Embargos Culturais

Lima Barreto em críticas à República dos Bruzundangas

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

17 de junho de 2012, 8h00

A imaginária República dos Bruzundangas é retrato mais do que fiel do Brasil que Lima Barreto se propunha a criticar, e que examinou, por meio de sátira incisiva. O Barão do Rio Branco, alvo perene das críticas do escritor Lima Barreto, foi duramente castigado, na figura de um personagem chamado de Pancome.

Era em Pancome que Lima Barreto provavelmente destilava inegável sensação de exclusão, ditada por sua posição social. A República dos Bruzundangas é interessantíssimo livro de Lima Barreto, que aqui exploro, no que se refere às críticas que o escritor fluminense fez às nossas instituições políticas.

A ira de Lima Barreto dirigia-se frequentemente à diplomacia. Todo habitante de Bruzundanga teria como projeto viver fora do país, que era um país de exílio. A nobreza dos doutores conseguia livrar-se de viver em Bruzundanga mediante a obtenção de “(…) empregos diplomáticos ou consulares, em falta destes os de adidos e "encostados" às legações e consulados.” (LIMA BARRETO, cit., p. 61). E então Lima Barreto descrevia como se ascendia à carreira diplomática:
“ A (…) aprendizagem para o ofício é simples. Além do corriqueiro francês e os usos da sociedade, os aspirantes a diplomatas começam nos passeios e reuniões da capital da República a ensaiar o uso de roupas, mais ou menos à última moda. Não esquecem nem o modo chique de atar os cordões dos sapatos, nem o jeito ultra fashionable de agarrar a bengala; estudam os modos apurados de cumprimentar, de sorrir; (…) Outra cousa que um recomendável aspirante a diplomata deve possuir, são títulos literários. Não é possível que um milhar de candidatos, pois sempre os há nesse número, tenham todos talento literário, mas a maior parte deles não se atrapalha com a falta. Os mais escrupulosos escrevem uns mofinos artigos e tomam logo uns ares de Shakespeare; alguns publicam livros estafantes e solicitam dos críticos honrosas referências; outros, quando já empregados no ministério, mandam os contínuos copiar velhos ofícios dos arquivos, colam as cópias com goma‑arábica em folhas de papel, mandam a coisa para a Tipografia Nacional do país, põem um título pomposo na cousa, são aclamados historiadores, sábios, cientistas e logram conseguir boas nomeações (…)” (LIMA BARRETO, cit., p. 62).

Em seguida Lima Barreto descreveu caso bizarro relativo ao modo como se conseguiu uma vaga no Ministério das Relações Exteriores do curioso país, que na verdade era o nosso:
“O mais notável caso de acesso na ‘carreira’ foi o que obteve o adido à Secretaria de Estrangeiros Orlando. Em um jantar de luxo, houve uma disputa entre dois convidados sobre uma qualidade de peixe que viera à mesa. Um dizia que era garoupa; o outro que era bijupirá. Não houve meio de concordarem. Orlando foi chamado para árbitro. Levou amostras para casa. Mandou tirar fotografias, fez que desenhassem estampas elucidativas, escreveu um relatório de duzentas páginas, e concluiu que não era nem garoupa, nem bijupirá, mas cação. O seu trabalho foi tido como um modelo da mais pura erudição culinária e o moço foi logo encarregado de negócios na Guatemala. É hoje considerado como um dos luzeiros da diplomacia da Bruzundanga.” (LIMA BARRETO, cit., p. 63).

Multiplicavam-se as legações. Garantiam-se postos no exterior para todos aqueles que fossem ligados à nobreza. E porque um dia teriam vivido em terras outras, os diplomatas de Bruzundanga julgavam-se artistas e literatos, embora publicassem “(…) sonetos bem rimadinhos, penteadinhos, perfumadinhos, lambidinhos, cantando as espécies de jóias e adereços que se encontram nas montras dos ourives” (LIMA BARRETO, cit., p. 63).

