Ambiente jurídico pede sensibilidade nos relacionamentos
25 de agosto de 2013, 8h00
No universo acadêmico, as bancas de mestrado e doutorado das áreas técnicas são completamente diferentes das que ocorrem na área jurídica. Naquelas, prevalece a informalidade, no tratamento e nos trajes. Nestas, a forma assume maior espaço, muitas vezes exteriorizada pelo tratamento de senhor ou pela leitura do resultado solenemente, com todos em pé.
Nos escritórios de advocacia não é diferente. Muito embora o paletó e a gravata estejam cedendo espaço a trajes mais informais, fruto da simplicidade da vida moderna e também do aquecimento global, ainda há uma distância abismal entre um local em que se trabalha, por exemplo, na área da informática e outro em que se pratica uma profissão jurídica.
Nos tribunais e nos juízos a formalidade é maior, muito embora atenuada por força da transformação pela qual passa a sociedade. Quando eu era estagiário, o uso do paletó e gravata era obrigatório e, quando o juiz se aproximava, ficava em pé. Tudo mudou, mas as relações interpessoais da área do Direito continuam a ser mais cerimoniosas do que nas demais profissões. E isto não é um fenômeno brasileiro, mas universal. Na América espanhola, por exemplo, o formalismo é bem maior.
De onde vêm estas práticas mais formais? Dificilmente se encontrará estudo a respeito. Quiçá dos romanos, com suas máximas de comportamento. Talvez da Idade Média, com a solenidade da corte do Rei Arthur. Quem sabe do período do absolutismo, em que os poderes do rei eram totais e isto, de certa maneira, se estendia aos juízes. Não sei.
No entanto, o geral, o tratamento solene vem cedendo espaço em toda parte. Há uma tendência natural de menor hierarquização e maior flexibilidade nas relações sociais, inclusive no mundo corporativo. Consequentemente, todos os setores são alcançados, inclusive os que se relacionam com profissões jurídicas.
O tema relacionamento raramente é estudado no mundo jurídico. Juliana Ribeiro Goulart, em oportuno estudo sobre a oralidade nos processos, observa que as audiências são formais, as pessoas se tratam de doutor, o juiz de Vossa Excelência e este exerce o poder de polícia. Registra a autora que: “Esse ritual e a forma de tratamento utilizadas nas salas de audiências, desprezam os sentimentos sob o pretexto de preservá-los. Obrigam o juiz e o Ministério Público a serem imparciais em suas decisões e pareceres. Um processo frio e hostil que acaba desumanizando a justiça, afastando o juiz das partes e o Ministério Público de sua mais importante missão: a de proteger os interesses e o convívio da sociedade.” (Por uma nova cultura dialógica no processo: o princípio da oralidade como instrumento de efetivação de uma escuta criativa, Revista Jurídica, P.11, disponível neste link.
O texto suscita indagações. Qual o limite do formalismo? Deveriam, juiz e agente do Ministério Público, serem mais parciais? O tratamento nas audiências deveria ser você? Ou tu? O que se ganharia e o que se perderia com isso? O juiz deve preocupar-se com os interesses da sociedade ou com a razão de uma partes?
O professor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, observa que “o formalismo processual contém, portanto, a própria ideia do processo como organização da desordem, emprestando previsibilidade a todo o procedimento. Se o processo não obedecesse a uma ordem determinada, cada ato devendo ser praticado a seu devido tempo e lugar, fácil entender que o litígio desembocaria numa disputa desordenada, sem limites ou garantias para as partes, prevalecendo ou podendo prevalecer a arbitrariedade e a parcialidade do órgão judicial ou a chicana do adversário (O Formalismo-valorativo no confronto com o Formalismo excessivo, disponível neste link).
Portanto, o formalismo, dentro ou fora das audiências, tem a finalidade de conduzir os atos processuais com ordem. A prática judiciária revela que se em uma audiência o juiz se comporta de modo absolutamente informal, eleva-se o risco de conflito entre as partes. E até de ele ser ofendido no momento em que tomar uma decisão contrária aos interesses de um dos envolvidos, insatisfeito com o resultado. Tal qual faria em um bar, assistindo a um jogo de futebol, se o seu time sofresse um gol.
