Gestão esportiva

Lei Pelé não transforma atleta em mercadoria

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31 de julho de 2012, 16h49

Não há dúvida de que a atividade esportiva, sobretudo a competitiva e de alta performance, passou a ser um negócio empresarial por excelência, por ele girando bilhões e bilhões de recursos financeiros e que tendem a aumentar, pois o lazer é algo que inexoravelmente irá expandir.

Nesse sentido, os atores dessa prática buscaram se profissionalizar, não sendo isso diferente no Brasil, inclusive em nível legislativo, com e edição da Lei 9.615/1998 — também chamada Lei Pelé —, que “Institui normas gerais sobre desporto e dá outras providências”. A lei é clara ao definir o caráter empresarial da atividade:

Artigo 27, parágrafo 13: Para os fins de fiscalização e controle no disposto desta lei, as atividades profissionais das entidades de que tratam o caput deste artigo, independentemente da forma jurídica sob a qual estejam constituídas, equiparam-se às das sociedades empresárias. (texto já com a redação da Lei 12.395/2011).

Um dos tópicos objeto da normatização foi a relação entre o atleta e a entidade desportiva, e isso por motivo óbvio: (a) o atleta é aquele que, de fato realiza a performance esportiva, individual ou coletivamente; e (b) a entidade é o por onde a atividade é desenvolvida. Em outras palavras, não há atividade esportiva sem atleta e sem entidade desportiva.

A lei é clara ao dizer que o vínculo legal entre o atleta e a entidade é de natureza trabalhista, ainda que o contrato seja tido como especial, isto porque sujeito a tipos específicos de regramentos, típicos da atividade (por exemplo: concentrações etc.). No entanto, em sua substância, o contrato de trabalho de um atleta sob a égide da Lei 9.615/1998 em nada difere nos aspectos constitucionais de qualquer outro contrato de trabalho.

Não obstante isso, a aplicação prática da norma no campo do futebol parece desdizer a afirmação anterior, isto é, o atleta jogador de futebol não é um empregado na acepção da lei, é uma aberração. Para entender melhor esta colocação é necessária a compreensão de alguns aspectos da lei.

Aspectos remuneratórios
O senso comum parece indicar que todo jogador de futebol é um privilegiado, tem uma carreira e boa remuneração. Na verdade, a realidade é outra, o futebol paga mal (quando paga) e só garante futuro a poucos, assim como em todas as artes.

No caso daqueles que se sobressaem, as questões econômicas passam a ser planejadas, o “gerenciamento de carreira”, levando à introdução da ideia de que o atleta, agora um “astro”, é um ser duo: (i) há o atleta, que recebe a sua remuneração; e (ii) há o artista, que recebe sua remuneração pela cessão de seus direitos de imagem e exposição pelo marketing.

O planejamento é apresentado de modo absolutamente positivo: visa a aumentar as formas de receitas para o atleta; leva-o a diversificar suas fontes de renda (por exemplo: ser a atração em bailes de debutantes, casamentos, propaganda de produtos etc.). Há, ainda, afirmações apoiadas no nacionalismo (manter jovens valores no país). No entanto, muitas vezes não indicam que a intenção é outra: a de evitar a caracterização precisa da legislação trabalhista, como por exemplo: as verbas de imagem serem consideráveis como fora da relação atleta-entidade e, assim, não constituindo verba trabalhista, permitindo que o pagamento das mesmas seja feito não ao atleta pessoa física, mas a uma pessoa jurídica que explora a sua imagem. Evidentemente, o uso das pessoas jurídicas ainda afetam questões relativas às incidências tributárias (imposto de renda na fonte em particular).

A lei, no entanto, é clara ao dizer que tudo o que está no contrato compõem a remuneração do atleta. Estar no contrato não significa estar escrito no contrato, mas ser uma contraprestação decorrente da relação estabelecida. Assim, e não sem que tenha havido a necessidade da intervenção judicial promovida pelo próprios jogadores que se sentiram lesados, isso foi quebrado, tornando assente que os pagamentos pelos direitos de imagem são parte integrante do contrato do atleta, e parte substancial dele, ainda que tenha havido a constituição de uma pessoa jurídica para receber tais valores.

Surge, assim, a primeira aberração: a pessoa jurídica cujo titular é o atleta é apenas uma via para pagamento de menos tributos e encargos sociais? O atleta é vítima ou conivente dessa criação?

Contratação
Embora nunca seja possível confirmar a veracidade das informações, a mídia aponta que os contratos envolvendo jogadores de futebol atingem somas fantásticas, ainda que o profissional não tenha tanto valor (de fato, o valor é muito mais construído do que real, oscilando conforme o momento e independente de custos efetivos).

Ocorre que as entidades desportivas brasileiras, que são os contratantes dos jogadores, são entidades pouco empresariais, com poucos recursos, mal administrados etc. Assim, em geral não dispõem de verbas para contratar ou manter bons atletas, tendo que se socorrer de financiamentos a custos proibitivos ou, então, submeterem-se a apoios de apoiadores, isto é, investidores que estão dispostos a contribuir com recursos financeiros para a contratação ou manutenção de um jogador e, de alguma forma, ter receitas com a sua exploração, em particular em negociações futuras.

