Senso Incomum

Juiz não é gestor nem gerente. Ele deve julgar. E bem!

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8 de agosto de 2013, 8h00

Spacca
Um pouco de história
Como pensávamos antes de 1988? O que mudou no imaginário dos juristas desde então? Esta é uma pergunta que os alunos costumam fazer. Veja-se que, por exemplo, promulgada a nova Constituição em 1988, a composição do Supremo Tribunal Federal continuou a mesma. Repetimos o que já havíamos feito na Constituição de 1824, recepcionando os conselheiros da Casa de Suplicação. E repetimos o que fizemos em 1891, quando, já na República, sob a égide da nova Constituição constituímos o Supremo Tribunal com os antigos conselheiros do velho Superior Tribunal de Justiça. Com isso, tornaram-se ministros do STF republicano dois “nobres”, com título e tudo.

Na verdade, nunca tivemos grandes rupturas. Acostumamo-nos a ver o novo com os olhos do velho. Imaginemos os velhos conselheiros, novéis ministros do STF da República, julgando inconstitucionalidades, coisa que não existia no Império. Pouco pode nos surpreender, quando falamos em “questões paradigmáticas”.

Antes da CF 88, a não democracia. A ditadura. O regime autoritário. A luta do jurista crítico era contra essa estrutura jurídica “que aí estava”. Se ele não fosse para a política (ou para outro tipo de luta), tinha que lutar dentro da institucionalidade. Ou seja, nas brechas da institucionalidade, o jurista “de oposição” (não partidária, mas de oposição ao autoritarismo) tinha que se desdobrar para levar adiante e ter êxito nos seus pleitos (habeas corpus, mandados de segurança etc.). Correntes críticas de várias tendências se formaram. O realismo jurídico deu azo às posturas ditas alternativas. Um certo marxismo concebeu o “direito achado na rua”. As correntes linguísticas buscavam nas brechas do texto legal, repleto de vaguezas e ambiguidades, o direito de seus clientes. Outras posturas, sem maior filiação epistêmica, faziam do axiologismo um modo de ultrapassar as barreiras ônticas da estrutura autoritária do sistema implantado pelo regime militar. Veja-se, por exemplo, a importância (até) de um positivista-axiologista como Recasens Siches, para mostrar as insuficiências do positivismo formal(ista). No fundo, qualquer um que se colocasse contra o formalismo legal era considerado aliado, desde que, teleologicamente, suas posições fossem contra o establishment.

E chegamos à democracia
E assim conquistou-se a democracia. E construímos a Constituição, que albergou a expressiva maioria de nossos pleitos. Na dúvida, emplacamos tudo no texto da Constituição. Afinal, se nem a lei se respeitava, quem sabe o novo regime pós/88 respeitaria o texto da Constituição? Veja-se que, já então, apostava-se em uma nova textualidade. Claro que não uma textualidade exegética, e, sim, uma nova, daquelas que fizeram com que, na Europa, os juristas progressistas que se forjaram no direito pós-bélico (pós 1945) passassem a apostar em um certo objetivismo do texto constitucional, aquilo que Elias Diaz chamará, depois, de “legalidade constitucional”.

Passados 25 anos, como estamos? Continuamos com o velho Código Penal, que tantas vítimas já fez e vem fazendo. Sim, esse mesmo CP que privilegia a propriedade em detrimento da vida e que pune com mais rigor os crimes interindividuais do que os crimes metaindividuais. O velho CPC, que sempre apostou no protagonismo judicial (ah, o dano causado pelo instrumentalismo processual!), depois de todo o estrago já causado, agora será substituído por um novo código, repristinando os velhos defeitos, com a agravante de querer a duras penas “commonlizar” nosso sistema — tido ainda como da família romano-germânica. O novo texto não conseguiu se livrar, por exemplo, do livre convencimento e dos embargos declaratórios, só para falar desses dois sintomas do “problema paradigmático” que aflige nosso direito. Já o velho Código de Processo Penal não tem jeito mesmo. Nos últimos tempos, a grande inovação (positiva) não vem sendo cumprida pelo Judiciário. Ou seja, o artigo 212, ao institucionalizar o sistema acusatório, acabou letra morta, com os juízes continuando a produzir prova, como no tempo de Abrantes. O projeto do novo CPP? Repete os mesmo erros do velho, como se o tempo não tivesse passado… Nem vou falar do Código Civil, paraíso das cláusulas abertas, espaço privilegiado da discricionariedade. Nem vou falar do Código do Consumidor, que “colocou” o call center dentro do Poder Judiciário (palavras do ministro Luis Salomão, do STJ). E o Direito Tributário? Virou o paraíso das invenções hermenêuticas. Tem até “ponderação de regras”, postulados, “normas-regras” (o que seria isso?), para dizer o mínimo.