E em golpe direto às humilhações que vivia, Lima Barreto observou que esses literatos publicavam “(…) esses catálogos de ourivesaria, quando não são de modistas e alfaiates, em edições luxuosas; e, imediatamente, apresentam‑se candidatos à Academia de Letras da Bruzundanga “ (LIMA BARRETO, cit., p. 64). O centro da crítica dirige-se ao Barão do Rio Branco, que Lima Barreto chamava de Visconde de Pancome, que autocraticamente conduzia o Ministério:
Apareceu, porém, um embaixador gordo e autoritário, megalômano e inteligente, o Visconde de Pancome, que fizeram ministro dos Estrangeiros, e ele transformou tudo. Empossado no ministério, a primeira coisa que fez foi acabar com as leis e regulamentos que governavam o seu departamento. A lei era ele. O novo ministro era muito popular na Bruzundanga; e vinha a sua popularidade do fato de ter obtido do Rei da Inglaterra a comenda de Jarreteira para o Mandachuva e seus ministros, assim como o Tosão de Ouro da Espanha para os generais e almirantes (…) É que os bruzundanguenses babam‑se inteiramente por esse negócio de condecorações e comendas; e, embora cada qual não tivesse recebido uma, eles se julgavam honrados pelo fato do Mandachuva, do ministro, dos generais e almirantes terem recebido condecorações tão famosas no mundo inteiro. São assim como nós que temos grande admiração pelo Barão do Rio Branco por ter adjudicado ao Brasil não sei quantos milhares de quilômetros quadrados de terras, embora, em geral, nenhum de nós tenha de seu nem os sete palmos de terra para deitarmos o cadáver”. (LIMA BARRETO, cit. p. 64).

Para Lima Barreto, a diplomacia de Bruzundanga era mera decoração, no qual fingiam representar um país de terceira ordem (cit., p. 65). Em outro excerto as críticas ao Barão do Rio Branco são indisfarçáveis, bem como a insinuação à reforma que o Prefeito Pereira Passos fazia no Rio de Janeiro, que se pretendia uma capital belíssima, para os estrangeiros:
“Outro herói da Bruzundanga é o Visconde de Pancome. Este senhor era de fato um homem inteligente, mesmo de talento; mas lhe faltava o senso do tempo e o sentimento do seu país. Era um historiógrafo; mas não era um historiador. As suas idéias sobre história eram as mais estreitas possíveis: datas, fatos estes mesmos políticos. A história social, ele não a sentia e não a estudava. Tudo nele se norteava para a ação política e, sobretudo, diplomática. Para ele (os seus atos deram a entender isto) um país só existe para ter importância diplomática nos meios internacionais. Não se voltava para o interior do país, não lhe via a população com as suas necessidades e desejos. Pancome sempre tinha em mira saber como havia de pesar, lá fora, e ter o aplauso dos estrangeiros. Sabendo bem a história política da Bruzundanga, julgava conhecer bem a nação. Sabendo bem a geografia da Bruzundanga, imaginava ter o país no coração. Entretanto, forçoso é dizer que Pancome desconhecia as ânsias, as dificuldades, as qualidades e defeitos de seu povo. (…) A sua visão era unicamente diplomática e tradicionalista. (…) Logo que tomou posse, o seu primeiro cuidado foi mudar o fardamento dos contínuos. Pôs‑lhes umas longas sobrecasacas com botões dourados. A primeira reforma. Tendo conseguido adjudicar à Bruzundanga vastos territórios, graças à leitura atenta de modestos autores esquecidos, a sua influência sobre o ânimo do Mandachuva, era imensa. Convenceu‑o que devia modificar radicalmente o aspecto da capital. Era preciso, mas devia ser feito lentamente. Ele não quis assim e eis a Bruzundanga, tornando dinheiro emprestado, para pôr as velhas casas de sua capital abaixo. De uma hora para outra, a antiga cidade desapareceu e outra surgiu como se fosse obtida por uma mutação de teatro. Havia mesmo na coisa muito de cenografia.” (LIMA BARRETO, cit., pp. 86-87).