Obviamente, isto não significa que o juiz deva ser frio como um crupiê diante da roleta, insensível ao drama humano que se desenrola à sua frente. Não. A cordialidade e calor humano devem ser exteriorizados no tratamento cordial, na atenção, ou em uma frase para desanuviar o ambiente. Não precisam nem devem, todavia, vir acompanhados de uma intimidade cujos efeitos possam ser negativos.
Por exemplo, se o ambiente atingir um grau de conflito exagerado, exige-se do magistrado que seja, a um só tempo, afável e equidistante das partes, para que possa aproximá-las mantendo e deixando evidente a sua imparcialidade. E mais. Os advogados devem manter-se serenos e não devem entrar em discussões com frases agressivas. O litígio não é entre eles, mas entre os seus clientes.
Em verdade, as formalidades de tratamento nas relações jurídicas, em juízo ou fora dele, têm um objetivo não declarado: amenizar as divergências e, com isto, diminuir o potencial de confronto. Não é sem razão que se usam expressões como “data vênia”. É para que posições divergentes não sejam levadas para o lado pessoal. É para que a discussão fique apenas no plano das ideias e se evitem ódios eternos. As palavras atuam como o algodão entre cristais, previnem o impacto que poderá romper boas relações entre profissionais do Direito.
E, repito, isto não se dá somente nas audiências ou nos julgamentos nos tribunais. Pode dar-se em um escritório de advocacia, por exemplo, em uma tentativa de conciliação entre partes e advogados diversos. Uma frase irônica, um gesto mal posto, pode levar ao insucesso a tentativa de acordo e resultar em uma longa ação judicial.
Painéis em congressos podem ser palco de conflitos desnecessários. Certa feita, em Porto Alegre, após declarar minha posição favorável à responsabilidade penal das pessoas jurídicas nos crimes ambientais, fui surpreendido com a reação exacerbada de um promotor de Justiça que, nervoso, posicionava-se contra. Quando me deram a palavra expliquei que nada tinha de pessoal, a discussão era tão somente jurídica. Acabou.
Nas faculdades de Direito não é diferente. Uma reunião de departamento pode originar uma discussão sem maior complexidade, como a maior importância desta ou daquela matéria. Porém, dita de maneira inábil, pode resultar em meses, anos, de hostilidade, com todos os reflexos negativos imagináveis.
Nas relações entre servidores, a cautela deve ser maior. Ingressam jovens no serviço público e dele saem na terceira idade. Ofender alguém porque se saiu, com ou sem razão, beneficiado em algo (por exemplo, uma função gratificada), dizendo-lhe “poucas e boas”, pode dificultar a convivência por décadas. O melhor é canalizar a revolta para algo positivo e que resulte em crescimento pessoal.
Se assim é nos contatos pessoais, o mesmo se dá nas petições. A revolta de um advogado ou do agente do MP leva, muitas vezes, ao excesso nas frases. No processo eletrônico o risco é maior, pois a pessoa tem ainda maior dificuldade em vislumbrar os efeitos de seu ato. Os resultados são sempre negativos.
Se a petição pede ofendendo, por que há de esperar deferimento? Mesmo que haja motivo para o protesto, a petição será mal recebida. Da mesma forma um recurso de agravo de instrumento ou apelação. Exteriorizar o inconformismo com ofensas, mesmo que coberto de razão, poderá suscitar a solidariedade do magistrado que está na instância acima. Não ajuda em nada.
Nestes casos o melhor é controlar o ímpeto e registrar o inconformismo de forma contundente, bem fundamentada, mas não passional. Algo semelhante a um soco com punho de ferro, mas com luvas de veludo.
De resto, sempre é prudente, diante de um fato que nos causa revolta, deixar a decisão para o dia seguinte. A noite é boa conselheira. Mas, se a situação exige resposta no ato, respirar profundamente algumas vezes auxiliará no controle emocional. Afinal, o desabafo excessivo pode gerar um conforto momentâneo, mas, depois, anos de constrangimento, mágoas e vinganças.
A ofensa desnecessária nunca é esquecida. Sem falar que pode resultar em ações penais, indenizações por danos morais ou sindicâncias administrativas. Os embates da vida, aos quais ninguém escapa, são suficientes para tirar-nos a alegria. Criar outros, desnecessariamente, não é um ato de inteligência.
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