Embargos Culturais

Os Custos dos Direitos, parte I

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  • é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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7 de abril de 2013, 8h05

Os Custos dos Direitos — Por que a liberdade depende dos tributos (The Cost of Rights — Why liberty depend on Taxes)[1], de Stephen Holmes e Cass Sunstein é provavelmente um dos mais importantes livros de Direito e políticas públicas publicado nos Estados Unidos no fim do século passado. Stephen Holmes leciona em Nova Iorque (New York University Law School) e Cass Sunstein é professor em Chicago (University of Chicago). São autores de primeira grandeza, gozam de muito respeito internacional, tem muito a nos ensinar. Transformam o familiar em estranho.

Ainda que seus autores tenham derivado e avançado para outros campos temáticos[2], persiste, como livro de referência, esse interessantíssimo texto. Holmes e Sunstein influenciaram vários pesquisadores brasileiros, a exemplo de Cristiano Carvalho, Paulo Caliendo, Flávio Galdino e Gustavo Amaral. Tanto quanto sei, não há, ainda, tradução para o português dessa valiosa obra.

Invocam, ainda que indiretamente, o tema da reserva do possível, do ponto de vista estruturalmente orçamentário, assunto estudado por autores muito importantes no Brasil, a exemplo de Fernando Facury Scaff. A matéria também foi discutida por nosso Supremo Tribunal Federal, que no caso centrou-se no mote da força normativa da constituição, de feição alemã, Die Normative Kraft der Verfassung, título de obra de Konrad Hesse, traduzida para o português pelo ministro Gilmar Mendes e publicada em Porto Alegre por Sérgio Antonio Fabris.

Para Holmes e Sunstein “direitos são serviços públicos que o Governo presta em troca de tributos”[3]. O livro é dividido em sete partes. A introdução sumariza observações relativas a algum senso comum, no sentido de que titularidade e fruição de direitos são realidades convergentes (Common sense about rights). No primeiro capítulo do livro os autores argumentam que um Estado sem recursos não teria como proteger direitos (Why a penniless State cannot protect rights). A parte seguinte trata da impossibilidade que direitos sejam absolutos (Why rights cannot be absolute). Em seguida os autores discorrem sobre o fato de que direitos demandam responsabilidades (Why rights entail responsabilities). Na quarta parte os autores exploram o tema da compreensão dos direitos como barganhas (Understanding rights as bargains). A sessão conclusiva explora a natureza pública das liberdades privadas (The public character of private freedoms). Um apêndice, com indicativos dos custos de alguns direitos nos Estados Unidos, dá fim a este portentoso livro. No presente ensaio cuidarei, tão somente, da parte introdutória.

Sunstein e Holmes começam com referência a incêndio que ocorrera no estado de Nova York, em 26 de agosto de 1995. Ao que consta, fora o pior incêndio acontecido naquela unidade federada norte-americana, na segunda metade do século XX. O combate ao sinistro custou quase US$ 3 milhões ao contribuinte norte-americano. Não se registrou nenhum óbito[4].

Sem que se tenha a intervenção do Estado, argumentam os autores, o combate àquele incêndio seria impossível. Com alguma ironia, lembraram-se de Ronald Reagan, para quem “o governo não era a solução, era o problema”[5].De igual modo, criticaram os libertários, pensadores contemporâneos que refutam a presença do Estado, defendendo que este último deveria intervir o mínimo possível na vida das pessoas[6].

Charles Murray[7] e David Boaz[8] são os pensadores libertários criticados por Holmes e Sunstein. Murray e Boaz publicaram vários textos de combate a governos intervencionistas, bem como militam em think thanks norte-americanos. Para Boaz e Murray o grande problema dos Estados Unidos consiste no excesso de atividades governamentais. Defendem governos mínimos, com poucas responsabilidades. Entendem que assim, entre outros, poder-se-ia diminuir a carga fiscal.

