em seu horizonte. Violam-se direitos humanos dos apenados (e também das vítimas, sei bem) todo o tempo. Não há como fazê-lo senão lançando mão de decisões “estranhas” ou “bizarras”. O preso tem direito à saúde, ao trabalho e à dignidade? Sei.

A propósito, falando em dignidade, merecem também o IgNobel setores da academia jurídica de terrae brasilis que maltratam, dia após dia, o legado do pobre Kant. Kant, como sabe toda a gente (perdoem-me a ironia, quase involuntária), cunhou o conceito de dignidade humana mais influente, quem sabe até hoje, no âmbito da filosofia moral. A humanidade tem um valor absoluto: o homem existe como um fim em si mesmo. O indivíduo não é algo, pois, a ser usado meramente como um meio. Certo. Estamos todos de acordo que devemos respeitar a humanidade do outro? Que bom. Eis aí a matriz dos direitos humanos. Tempos atrás, entretanto, tomei conhecimento de uma decisão cujas linhas gerais eram, aproximadamente, essas: o sujeito tinha lá um problema nos testículos; ele não tinha dor, nem nada assim: mas a “coisa estava preta” (literalmente, além de inchada), o que lhe causava um constrangimento atroz. E inclusive, dificultava que ele mantivesse relações sexuais. O pobre homem bateu as portas do SUS e “deu na trave”. Procurou a Justiça, pedindo que o Poder Público custeasse a assistência à saúde de que necessitava. A resposta? Não havia perigo de morte — portanto, improcedente a demanda. Espantoso: o homem é um fim em si mesmo ou uma “coisa” a ser mantida viva? E o direito à felicidade?

Ah, o direito à felicidade…! Na Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, vai dito que há “algumas verdades autoevidentes”; dentre estas, o fato de que todos os homens são iguais e que foram dotados, pelo Criador, com alguns direitos inalienáveis — dentre estes, a vida, a liberdade e “the Pursuit of Happiness”. Trata-se, literalmente, do direito a perseguir a felicidade, cujo conteúdo central, em resumo, consiste em impedir o Estado (government) de colocar obstáculos injustificados às escolhas individuais do cidadão que vive sob o seu domínio. Por exemplo, a lei não pode criminalizar a sodomia, já que a orientação sexual é mais uma questão de valor ético do que qualquer outra coisa (Lawrence v. Texas). Em outras palavras, uma expressão desse direito é o conhecido “right to be let alone”. Pois bem. Cabe, no mínimo, uma indicação ao Ig Nobel àqueles espíritos elevados que, no Brasil, advogam a tese de que o tal direito a felicidade (ou princípio da felicidade) impõe que a viúva garanta, positivamente, a felicidade do cidadão. Um dever de abstenção foi transformado num dever prestacional! Vejam bem: sou um dos que escreve que, no Constitucionalismo Contemporâneo, o Estado Brasileiro está comprometido, de certa forma (mediante o cumprimento dos objetivos da República, por exemplo), com a concretização do ideal de uma vida boa. Agora, daí a dizer que o Estado tem de pagar por uma cirurgia plástica a um indivíduo que quer ficar parecido com um… lagarto! (clique aqui para ler), em nome da felicidade? Ig Nobel neles!

Uma reflexão invertendo as coisas…
Pensem bem: falar em bizarrices no Direito praticado no Brasil é um problema. Afinal, o bizarro, o esquisito, é o que está fora do lugar. E “fora do lugar”, convenhamos, está mais a minha coluna do que todo o resto. Então, não me surpreenderia nem um pouco se essa revista me ligasse. “Mr. Streck? Congratulations!” Aliás, eu aceitaria o Ig Nobel de bom grado. “Thank you very, very muchWhy not? Aqui, vocês sabem, trato do senso… incomum! E, no Brasil, quando a moda — o normal ( “dever-ser”) — é “facilitar” o estudo do Direito e multiplicar súmulas e verbetes e outros quetais, minha coluna é que está na contramão. Logo, alguém poderia dizer que a coluna não tem serventia, porque “Professor Lenio, não adianta nadar contra a maré, as coisas são assim mesmo!”. Assim, a coluna seria um invento que faz furo n’água… Logo, Ig Nobel, em um sentido invertido. Bingo!

Aí vem o novo: o aplicativo Lulu para o Direito
Leio que o Ministério Público do DF instaurou (clique aqui para ler) um inquérito civil público contra o Facebook e a Luluvise Incorporation (empresa desenvolvedora do aplicativo Lulu). De acordo com o MP, as companhias são suspeitas de "ofender direitos da personalidade de milhões de usuários do sexo masculino". O Lulu (o nome é absolutamente fofo, não?) é um aplicativo no qual apenas as mulheres podem avaliar características dos homens de forma anônima (parece que haverá um aplicativo também para os homens). Ao contrário de outras redes sociais, os perfis não são criados pelos próprios usuários. Essas informações são "puxadas" do Facebook, sem que eles tenham conhecimento, e ficam disponíveis para a avaliação das mulheres. 

