Embargos Culturais

Monotonia afastou Eça de Queirós do Direito

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

11 de novembro de 2012, 9h00

Caricatura: Arnaldo Godoy - Colunista [Spacca]O escritor português José Maria Eça de Queirós (1845-1900), dono de vigorosa prosa realista, foi um aluno desinteressado na faculdade de Direito. Os biógrafos do escritor português enfatizam o desencanto que o mundo jurídico proporcionou sobre Eça, desde os meios acadêmicos. Assim escreveu Luís Viana Filho:

“A Universidade, não fosse o espírito de rebeldia que a dominava, teria sido para Eça de Queirós uma decepção. Tudo lhe pareceu velho, obsoleto, alheio ao novo mundo sonhado pela juventude que desabrochava sem peias do catolicismo e do romantismo.”[1]

Essa decepção decorria diretamente dos professores distantes, sonolentos, sem iniciativa. Continua Luís Viana Filho, citando o próprio Eça:

“Professores dormitavam sobre as ‘sebentas’, que mal resumiam livros importados da França. E todavia – escreveu – Coimbra fervilhava de lentes que decerto tinham ócios. Havia-os no meu tempo inumeráveis, moços e vetustos, ajanotados e sórdidos, castos e debochados, e todos decerto tinham ócios, mas empregavam-nos na política, no amanho das suas terras, no bilhar, na doçura da família, no trabalho de dominar pelo terror o pobre estudante encolhido na sua batina… A descrição revela desapreço. E os lentes, ele os tinha ‘como animais inferiores’ e, ‘além disso, irracionais’.”[2]

O excerto sugere o impacto que a faculdade de Direito exercera sobre Eça, que entrara no curso com dezesseis anos de idade[3], e que denunciaria alguma vulgaridade pedante e viciosa, na figura do Conselheiro Acácio[4]. O conselheiro “era alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado num colarinho direito. O rosto aguçado no queixo ia-se alargando até à calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto; tingia os cabelos que duma orelha à outra lhe faziam colar por trás da nuca – e aquele preto lustroso dava, pelo contraste, mais brilho à calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, caído aos cantos da boca. Era muito pálido; nunca tirava as lunetas do queixo, e as orelhas grandes muito despegadas do crânio.”[5]

Além da descrição caricata, Eça imaginava um formalismo desmedido, uma retórica vazia, um pedantismo oco. Assim:

“Fora, outrora, Diretor Geral do Ministério do Reino, e sempre que dizia – El-Rei! – erguia-se um pouco na cadeira. Os seus gestos eram medidos, mesmo a tomar rapé. Nunca usava palavras triviais; não dizia vomitar, fazia gesto indicativo e empregava restituir. Dizia sempre ‘o nosso Garrett, o nosso Herculano’. Citava muito. Era autor. E sem família, num terceiro andar da Rua do Ferregial, amancebado com a criada, ocupava-se de economia política; tinha composto os Elementos Genéricos da Ciência da Riqueza e sua Distribuição Segundo os Melhores Autores, e como subtítulo Leituras do Serão! Havia apenas meses publicara a Relação de Todos os Ministros de Estado desde o Grande Marquês de Pombal até Nossos dias, com Datas Cuidadosamente Averiguadas de seus Nascimentos e Óbitos.”[6]

A hostilidade de Eça para com o pedantismo acadêmico vinha de longe, de seus tempos de aluno em Coimbra. Outro biógrafo de Eça, Vianna Moog, deixou fortíssima impressão, a propósito do desencanto do grande escritor português para com o Direito, desde o tempo da Academia. Escreveu Vianna Moog:

“Logo nos primeiros tempos a Universidade constitui para ele uma decepção. Nutria a ilusão de que Coimbra, a famosa e tradicional Coimbra, deveria ser um Areópago de saber. Esperava encontrar nos lentes verdadeiros cimos de sabedoria, a dardejar do alto da cátedra, lampejos de luz, torrentes de revelações por sobre as cabeças deslumbradas dos alunos. E, no entanto, que encontrava? Cavalheiros solenes e enfáticos, monótonos e cansativos, a encher as horas de tédio, recitando o conteúdo das sebentas, até que a batida da cabra às seis da tarde no alto da torre, desse o sinal de libertação, com a mesma indiferença com que marcava, inexorável, pela manhã, a hora odiosa da entrada em aula. Dos alunos não se exigia que tivessem idéias próprias, senão apenas que andassem em dia com os textos daqueles papéis litografados, que passavam de geração em geração, de pais a filhos, e não raro de avós a netos, sem alterações e sem acréscimos, até que o extremo uso os reduzisse ao extremo desgaste. Eram então atirados a um canto, como esses velhos brigues a que os marinheiros têm pena de deitar fogo, depois de haverem servido para grandes e arrojadas travessias.”[7]

Vianna Moog, ao biografar Eça, captou aversão para com as classes de Coimbra. E continua, com impressionante virulência:

“Coisa horrível exigir-se de um pobre cérebro que guarde artigo por artigo, parágrafo por parágrafo, palavra por palavra, capítulos inteiros das sebentas!”[8]

As disciplinas estudadas também foram objeto da crítica, agora de Vianna Moog. Por exemplo, o Direito Romano. Escreveu o biógrafo de Eça:

“E que enfadonho o Direito Romano, essa invenção de agiotas desocupados, que parecia não haverem tido nunca outra preocupação, senão arrendar bem suas terras e passar o resto do dia reclinados em seus triclínios a imaginar as máximas que melhor lhes assegurassem os arrendamentos! Que outra coisa era afinal o dormientibus non succurrit jus dos romanos, mais do que a legitimação da apropriação indébita, do interesse dos fortes contra os fracos, das aves de rapina, que não dormem, contra os brandos, os tímidos e indiferentes? Positivamente, não era isso que Eça esperava de Coimbra.”[9]

O método, para o biógrafo de Eça, desestimulava o aluno com ideias próprias. Vianna Moog escreveu:

“Eça estava disposto a esperar, embora já perfeitamente capacitado de que por esse método de decorar todas as noites, à luz do azeite, a odiosa lição das sebentas, nunca chegaria a distinguir juridicamente o justo do injusto.”[10]

A distinção jurídica do justo e do injusto identifica o ânimo que oxigenava o estudante de Direito e que, na crítica de Vianna Moog, suscitaria as primeiras e mais marcantes desilusões no escrito. Sigo com Vianna Moog:

“Ao invés de conservar-se nas primeiras filas, entre os candidatos a urso, nome dado aos que conseguiam as melhores classificações no fim do ano, vai aos poucos recuando para as últimas bancadas, para o lado das coelheiras, lugar preferido pelos que preenchiam os vagares da aula, lendo romances e folhetins. Outros jogavam damas em tabuleiros pintados na capa dos compêndios, confiados na vigilância do companheiro escalado para dar aviso ao que viesse a ser chamado de repente, e para alcançar o livro ou a sebenta abertos na página da lição. Na coelheira é que havia espírito de solidariedade, camaradagem, dedicações. Era o reduto dos cábulas, gente absolutamente desafrontada da superioridade dos lentes e que consideravam o Compêndio de Filosofia Racional do doutor Dória a coisa que mais cérebros inutilizava no país. Na coelheira é que se aprendia a arte incomparável de assoprar e de ouvir, de falar sem saber do que se tratava. Graças a esta arte, feita para o seu ouvido apurado, Eça passou logo para a classe dos músicos.”[11]

A imagem de Vianna Moog é confirmada por João Gaspar Simões, em estudo crítico-biográfico encartado em edição da obra completa de Eça de Queirós:

“Chegara ao último ano da faculdade de Direito. Estudante medíocre, frequentador da ‘coelheira’, ou seja, da galeria dos cábulas, vagabundo das ruas luarentas da velha Coimbra, pouco convive com a flor da inteligência acadêmica.”[12]

Ainda, outro biógrafo de Eça de Queirós, José Maria Bello, captou o novo bacharel, demonstrando o desinteresse do escritor português para com a vida do foro. Redigiu José Maria Bello:

“’Bacharel formado’ de Coimbra, instalou-se Eça de Queirós na casa da família em Lisboa. Rápido treino como advogado abrir-lhe-ia o ingresso na magistratura, continuando, assim, a tradição paterna. Suporia sinceramente algum tempo que, se tinha uma profissão, devia exercê-la. (…) Mas, evidentemente Eça tinha para advogado ou magistrado as incompatibilidades naturais do homem de letras.”[13]

José Maria Bello marcou com um “evidentemente” aquilo que reputava como “incompatibilidades naturais do homem de letras” para com a profissão de magistrado ou advogado. Verifica-se, na passagem, uma antinomia entre Literatura e Direito.

A frase de José Maria Bello é insinuadora da cisão entre a arte literária e a arte do Direito, a tomarmos em conta a passagem de Celso, que imputava ao Direito a arte do bom e do justo. O biógrafo de Eça de Queirós sugeriu que o homem de letras seria incompatível com a magistratura e com a advocacia e, nesse sentido, a referência assinala o desencanto entre Literatura e Direito. Retoma-se Vianna Moog e reproduzo sua passagem a propósito da colação de grau de Eça de Queirós:

“Ao cabo de cinco anos de Coimbra, Eça, com a sua carta de Bacharel num canudo, trepava, enfim, para o alto da diligência e dizia adeus às margens do Mondego. Conquistara o título de Bacharel quase da mesma forma por que outros adquirem títulos de propriedade: por usucapião. A diferença talvez estivesse apenas na contagem dos anos.”[14]