Holmes e Sunstein observam que em 1996 o contribuinte norte-americano teria gasto mais de US$ 11 milhões para proteção de propriedade privada, o que se faz mediante ajuda direta governamental a pessoas atingidas por desastres, ou ainda mediante o pagamento de seguros e alívios fiscais[9].

Argumentam também que, ainda que os índices criminais sejam relativamente altos nos Estados Unidos, os norte-americanos vivem de modo relativamente seguro. Essa segurança é financiada pelo contribuinte: paga-se para se viver em paz. Assim, continuam Holmes e Sunstein, “os norte-americanos parecem que se esqueceram facilmente que direitos e liberdades individuais dependem fundamentalmente de uma vigorosa ação estatal”[10]. Acentuam o papel e a importância do Estado, na proteção dos direitos e liberdades.

O argumento central do livro é o de que “direitos custam dinheiro”[11]; é que “direitos não podem ser protegidos sem apoio e fundos públicos”[12]. Holmes e Sunstein, para efeitos do livro aqui estudado, tratam dos custos enquanto custos orçamentários e de direitos, como “interesses que podem ser protegidos por indivíduos ou grupos mediante o uso de instrumentos governamentais”[13]. Direitos somente existiriam quando efetivamente passíveis de proteção.

Para Holmes e Sunstein direitos podem ser definidos de dois modos: de uma perspectiva moral ou de uma percepção descritiva. Esta última é característica do positivismo jurídico. Do ponto de vista moral os direitos são definidos a partir do que o ser humano seria titular, pelo simples fato de ser humano. É uma compreensão metafísica, conceitual, e não mero jogo de palavras.

A tradição descritiva, por outro lado, remonta a Jeremy Bentham, Oliver Wendell Holmes Jr., Hans Kelsen e H. L. A. Hart, autores que comungam a ideia de que o direito não precisa ser justificado. Deve-se apenas explicar como os arranjos institucionais de fato funcionam[14]. Essa linha é empírica, não indaga causas, apenas persegue resultados. Não é ontológica, isto é, não se resume a definir naturezas jurídicas.

Nesse sentido pragmático, prosseguem Holmes e Sunstein, “um interesse é qualificado como um direito quando um sistema jurídico efetivo o reconhece como tal, mediante o uso de recursos coletivos para defendê-lo”[15]. Direitos, segundo Holmes e Sunstein, têm dentes, isto é, não são inofensivos ou inocentes. Por isso, na medida em que não garantidos por arranjos institucionais, jurídicos e políticos — inclusive pela força — os diretos morais seriam por definição desprovidos de qualquer validade fática: isto é, não tem dentes[16]. Pode-se motejar que direitos desprovidos de eficácia ensejariam mero banguelismo jurídico…

Ainda que se imponham obrigações morais para toda a humanidade, direitos que se sedimentam tão somente em premissas conceituais não são obrigações legais para pessoas que vivam em território específico. Tais direitos não existiriam, por absoluta falta de reconhecimento[17].

No entanto, temperam Holmes e Sunstein, direitos de justificativa moral e direitos de explicação descritiva não necessariamente seriam opostos ou excludentes. O que os diferencia, entre outros, seria a agenda de seus defensores. Para um moralista, não haveria direito de poluir. Para um positivista, por outro lado, pode um interessado comprar esse direito[18].  É o que ocorre, por exemplo, no comércio de cessão de créditos de carbono. Moralistas e positivistas aparentemente se oporiam, no entanto, apenas porque estariam respondendo questões diferentes[19].

O tema dos custos dos direitos é assunto descritivo e não de filosofia moral. Direitos de fundo moral, todavia, decorrem de custos orçamentários apenas quando juridicamente reconhecidos[20]. Além do que, prosseguem, “direitos são exigidos e obtidos em tribunais”[21]. Não havendo o reconhecimento de um direito, por agência governamental ou tribunal, não se pode considerar a prerrogativa efetivamente um direito, no contexto da discussão orçamentária[22].