O livro parece libelo contra o Barão do Rio Branco, símbolo da diplomacia nacional:
“Este caso do amanuense e alguns outros que aqui vão ser contados na maioria, aconteceram na alta administração da Bruzundanga, quando foi Ministro de Estrangeiros o Visconde de Pancome. Mas, dentre todos os seus atos, aquele que fez propriamente escola, foi a nomeação de um amanuense para a sua secretaria; e os demais, quer quando foi ministro, quer antes, se entrelaçam tanto com a célebre nomeação, esclarecem de tal modo o seu espírito de governo e a sua capacidade de estadista, que tendo de narrar aquele provimento de um modesto cargo, me vejo obrigado a relatar muitos outros casos de natureza quiçá diversa. Entro na matéria.
Andava o poderoso secretário de Estado atrapalhado para preencher um simples cargo de amanuense que havia vagado na sua secretaria. Em lei, o caminho estava estabelecido: abria‑se concurso e nomeava‑se um dos habilitados; mas Pancome nada tinha que ver com as leis, embora fosse ministro e, como tal, encarregado de aplicá‑las bem fielmente e respeitá‑las cegamente. A sua vaidade e certas quizílias faziam‑no desobedecê‑las a todo o instante. Ninguém lhe tomava contas por isso e ele fazia do seu ministério coisa própria e sua. Nomeava, demitia, gastava as verbas como entendia, espalhando dinheiro por todos os toma‑larguras que lhe caíam em graça, ou lhe escreviam panegíricos hiperbólicos. Uma das suas quizílias era com os feios e, sobretudo, com os bruzundanguenses de origem javanesa – cousa que equivale aqui aos nossos mulatos.”
(LIMA BARRETO, cit., p. 119).

Em outra parte do texto aqui estudado, escreveu Lima Barreto:
“Além daquelas medidas que citei em um dos capítulos passados, logo no início do seu ministério, tomou o visconde estas primordiais; usar papel de linho nos ofícios, estabelecer uma cozinha na sua secretaria e baixar uma portaria, determinando que os seus funcionários engraxassem as botas todos os dias. Na cozinha, porém, é que estava o principal das suas reformas, pois era o seu fraco a mesa farta, atulhada. Em seguida, convenceu o Mandachuva que o país devia ser conhecido na Europa por meio de uma imensa comissão de propaganda e de anúncios nos jornais, cartazes nas ruas, berreiros de camelots, letreiros luminosos, nas esquinas e em outros lugares públicos. A sua vontade foi feita; e a curiosa nação, em Paris foi muitas vezes apregoada nos boulevards como o último específico de farmácia ou como uma marca de automóveis. Contam‑se até engraçadas anedotas. Nos anúncios luminosos, então, a sua imaginação foi fértil. Houve um que ficou célebre e assim rezava: ‘Bruzundanga, País rico – Café, cacau e borracha. Não há pretos’.” (LIMA BARRETO, cit. p. 124).        

As críticas de Lima Barreto ao Barão do Rio Branco e ao serviço diplomático brasileiro podem fornecer amplo material de estudo para sentimentos de exclusão, no contexto da República Velha. Tem-se também mal estar para com o bacharelismo nacional, marca característica de nossa intelectualidade, no início do século, e com projeções e comprovações até dias relativamente recentes.

Como boa notícia, a inegável meritocracia que caracteriza o serviço diplomático brasileiro de nossos tempos presentes, comprovada pela qualidade dos concursos públicos hoje realizados, bem como pela flexibilização do acesso aos candidatos. O Itamaraty é hoje um espaço inegavelmente democrático e republicano.

Os concursos são muito concorridos, muito bem organizados, selecionam profissionais de altíssimo nível, circunstância que se verifica desde a década de 1940, quando o antigo Dasp realizou certames, pelos quais passaram, entre outros, Vinícius de Moraes e Roberto Campos.

A tradição cultural que marca o Itamaraty, e que transcende de José Guilherme Merquior a Guimarães Rosa, entre tantos outros, é prova inconteste da excelência de nossa diplomacia, pelo que inaplicáveis, hoje, as observações que Lima Barreto lançou em seu interessante livro, quanto a nosso serviço diplomático.

Bibliografia
LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Os Bruzundangas. Belo Horizonte: GARNIER, 1998. 

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