Ideias do Milênio

"Energia é capítulo fundamental para o desenvolvimento"

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6 de julho de 2012, 8h00

Entrevista concedida pelo economista Ignacy Sachs, ao jornalista Marcelo Lins, para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30. 

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Discutir desenvolvimento é discutir tempo. E o choque entre o tempo da natureza e o tempo humano está cada vez mais em evidência e afetando a rede que nos envolve e cria as condições para a vida no planeta. Na sociedade, assim como na biologia, pequenas células se diferenciam e acabam estabelecendo sistemas complexos. Cidades, países, línguas e culturas, muitas vezes surgem a partir de um local e gradualmente criam uma rede que se expande e se contrai em ciclos e molda a realidade. Cerca de 7 bilhões de pessoas vivem neste planeta hoje. Muitos, imersos na pobreza, morrem de fome. Outros tantos não têm liberdade política nem acesso a serviços públicos básicos ou assistência social. Como estabelecer uma dinâmica socialmente includente, ambientalmente responsável e economicamente sustentável no tempo? A resposta está em aberto, mas o cientista social Ignacy Sachs, aos 85 anos, vê que o caminho está em planejar os passos a dar olhando criticamente para a história mundial. Experiências passadas não garantem nenhuma certeza do que virá, mas são um bom guia para o que devemos evitar. Homem global, polonês e francês, com influências da Índia e do Brasil, Sachs recebeu o Milênio em São Paulo.

Marcelo Lins — Diversas vezes nos últimos anos e ao longo da sua carreira o senhor mostrou preocupação grande com um certo desequilíbrio quando se fala na questão do desenvolvimento, essa palavra que aceita tantas acepções, por não contemplar igualmente as questões econômica em si, a social e a ambiental. Que tipo de crítica e qual é o seu pensamento em relação a isso?
Ignacy Sachs —
Eu acho que discutir o desenvolvimento implica pensar num tripé. Os objetivos do desenvolvimento são sempre em última instância sociais. Podemos melhorar a condição de vida dos que estão navegando junto conosco na nave espacial terra. Existe uma condicionalidade ecológica ambiental, que é a terceira perna do tripé recém-descoberta. Eu digo recém-descoberta porque isso nós remete a uma conferência pioneira nesse assunto, que foi Estocolmo 72, mas não basta querer o progresso para os homens e dizer que devemos respeitar a natureza senão transformamos esses desejos em realidade, nada acontece. E para transformá-los em realidade não podemos prescindir do terceiro pé do tripé, que é a viabilidade econômica. Portanto, quando hoje falamos em desenvolvimento, estamos falando de um desenvolvimento socialmente includente, ambientalmente sustentável e economicamente viável.

Marcelo Lins — E esse desenvolvimento e essa passagem das palavras, da teoria para a ação é uma coisa que dependeria mais do esforço das autoridades, de uma sociedade organizada, dos atores do setor privado ou é um esforço que vai depender de um conjunto de ações.
Ignacy Sachs —
Eu acho que não dá para pensar o desenvolvimento na sua complexidade sem invocar a necessidade de um planejamento. E este é talvez o cerne da questão. Porque já tivemos épocas de planejamento muito mais difundido do que hoje, mas ainda não fizemos, a meu ver, uma avaliação crítica, aprofundada, dos avanços e dos problemas que essas experiências de planejamento trouxeram. Os mercados deixados a si mesmos têm a vista curta e a pele grossa. Se quisermos realmente avançar, no sentido do desenvolvimento a nível planetário e a nível nacional da mesma maneira, devemos primeiro aprender a nos organizar com o horizonte temporal que não é o curto prazo e devemos aprender a nos organizar de maneira a prever, antecipar e, na medida do possível, corrigir todos os impactos sociais negativos que esse processo possa ter.

Marcelo Lins — Temendo ser um pouco reducionista aqui na minha síntese, o senhor faz referências, sem a gente estar explicitando, também ao planejamento talvez excessivo que se tentou fazer em termos de socialismo real no mundo no século 20 e também ao que o senhor vê como excesso de liberalidade do capitalismo já no final do século 20 e no início do século 21. Quer dizer, é necessário olhar para esses dois modelos e há coisa a aproveitar e há coisas a rejeitar de cada um.
Ignacy Sachs —
Totalmente de acordo com você. A história serve para analisar criticamente as experiências do passado. Sacar lições positivas, mas também aprender com as derrotas do passado. Portanto, eu não estou advogando a volta a um planejamento que seria a cópia conforme do primeiro plano quinquenal soviético, mas tampouco posso aceitar a ideia de que o fato de ter havido experiências não muito favoráveis em diferentes países, em diferentes momentos com planejamento, devamos esquecer o planejamento e nos colocar a mercê dos mercados.