Insistem os autores aqui estudados que um “direito existe, tão somente, quando pode se revelar seus custos orçamentários”[23]. Esse critério pode redefinir nossa compreensão tradicional de direitos objetivos e subjetivos. O poder de invocar a aplicação de uma norma seria aferido pelos custos orçamentários que a aplicação da regra possa exigir. A alocação de recursos, ao fim, é o que permitiria a integração entre a regra jurídica e seu titular.

Holmes e Sunstein argumentam também que há diferenças entre valor “liberdade” e o valor “da liberdade”. Isto é, liberdades de nada valem se o interessado não tenha recursos para torná-las efetivas[24]. Direitos individuais, assim, seriam bens públicos. Os autores ilustram o argumento com a atuação dos advogados da ACLU (American Civil Liberties Union, ou Sindicato Norte-Americano das Liberdades Civis) que cobram honorários abaixo do que demandariam em outras situações, quando atuam na defesa de direitos fundamentais.

Nesse caso, tem-se um custo privado, isto é, o advogado abdicou do valor de seus ganhos. Por outro lado, a ACLU é isenta de impostos. Por isso, sua atividade é financiada parcialmente com dinheiro público[25]. Imunidade e isenção fiscais, não nos esqueçamos, são suportadas por toda comunidade, e por isso devem ser deferidas com cautela.

Argumentam também que os direitos têm custos sociais além dos custos orçamentários. Exemplificam a premissa com as medidas que se tomam para proteger direitos de acusados, em suposto desfavor do bem estar do cidadão que não teria contas para acertar com o Estado policial[26]. Premissa problemática, à luz de nossas concepções de Justiça.

No entanto, alguns direitos, ainda que custosos para o contribuinte, de alguma forma, podem ser autofinanciados. O direito à educação, por exemplo, na medida em que custeado pelo Estado, também projeta ganhos para toda a população. Países que concedem imunidades e isenções para gastos com educação, nesse sentido, poderiam exemplificar o modelo. Holmes e Sunstein ilustram o argumento com os gastos com programas de proteção de mulheres vítimas de violência doméstica: as beneficiárias desses programas podem ser incorporadas e assimiladas pelas forças produtivas[27]. Tem-se um ganho social.

Todos os direitos demandam financiamento. Holmes e Sunstein sustentam esse argumento com a 3ª Emenda à Constituição norte-americana[28]. Esta emenda desonerou o cidadão norte-americano de abrigar soldados em sua casa, ainda no século XVIII. Como consequência, o contribuinte daquele país precisou de financiar barracas e quartéis[29]. É difícil compreendermos essa nefasta lógica, porém, para Holmes e Sunstein, um sistema que escrupulosamente protegesse direitos de suspeitos de práticas de crimes tornaria mais difícil a prisão destes e, consequentemente, a prevenção de crimes[30].

Holmes e Sunstein reconhecem problema metodológico que se deve enfrentar. Referem-se à dificuldade que se tem no cálculo dos custos dos direitos que o Governo se obriga a garantir. Não se pode saber, por exemplo, se despesas de treinamento de policiais se revertem, especificamente, para a humanização da atividade policial ou para a segurança geral da população[31].

Reconhecem, porém, que, embora seja um truísmo a concepção de que direitos tenham custos, pode-se invocar malicioso paradoxo: o cálculo dos custos dos direitos pode ameaçar a realização dos direitos cujos custos são calculados. Resumidamente, o reconhecimento dos custos dos direitos poderia explicitar que em troca de direitos deveríamos necessariamente pagar alguma coisa[32]. Nós nos recusamos, no entanto, a precificar tudo que nos cerca.

O direito ao júri demanda custos. De igual modo, e com mais intensidade, compensações que são pagas por desapropriação. Holmes e Sunstein argumentam que quando alguém chama a polícia está se impondo que a comunidade contribua para o pagamento de demanda individual[33].

A judicialização de boa parte das discussões públicas faz com juízes decidam exatamente onde alocar o dinheiro dos contribuintes. Por isso, quando magistrados insistem numa conciliação, reconhecem que buscam economizar para o Estado[34]. É essa a lógica que rege o modelo conciliatório norte-americano.