Surge, então, a figura curiosa do jogador de futebol cuja contratação e manutenção junto a uma entidade desportiva somente é possível porque o atleta foi partilhado: x% dele pertence ao investidor β, z% a α, y% à entidade desportiva e assim por diante. Eis a segunda aberração: quem é o contratante do atleta? A entidade, como decorre da lei, ou também esses investidores (em Direito, o contrato de trabalho reconhece que deva haver apenas um empregador, no entanto, para efeitos de responsabilização não há limites quanto ao número de pessoas que podem vir a ser consideradas como empregadores)? Se o atleta quer terminar a relação ou migrar para uma nova, como ele deve proceder? Deve negociar com a entidade e pronto ou tem que ter aprovação de todos os seus financiadores?

Cláusulas de vinculação
Compreendendo o caráter empresarial envolvendo a atividade esportiva e a negociação relativa à movimentação de atletas, a legislação brasileira introduziu mecanismos protetivos que evitassem que as entidades esportivas que investiram recursos num atleta sejam, de repente, privadas do mesmo por mero ato econômico de terceiros, inclusive concorrentes diretos. Os mecanismos são: a) as regras sobre prazos contratuais; b) as regras sobre cláusulas indenizatórias; c) as regras sobre controle sobre os direitos federativos do atleta; etc.

Não serão abordadas aqui as regras relativas às entidades desportivas formadoras de atletas e que compõem um outro grupo de interesses no âmbito do direito desportivo e na relação com atletas.

Na prática, porém, gera-se nova aberração: contratos são feitos por prazos longos, ainda que, de fato, não se pretenda durem tanto, estabelecendo remunerações vultuosas e que transformam as multas rescisórias difíceis de serem transpostas. De fato, as multas não são estabelecidas para bloquearem acesso, mas apenas para impor uma negociação, negociação essa na qual o atleta está a reboque, exceto se tiver como comprar-se e se liberar do vínculo.

Além disso, estabeleceram-se cláusulas de não concorrência que visam a impedir que jogadores possam bandearem-se para uma entidade concorrente, considerada non-grata e cuja construção é muito volátil dentro dos limites de tolerância normalmente admissíveis para esse tipo de restrição.

O neo-escravo
Diz-se que uma lei é, em si, neutra, pois trata de situações abstratas e hipotéticas. Ocorre que elas não podem ser neutras nunca, uma vez que têm que ser aplicadas a situações concretas, situações essas construídas por agentes com interesses específicos e formas específicas de entender, interpretar e aplicar (ou não) a lei.

A Lei 9.615/1998 afirma que:

a) as relações contratuais envolvendo atletas, entidades e terceiros não podem se feitas de modo a interferir ou influenciar nas transferências de atletas (artigo 27-B); e

b) são nulos os contratos e as cláusulas que: (i) restrinjam a liberdade do trabalho desportivo; (ii) estabeleçam obrigações consideradas abusivas ou desprorpocionais; e (iii) infrinjam os princípios da boa-fé ou do fim social do contrato (artigo 27-C).

Ora, a prática futebolística brasileira dá indícios de que normas básicas da legislação estão sendo rotineiramente desconsideradas; senão vejamos:

a) inúmeros atletas passam a ter suas vidas gerenciadas a partir das visões daqueles que têm conflito de interesse direto com o atleta, que são as entidades desportivas, os investidores e os agentes (figura que também se insere no meio dessas relações); e, nesse sentido, o plano de carreira do atleta é, na verdade, o plano de carreira do atleta enquanto jogador de XPTO e, o que é pior, adotando discursos ufanistas, de um nacionalismo barato;

b) jogadores constituem empresas para explorar seus direitos de imagem e, posteriormente, vão aos tribunais para dizer que tais empresas não são reais, que os direitos são trabalhistas e querem que sejam considerados em suas remunerações, em seus direitos indenizatórios, de FGTS, entre outros, sem se importar se, ao constituírem pessoas jurídicas vazias, estariam descumprindo a lei etc. (ingenuidade, esperteza?);

c) contratos são feitos sem a intenção de valerem pelo tempo neles estipulados, mas apenas para que as cláusulas indenizatórias permitam negociações melhores — ou seja, tornando-se contratos abusivos porque não existem para cumprir o que neles, mas meros instrumentos de barganha e de redução do peso da voz do atleta nas decisões sobre os rumos não de sua carreira, mas de sua vida;

d) jogadores tornam-se propriedade de seus investidores, os quais, mesmo não tendo direitos federativos sobre o atleta, em função dos investimentos feitos e condições contratadas com o entidade — e nem sempre com o atleta — podem criam empecilhos a negociações, ainda que contra a vontade do jogador; e

e) jogadores tornam-se commodities, que são negociáveis de acordo com as suas “safras”: início de carreira (os abduzidos), topo (os expatriáveis) ou queda (os repatriáveis); sem que de fato esses jogadores, raras as exceções, tenham alguma voz de comando ou influência nos processos.

A Lei 9.615/1998 foi introduzida para tornar o esporte no Brasil uma atividade capaz de proporcionar desenvolvimento e riqueza para as partes envolvidas. Não foi ela feita para desfigurar o atleta, desprovê-lo de seus direitos enquanto indivíduo e agente econômico, muito menos torná-lo mercadoria.

A Lei 9.516/1998 foi feita para buscar maior transparência na gestão esportiva, exatamente porque, pela função social que o esporte desempenha, pelo volume de recursos financeiros que movimenta, seus impactos na sociedade são cada vez maiores exigem maiores responsabilidades.

O esporte tornou-se profissional, empresarial. Bilhões circulam por ele, inclusive no futebol. Mas, no futebol brasileiro, cabe ao jogador indagar: quem é meu dono? Não sou um neo-escravo?

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