A invocação da usucapião, enquanto modalidade de prescrição aquisitiva, justificadora do acesso à propriedade, desde a tradição romanística, sugere o decurso do tempo. A impressão que Vianna Moog nos passa é a de que Eça de Queirós simplesmente deixara o tempo passar, qual um turista temporal e cultural. E continua Vianna Moog, esposando o mesmo ponto de vista:

“O primeiro lugar que apareceu ao bacharel Eça de Queirós, depois de sua chegada a Lisboa, foi o de auxiliar na banca de advocacia de um amigo de seu pai. Entrou no escritório para ir praticando. Mais tarde então escolheria definitivamente entre a advocacia e a magistratura.”[15]

Talvez Eça pretendesse dar rumo à vida, refundindo os vagos conhecimentos obtidos em Coimbra, com os melhores propósitos, exercendo a profissão com afeição, com sinceridade, com zelo, com ambição. Mas veio o desencanto. E é necessário mais uma citação de Vianna Moog. Vejamos:

“Em poucos meses o jovem bacharel estava farto do escritório. Decididamente, não nascera para acompanhar o andamento de processos no Palácio da Justiça em Lisboa e para suportar a Boa Hora. Aquilo parecia mais uma feira do que outra coisa. Um temperamento sensível como o seu não podia tolerar sem irritação esse ambiente de meirinhos, solicitadores, escrivães, de testemunhas profissionais, do vozerio, confusão e tumulto. Para lá chegar, tinha de subir a Rua Nova do Almada, vencendo uma rampa atravancada de vadios e mulheres públicas, frequentadores infalíveis de audiências. De entristecer e provocar náuseas esse templo da Justiça em Lisboa! Átrios com rodapés de azulejos sujos e apagados, mobílias gastas de água-furtada. Em tudo um fartum de lupanar e de ralé. Decididamente não nascera para isso. Demais, valeria a pena suportar tudo aquilo, sob as constantes descargas elétricas de seus nervos, para trabalhar sob a tutela de outro, ainda que se tratasse de um grande causídico? Não, não valia. Deste jeito jamais conquistaria um lugar ao sol. Tudo quanto surgisse de brilhante e bem feito atribuir-se-ia ao chefe do escritório, enquanto os erros e as razões mal fundamentadas e as causas perdidas haviam de correr por sua conta. Mesmo quando não ia à Boa Hora, em busca de autos e processos, tudo lhe parecia na profissão terrivelmente prosaico. Mantinha-se horas pregado à escrivaninha a alisar os fios de bigode no canto da boca e a limpar suas penas de pato, vendo desfilar por sua frente, diariamente, os mais estranhos tipos, os que ele mais gostava de observar eram os advogados notáveis que faziam barulho na tribuna, e cujo vasto saber toda a gente proclamava. Não havia jeito de conformar-se com esse gênero de sabedoria. (…) No geral eram tipos prósperos: repetiam banalidades convencionais em tom enfático. Verdadeiros pastores de lugares-comuns, não davam a ninguém o trabalho de pensar. Mas fosse ele pôr em dúvida o talento de tão conspícuas pessoas! Não adiantava investir contra elas; inútil fazer restrições às reputações consagradas. Disto tudo Eça tirava a conclusão de que realmente não pagava o esforço levar toda uma vida de estudo e meditação para conseguir afinal a fama daquela gente que não lhe inspirava nenhuma admiração, por quem nutria absoluto desprezo. Por tal preço, era melhor desistir de ser um grande homem.”[16]

Na composição de uma imaginária galeria de literatos desencantados com o Direito, Eça de Queirós ocuparia espaço relevante.


[1] Luís Viana Filho, A Vida de Eça de Queirós, pág. 22.

[2] Luís Viana Filho, A Vida de Eça de Queirós, pág. 22.

[3] José de Nicola, Literatura Portuguesa, da Idade Média a Fernando Pessoa, pág. 144.

[4] Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa, pág. 233.

[5] Eça de Queirós, O Primo Basílio, pág. 41.

[6] Eça de Queirós, O Primo Basílio, pág. 41 e 42.

[7] Vianna Moog, Eça de Queirós e o Século XIX, pág. 17.

[8] Vianna Moog, Eça de Queirós e o Século XIX, pág. 17.

[9] Vianna Moog, Eça de Queirós e o Século XIX, pág. 17.

[10] Vianna Moog, Eça de Queirós e o Século XIX, pág. 18.

[11] Vianna Moog, Eça de Queirós e o Século XIX, pág. 18 e 19.

[12] João Gaspar Simões, Estudo Crítico Biográfico, Obra Completa de Eça de Queirós, vol.I, pág. 14.

[13] José Maria Bello, Retrato de Eça de Queirós, pág. 17.

[14] Vianna Moog, Eça de Queirós e o Século XIX, pág. 64.

[15] Vianna Moog, Eça de Queiróz e o Século XIX, pág. 73.

[16] Vianna Moog, Eça de Queiróz e o Século XIX, pág. 74 e 75.

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