A 11ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos[35], que proíbe que se ajuízem ações contra unidades da federação em cortes federais é reconhecimento institucional de que se deve preocupar com o direito irrestrito de se litigar contra o governo[36]. E ainda, quando um magistrado determina a ampliação de instalações prisionais, firme no argumento de que a superpopulação carcerária é violação à 8ª Emenda à Constituição norte-americana (que proíbe punições cruéis) tem-se como consequência que o Judiciário está enviando a conta da decisão para o contribuinte[37].

Holmes e Sunstein invocam que setores do Judiciário são orgulhosos de certo insulamento político, no sentido de que guiam suas decisões apenas pela razão[38]. Porém, com poucas informações (porque informações também têm custos) magistrados decidem sobre alocação de recursos, com o pálio da imunidade eleitoral (não são eleitos), num contexto da mais absoluta responsabilidade no que se refere à alocação ótima de escassos recursos públicos[39]. Por isso, muitas vezes, a questão não consiste tão somente em se saber quanto custam os direitos. Substancializa-se, também, em se determinar quem é que decide pela alocação dos recursos[40].

Holmes e Sunstein surpreendem porque nos afastam do lugar comum, da lógica serafínica de que direitos dependem tão só de uma determinação legal e do voluntarismo de alguns. Holmes e Sunstein são realistas até a medula. Não discutem aspartame jurídico, não se perdem em intermináveis questões de regras, princípios e proibições imaginárias de retrocesso onde nunca houve avanço real. O Direito não é um toque de Midas que nos confere a redenção.


[1] Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, The Cost of Rights- Why Liberty Depends on Taxes, New York and London: W. M. Norton, 1999.
[2] Conferir interessante estudo de Stephen Holmes, entre outros, sobre Carl Schmitt e Roberto Mangabeira Unger, a propósito do anti-liberalismo, The Anatomy of Antiliberalism, Cambridge: Harvard University Press, 1996. Quanto a Cass Sunstein, entre outros, Free Markets and Social Justice, New York: Oxford University Press, 1997.
[3] Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit. p. 151.
[4] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p. 13.
[5] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit, loc. cit.
[6] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., loc.cit.
[7] Autor, entre outros, de A Curva de Bell, discutidíssimo livro que, entre outros assuntos, defende a existência de uma elite cognitiva, identificada pela inteligência de seus membros, e pelo papel e liderança que exerceriam no meio social e político.
[8] Presidente do Instituto Cato, conhecida organização norte-americana defensora do Governo mínimo.
[9] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., loc. cit.
[10] Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p. 14.
[11] Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p. 15.
[12] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., loc.cit.
[13] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p. 16.
[14] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., loc.cit.
[15] Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p. 17.
[16] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., loc.cit.
[17] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., loc.cit.
[18] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p. 18.
[19] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., loc.cit.
[20] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., loc.cit.
[21] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p. 19.
[22] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., loc.cit.
[23] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., loc.cit.
[24] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p. 20.
[25] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p. 21.
[26] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p. 22.
[27] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., loc. cit.
[28]Nenhum soldado poderá, em tempo de paz, ser aquartelado em qualquer casa, sem o consentimento do proprietário, nem em tempo de guerra, mas de forma a ser prescrita pela lei”.
[29] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p. 23.
[30] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., loc. cit.
[31] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p. 24.
[32] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., loc. cit.
[33] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p. 26.
[34] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., loc.cit.
[35] “O poder judiciário dos Estados Unidos não se entenderá a qualquer demanda baseada na lei ou na equidade, iniciada ou processada contra um dos Estados Unidos por cidadãos de outro Estado, ou por cidadãos ou súditos de qualquer potência estrangeira”.
[36] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p. 27.
[37] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p. 28.
[38] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p. 29.
[39] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p. 39.
[40] Cf. Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, cit., p. 31.

 

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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