A ressaca teorética
Isso tudo porque, promulgada a Constituição, passamos por uma ressaca. Ainda inseridos no antigo imaginário (formalismo versus “qualquer postura apta a derrotar esse inimigo comum), demoramos a perceber a necessidade de uma (nova) teoria das fontes, uma (nova) teoria da norma, uma nova teoria que desse conta da interpretação da Constituição e, finalmente, uma teoria da decisão, para impedir que, nesse novo patamar, passássemos a decidir de qualquer modo, ainda com o olho nos velhos dilemas.

Nesse contexto, importamos, de forma equivocada (porque descontextualizada), a jurisprudência dos valores, a teoria da argumentação jurídica (cuja vulgata possibilitou o uso indiscriminado da ponderação, essa doença contemporânea da interpretação) e o ativismo judicial de origem norte-americana (como se os ativismos de lá fossem “sentimentos constitucionais” e não meramente contingenciais em face das composições da US Supreme Court).

Resultado disso: uma aplicação do direito fragmentada, dando vazão aos “sentimentos pessoais” de cada julgador. No STF, não é difícil perceber isso, a partir da tese, repetida ad nauseam, de que “o juiz primeiro decide e depois busca o fundamento” ou que “a interpretação da lei é um ato de vontade”, como se isso fosse uma novidade e não fosse algo dito por Kelsen em contexto totalmente diferente (com efeitos colaterais desastrosos!).

Claro que o establishment deu uma resposta darwiniana a esse estado de natureza interpretativo, em que uma portaria ainda vale mais do que a Constituição e em que não é difícil ver decisões que, em um dia, negam a insignificância em R$ 80 e, dias depois, a deferem em valores superiores a R$ 1 mil. E qual foi ou tem sido a resposta? Súmulas vinculantes, repercussão geral, recursos repetitivos, “commonlização” do sistema e criação sistemática de mecanismos conhecidos como “jurisprudência defensiva”, como alertado recentemente por José Miguel Garcia Medina aqui mesmo na ConJur (clique aqui para ler), para evitar que a malta leve seus pleitos aos Tribunais Superiores.

A crise da Justiça é questão de “gestão”? Não! Juiz não é gestor!
Esse terreno é fértil para o surgimento de soluções no plano das neoteorias jurídicas, como por exemplo, apostar na “indústria” das efetividades quantitativas. Tudo para que se julgue teses e não mais causas. Tudo para que se julgue por atacado. Eis o campo para o florescimento das teorias da “gestão”. Solução mágica que “vende muito por aí”. Sim, a solução é a gestão dos processos. Há problemas na aplicação do Direito? Bingo: venha estudar gestão em pós-graduação. Tem agora até MBA. “Juiz deve ser gestor”, como tenho lido em muitos textos e folders propagandeando novos cursos de especialização e mestrados profissionalizantes.

Nesse sentido, li na Folha de S.Paulo do último dia 3 de agosto, que juízes devem investir em gestão para agilizar processos. O ilustre professor Pablo Cerdeira, da FGV, considera que a saída para o problema da morosidade da Justiça é os juízes aprenderem “gestão”. Como ninguém tinha pensado nisso antes? Para que estudar Teoria do Direito, saber jurisdição constitucional, a diferença entre regras e princípios, se a saída está em saber gerenciar os processos? Claro que as neoteorias que apostam na gestão não se restringem à “questão da agilização”. Na verdade, a onda é colocar a gestão para além disso, ou seja, a aposta na gestão vem assumindo um caráter substancial. E nisso mora o perigo. O meio se transforma em fim…

E isso “pega”. O CNJ gosta dessas coisas. E estipula metas. Tudo vira estatística. Ouvi falar que um juiz estadual precisa preencher todo mês nada menos que 13 relatórios! E os cursos de pós-graduação em gestão aproveitam para vender seu peixe. Ao invés de estudar Konrad Hesse e Gadamer, estudemos formas de fazer o processo ir de estagiário a estagiário, passando por um gerenciamento por temas. E como já há decisões padronizadas, basta que se gerencie esse modelo aplicativo. Por exemplo, como diz o professor Cerdeira, protagonista da matéria, na medida em que o TJ do Amazonas não alcançou as metas do CNJ, isso foi assim porque não adotou processos integralmente digitais. Pronto. Eis a solução para o Amazonas. E para todo o Brasil. Somando processos totalmente digitais com gestão, teremos o nirvana processual. Nas Faculdades, nem precisaremos mais estudar processos civil ou penal. Direitos fundamentais, nem falar… O lema é: “Não precisamos mais de um bom juiz: precisamos de um bom gestor”. Promotor de Justiça, defensor, procurador? Para quê? Basta um bom “juiz gestor”! E se ele tiver pós-graduação em gestão, melhor ainda. Estará treinado.

