Imunidade de jurisdição

A decisão da Corte de Haia no caso Alemanha x Itália

Autor

  • Carmen Tiburcio

    é mestre e doutora em Direito pela University of Virginia (EUA) professora associada da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da UGF e consultora da área internacional de Barroso Fontelles Barcellos Mendonça & Associados – Escritório de Advocacia sucessor de Luís Roberto Barroso & Associados.

19 de março de 2012, 11h43

É polêmica a possibilidade de um Estado estrangeiro ser acionado por particulares perante o Poder Judiciário local, em razão do conceito de soberania e igualdade dos Estados. Em tese, o Judiciário de um Estado não poderia submeter a julgamento outro Estado igualmente soberano. No mundo jurídico, essa regra foi denominada imunidade de jurisdição.

Com o passar do tempo a imunidade dos Estados passou a ser questionada em virtude de duas razões: a participação cada vez maior dos Estados, e das suas subdivisões políticas e administrativas, em atividades econômicas internacionais e o reconhecimento dos direitos humanos na esfera internacional. A imunidade dos Estados passou, então, por progressiva flexibilização. Os Estados só seriam imunes ao Judiciário de outros países nos casos em que praticassem atos de império, decorrentes da soberania estatal. Todavia, para atos de gestão, aqueles que particulares também poderiam praticar, não haveria mais imunidade e os Estados estrangeiros poderiam ser levados a juízo por particulares locais.

Nada obstante, a aplicação da distinção entre atos de império e de gestão mostrou-se bastante complexa. O ato poderia ser de império pela sua finalidade e não pela sua natureza. Portanto, persistiu a polêmica na aplicação prática da distinção.

Para resolver a questão, alguns países promulgaram leis específicas sobre imunidade dos Estados estrangeiros, o que ocorreu nos Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Canadá. Nestes países prevalece a regra da imunidade, salvo nas hipóteses expressamente descritas na legislação. Outros países não promulgaram leis a respeito, seguindo a orientação do costume internacional e da jurisprudência local. É o caso do Brasil.

No direito convencional, destacam-se a Convenção Européia sobre Imunidade, de 1972, e a Convenção da ONU sobre Imunidade do Estado e de seus Bens, de 2004, esta ainda não em vigor.

As leis supramencionadas bem como as convenções apresentam a prática de ato ilícito no território local como uma das exceções à regra da imunidade. Tradicionalmente tem sido aplicada a casos de acidentes de trânsito, mas nada impede que a apliquem a outras hipóteses, o que já ocorreu.

Nos Estados Unidos, vários casos envolvendo ilícitos cometidos por Estados estrangeiros além dos oriundos de acidentes rodoviários já foram apreciados. O mais famoso foi o caso Letelier, em 1980. A família do ex-embaixador chileno, membro do governo de Salvador Allende, ajuizou nos Estados Unidos uma ação contra o Chile, que foi julgada procedente. Posteriormente, admitiu-se a propositura de uma ação contra a Santa Sé por responsabilidade em virtude da prática de abuso sexual por um padre em Portland, em Oregon.

Na Grécia, vítimas do massacre ocorrido na cidade grega de Distomo ajuizaram ação reparatória contra a Alemanha, também julgada procedente, mas que foi levada à execução na Itália. Em caso semelhante, na Itália, em 2004 a Corte de Cassação italiana decidiu que não havia imunidade do Estado alemão. Nesta hipótese, um italiano, Luigi Ferrini, fora levado para um campo de concentração em agosto de 1944. O italiano ajuizou ação indenizatória contra a Alemanha e a Corte de Cassação concluiu que a Alemanha não poderia alegar imunidade no caso de crimes perpetrados no Estado do foro, pouco importando a distinção entre atos de império ou de gestão.

Como consequência, a Alemanha levou a questão à Corte Internacional de Justiça da Haia, que proferiu decisão neste mês de fevereiro, concluindo pela imunidade do Estado alemão. Trata-se de hipótese atual e cujas peculiaridades são dignas de nota.

Após a II Guerra, em 1947, os Aliados celebraram um tratado de paz com a Itália, pelo qual, dentre outras provisões, a Itália renunciou a quaisquer reclamações contra a Alemanha em seu nome e de seus nacionais por danos ocorridos durante a guerra. Em 1953, a Alemanha promulgou legislação, emendada em 1965, que se destinava a compensar vítimas de perseguições nazistas. Raros foram os estrangeiros que conseguiram se enquadrar nas exigências da lei. Em 1961, foram feitos dois acordos envolvendo a Alemanha e a Itália prevendo uma compensação por danos no valor de 40 milhões de marcos.

Como mencionado, a regra do ilícito no foro é uma exceção à regra da imunidade. Por outro lado, a Convenção Europeia determina que essa exceção não se aplica aos atos praticados pelas forças armadas de um Estado no território de outro Estado. A despeito de a Itália não ser parte dessa Convenção — somente a Alemanha — e de o texto convencional mais recente (a Convenção da ONU) não prever a referida exceção, a Corte a aplicou ao caso concreto, o que suscitou a elaboração de voto vencido por parte do Juiz Cançado Trindade. A Corte perdeu uma oportunidade de fazer história, mas preferiu proferir uma decisão mais política que jurídica.

Autores

  • é professora de Direito Internacional Da UERJ e da pós-graduação da UGF. Mestre e doutora em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de Virginia, EUA. Consultora no escritório Luís Roberto Barroso & Associados.

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