Pensei logo em como poderia ser um ALPD (Aplicativo Lulu Para o Direito). Os operadores (professores, juízes, promotores, ministros, etc) seriam avaliados de forma anônima, recebendo hashtags do tipo # não sabe fazer nada sem pauerpoint # tem fetiche por pauerpoint # E ele acredita na verdade real tsk tsk tsk… # Dr. A. P. Deuta : Leu o Código a aula toda e achou que agradou # Sua sentença repete o direito facilitado… e nem citou a obra # Mais do mesmo: Repete o fundamento da sentença no acordão # Esse faz palestra parecendo um pastor neopentecostal # Jurista desportista: só usa e cita autores da segunda e terceira divisões # E até da quarta divisão # Esse é aquele que escreveu o direito plastificado que compramos na farmácia # Acredita em argumentos meta-jurídicos # Perdeu: Diz que fez ponderação e nem leu Alexy # Falou o tempo todo que ponderação era um princípio # Foi mal: disse que princípios são valores e que a verdade é relativa # Fica dizendo que emprestar helicóptero é uma prática normal de políticos # Diz que uma coisa pode ser imoral, mas pode ser legal # Chumbou: o livro dele repete tudo o que o Código diz e mesmo assim “se acha” # Esse é o zero-a-zero: faz versão simplificada de livro esquematizado # Usa pedaços de acórdãos e diz para os alunos que pesquisou na doutrina # Repetiu os mesmos chavões a noite toda… Use o ALPD desde já.

Pronto: vou patentear o ALPD (Aplicativo Lulu Para o Direito). Espero não ser enquadrado pelo MP-DF.

A crítica do e no direito: por um Direito sem agrotóxicos
Isso tudo que falei acima me leva à discussão das perspectivas do Direito na contemporaneidade. Dia desses, a brilhante Professora Jania Saldanha, em uma banca de mestrado, disse: “Professor Lenio, aqui na Unisinos está-se fazendo um Direito orgânico. Temos que ser juristas orgânicos. Não no sentido de Gramsci, mas no sentido mais usual da palavra”. Pois aproveito a ideia da Jania. Para enfrentar a ignomínias do Direito e o processo de estandardização acelerada, temos de construir um Direito sem agrotóxicos manualísticos e correlatos. Nossos produtos tem de ter um selo de qualidade, no futuro: “Produzido sem senso comum teórico”. “Direito com sustentatibilidade”. “Livre de juristoxidade”.

Trata-se de um direito que deve ser construído superando a indiferença ontológica que assola a dogmática jurídica cotidianamente. A indiferença ontológica é o predomínio da coisificação, da reificação dos conceitos jurídicos. E da falta de transcendência. É a entificação do ser, para usar uma terminologia que é me é muito cara. É a vitória do apofântico.

Tudo indica que aqueles que escrevem livros “descomplicados” acreditam mesmo que o Direito e a faticidade se “descomplicam” com um simples toque de “Midas semântico”. Algo como “a concepção realista das palavras”. Palavras como “simplificação” ou “descomplicação” devem ter, para eles, uma essência “descomplicadora”. De todo modo, a julgar pelo que se transformou o ensino jurídico e o modo como se produzem as decisões, de fato parece que eles têm razão. Ao menos assim parece, porque os compêndios estão ali, nas bancadas dos fóruns e tribunais. Já notaram como as grossas lombadas desses manuais nos olham de soslaio?

Fetiche da lei, fetiche das palavras… A linguagem não é uma terceira coisa entre um sujeito e um objeto. Ela é condição de possibilidade. Logo, ela não é mero instrumento. Ela não está à minha (ou nossa) disposição (Ge-stel). Do mesmo modo, o Direito não pode ser visto como uma mera racionalidade instrumental. Não é uma mera técnica. Para aqueles que tem a crença de que, trocando as palavras se trocam as coisas, lembro que a palavra “bomba” não explode. Pode ser apenas uma “notícia forte”, bombástica. Na rosa não está o seu perfume, para usar um exemplo antigo.

Não precisamos falar, neste pequeno espaço, dos usos sociais da linguagem etc. Apenas quero dizer que não podemos dar às palavras o sentido que queremos e tampouco podemos pensar que, trocando-se os nomes, as coisas mudam (pelo menos da noite para o dia). É isso. Os liliputeanos guerrearam durante anos, até a chegada de Gulliver. A disputa era decorrente de um problema semântico. E a “Constituição” deles era muito clara, pois não? Claríssima…! Todos liliputianos deveriam quebrar o ovo… pelo lado certo. Mas os intérpretes… Ah, esses intérpretes! E olhe que lá ninguém acusou a Constituição de ser demagógica…como ocorreu dia destes aqui em nossa Liliput-Pindoramicus.

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