O que quero dizer é que não estou dispensando ou menosprezando a importância de que alguém faça uma otimização dos modos como se distribuem tarefas em um determinado gabinete. Ninguém pode trabalhar de forma desorganizada. Não sou ingênuo para não reconhecer a utilidade das novas tecnologias. Mas colocar esses instrumentos como um fim é, exatamente, deslocar a discussão da qualidade para a quantidade.

De há muito perdemos o sentido do que seja “uma decisão jurídica adequada”. E já vejo dissertações de mestrado e até teses de doutorado encantadas com esse deslocamento. No fundo, mal sabem os adeptos dessas neoteorias que esses modelos são meramente procedimentais. Kelsen era melhor que eles. A ele não importava a qualidade da decisões. Aliás, para ele juízes não faziam ciência. Faziam política jurídica. Então, para Kelsen — que ninguém mais estuda, porque o melhor é, pós-modernamente (sem que saiba o que é essa palavra), estudar coisas como “gestão” — não importa o acerto ou o erro ou o “justo ou o injusto”.[1] Cada juiz, em Kelsen, produz uma norma individual. Que vale, porque ele está autorizado para isso. E se o sistema não corrigir, vale até mesmo a sentença mais absurda. Qual é a diferença dessa cisão kelseniana (entre direito e ciência do direito) com a total procedimentalização das decisões judiciais?

Aliás, essa questão da ênfase na gestão assume ares de dramaticidade, se colocarmos a discussão face aos recentes problemas do Exame de Ordem da OAB. Pergunto: Como ficaria a tese da gestão aplicada à falta de qualidade das questões do Exame de Ordem? Ou a tese da gestão não se aplica ao “sistema” de elaboração das perguntas feitas à malta que quer ser advogado? Pergunto isso porque a mesma instituição que aplica o Exame de Ordem é a instituição que mais aposta na “questão da gestão”, como se pode ver na matéria assinada pelo professor Cerdeira.

Fico pensando na Medicina. O aluno, em vez de fazer uma tese sobre as complexidades de uma operação cardíaca, é instado pelo seu professor-orientador a fazer uma coisa mais gerencial, ou seja, escrever sobre o bisturi e sua eficácia (ou sobre a entrada e saída de pacientes da UTI). Capítulo primeiro, a história do aço; capítulo segundo, a sua invenção; capítulo terceiro, sua função; capítulo final (conclusão genial): “sem bisturi não dá para operar”. Bingo!

A crise do (e no) Direito decorre de falta de gestão ou falta de reflexão?
Em conversas com magistrados por todo o Brasil, os mais atentos já perceberam que esse discurso de juiz gestor é para anestesiá-los, para desfocar o real problema: a concentração de recursos nas cúpulas e o abandono, em especial, da Justiça de primeira instância. Na verdade, a Reforma do Judiciário só ajeitou o reboco do edifício. Não mexeu nas estruturas. E sem essa mexida não haverá resultados significativos. Transformar o juiz em gerente de entreposto judiciário, sem enfrentar a questão hermenêutica, é engodo. Serve para o exercício da vontade de poder das cúpulas e em benefício do estamento sempre próximo.

Não sei se tenho paciência para continuar a discutir “coisas republicanas”. Sinceramente, não sei. A cada semana, novas denúncias de uso de aviões, passagens etc. Até o vice-presidente da Câmara usa jatinhos do Projeto Bolsa FAB. E a desculpa: tem uma instrução normativa que autoriza (veja-se o modo como são usadas e criadas “cotas de passagens aéreas” para ministros do STJ). Ah, bom. Basta uma portaria ou uma resolução. Bingo! Feita por quem? E não há teoria das fontes? Não há controle de legalidade-constitucionalidade? Ainda é possível dizer que uma “norma” é legal, mas imoral? Para que serve o princípio da moralidade? Estamos, por acaso, na era em que direito e moral estão cindidos? Basta estar na lei que está “legal”? Então não serviu para nada a virada copernicana ocorrida no Direito após o segundo pós-guerra? Veja-se, pois, do que precisam saber nossos juízes e promotores… Estudar os grandes conceitos do direito. É disso que precisamos.

Claro: para que estudar isso? Parece que, segundo as neoteorias, melhor do que estudar a boa doutrina e aprofundar-se na reflexão jurídica é estudar a informática no Direito, novas formas de gerenciamento de processos, novas estatísticas e criar mecanismos para impedir a subida de recursos. É isso. Tudo se transforma em números: tenho um pé nas brasas e outro no gelo — na média, temperatura ideal… Por sinal, o brilhante Otavio Luiz Rodrigues Junior, na sua Coluna do dia 7 de agosto (clique aqui para ler), faz uma adequada crítica a uma espécie de neoteoria que está se proliferando no país, que ele chama de “onda da empiria”, isto é, feita por aqueles que pensam que só se pode falar do e sobre o Direito a partir de dados empírico-jurisprudenciais. No fundo, trata-se de um “gerenciamento de dados”, aproximando as teorias que apostam na gestão com aquilo que é o seu instrumento: dados numérico-estatísticos. Em meu novo Jurisdição Constitucional e Decisão Juridica (RT, 2013, páginas 290-295), mostro como determinada pesquisa sobre os julgamentos do STF pode ser lida inversamente, ou seja, com os mesmos números provo o contrário do que a autora queria demonstrar. Esse problema também invade a ciência política, que, em muitos casos, vem adotando a tática de check list para tentar demonstrar determinadas teses (ou projeções).

Da série “há algo mais nos céus do que os aviões de carreira”, poderia perguntar se seria um problema de “gestão” ou “falta de gestão” a fragilidade com que foram aplicadas, no julgamento da Ação Penal 470, teses como do domínio do fato ou “o princípio da livre apreciação da prova”? Afinal, a crise do Direito é de que ordem?

Quando um banqueiro — que dá um “cano” de mais de R$ 3 bilhões — viaja para o exterior, com autorização judicial e vai esquiar estroinando da malta, isso é um problema de gestão ou um problema de decisão (ou decisão equivocada)? Juiz deve aprender a gerenciar processos ou a julgá-los de acordo com o direito? Eis a questão! Ainda: os mais de 8 mil homicídios por ano que não são sequer investigados são um problema de gestão ou um problema de falta de estrutura, desvirtuamento de função e incompetência individual? A humilhação daquele estagiário e o consequente arquivamento do feito é um problema de gestão?

Esse é o nosso país. Não estou, por óbvio, colocando “a culpa” da crise do e no Direito em quem aposta na “gestão”. É claro que não. O que quero dizer é que não devemos crer que, no meio de um grande tiroteio que é a crise da operacionalidade do Direito, apareça alguém com uma solução de caráter procedimental e queira “acabar com a discussão”. Se gestão resolvesse, a prova da Ordem não seria desse nível. Então, por favor, não me tirem de bobo com soluções mágicas. Perguntemos por aí como anda a operacionalidade do Direito…

O que temos de fazer é estudar. Mudar os cursos jurídicos. Parar de ensinar conceito prêt-à-porterprêt-à-penser, prêt-à-parler. Chega de simplificar livros. Paremos com a ficção. O maior exemplo do fracasso disso tudo em terrae brasilis é o último exame de Ordem, em que, em um exemplo de furto, apareceu um comprador, paraguaio, terceiro de boa-fé (sic) e, em uma perseguição ininterrupta, a ladra teve tempo para esconder o carro cleptado, indo depois até a fronteira do Paraguai, para vender o carro… Nada mais precisa ser dito depois disso.

A crise em três dimensões
Uma palavra final: há muito tempo, li um texto do Diogo Figueiredo Moreira Neto, em que ele mostrava que uma crise deve ser analisada sob três âmbitos: estrutural, funcional e individual. Vamos trazer isso para o caos do trânsito. Não adianta construir rodovias ou abrir novas ruas, se não cuidarmos da função, isto é, semáforos inteligentes, passarelas, túneis etc; mas também não adianta tratarmos da estrutura e da função, se tivermos péssimos motoristas…

Isto é: não adianta abrir novos tribunais, contratar milhares de estagiários, novos computadores, se não tratarmos do problema da funcionalidade do processo. Mas, por favor, de nada adianta arrumarmos a estrutura e a função, se não tivermos bons “operadores” desse sistema. E isso, lamento dizer àqueles que apostam em “formulismos”, depende da ciência jurídica. Depende de um bom ensino jurídico. De bons concursos. De provas do exame da Ordem sem pegadinhas. Depende, pois, da reflexão. Depende da Teoria do Direito, da Constituição, do Processo… E não de “gestão”. Vamos parar com esse neodiscurso “eficientista”. Vejam até onde ele está nos levando. Juiz não é gerente. Juiz é julgador! Tem de aprender a decidir. E bem. Quem faz mapa é cartógrafo. Quem faz estatística é matemático (ou algo do gênero). Juiz tem de saber processo. Teoria. Tem de saber o que é isto: o Direito. É isso!


[1] Na verdade, para que estudar Kelsen, se ele era um positivista exegético, não? É o que se ensina por aí. Diz-se que Kelsen era um positivista porque ele queria que o direito fosse aplicado de forma pura… Não é de rir?

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