Marcelo Lins — O senhor também foi, ou tem sido de vez em quando, um crítico de modelos de urbanização que temos visto nas últimas décadas, e menciona aqui e ali a necessidade de um novo olhar sobre o campo. Qual é a sua visão em relação a isso?

Ignacy Sachs — Não se trata de ou partir para uma urbanização a 100% ou voltar a uma ruralidade também a 100%. A urbanização faz parte do processo histórico que estamos vivendo. O que é necessário é refletir, primeiro, sobre as consequências, muitas delas extremamente positivas. Eu acredito que a questão da agricultura familiar vai ocupar um papel muito importante nas estratégias de desenvolvimento dos países emergentes, menos na Europa, porque já passamos por uma série de reformas agrárias e porque o papel da economia agrária é menor, mas esta é certamente a lembrança muito boa, muito importante da gente do futuro que não deveríamos empurrar embaixo do tapete.

Marcelo Lins — No atual debate em relação a desenvolvimento, a questão energética ganha um protagonismo muito grande, e o senhor é um defensor do uso de energias alternativas, fontes alternativas, especificamente no Brasil fala-se em biomassa, como o senhor vê esse debate no momento?
Ignacy Sachs —
Temos que levar em conta o fato de que as energias fósseis geram problemas climáticos extremamente graves, além do fato de se esgotarem. Eu acho que o esgotamento não é o problema central com relação às energias fósseis, mas os seus impactos. Há uma forte corrente de opinião que diz que tudo bem, mas nós vamos mudar de rumo, vamos para a energia nuclear. Eu, sobre a energia nuclear, tenho uma posição mais reservada. Primeiro, pelos problemas que criam os armamentos nucleares; segundo, pelos problemas que podem resultar de catástrofes naturais.

Marcelo Lins — Tivemos exemplo recente no Japão, tivemos Chernobil.
Ignacy Sachs —
Tivemos Chernobil, tivemos Fukushima, tivemos um quase grande acidente nuclear ainda mais cedo em Three Mile Island, na Pensilvânia. Portanto, não acho que seja a nossa resposta nas energias. Por outro lado, a energia é fundamental para acelerar o progresso econômico e técnico. Então, o que podemos fazer? Primeiro aprender a usar melhor a energia que temos, ou seja, o problema da eficiência do uso energético é um problema extremamente importante onde há muita coisa para fazer. Segundo, aprender a usar melhor o conjunto das energias renováveis. E, sem dúvida, tivemos um progresso razoável na eólica, etc., inclusive na energia de biomassa. Então, o capítulo energia é um capítulo fundamental das estratégias de desenvolvimento.

Marcelo Lins — Especificamente em relação aos grandes projetos de hidrelétricas…
Ignacy Sachs —
Não podemos evitar, no caso do Brasil, grandes projetos de hidrelétricas, mas isso não significa que não devamos trabalhar sobre o aproveitamento de energias de forma descentralizada. Ou seja, não depender unicamente das Itaipus da vida sem se privar das Itaipus. Outra vez, temos que pensar o problema na sua complexidade e totalidade.

Marcelo Lins — Quando se fala no debate ambiental, a Amazônia ressurge sempre como uma questão em si. E o senhor já falou no conceito de reserva de desenvolvimento em contraposição eventual ao mais falado reserva ambiental. O senhor podia explicar pra gente que conceito é esse?
Ignacy Sachs —
Olha, a Amazônia é um mundo, onde você encontra tudo. Algumas coisas que são extremamente interessantes e que merecem desenvolvimento para o futuro, outras que são exemplos de uma destruição de uma apropriação predatória de recursos. A gente tem a obrigação de pensar sobre formas alternativas da utilização do patrimônio dos recursos naturais daquelas regiões. Por isso, eu digo: se é uma reserva intocável, onde você não entra mais, e, se você entrar, você leva chumbo, é uma coisa. Se é dizer “bom, vamos acabar com as práticas predatórias do passado e vamos mobilizar as universidades e os centros de pesquisa brasileiros para pensar quais são as formas sustentáveis no tempo, ambientalmente corretas e socialmente desejáveis de usar esses recursos”, é outra coisa. Por isso, para mim, a Amazônia continua a ser um gigantesco capital da natureza que vai ainda inspirar gerações e gerações de brasileiros para que este potencial de recursos seja realmente aproveitado, mas aproveitado de uma forma não predatória. Portanto, eu reajo contra aqueles… Isso se houve de vez em quando na Europa e até nos Estados Unidos também: Por que não transformar a Amazônia no pulmão da natureza? Ou seja, guardas na fronteira, ninguém entra mais e fica intocável. Não, eu não compro essa ideia. Eu acho que a nossa ambição deve ser pensar como aproveitar, e aproveitar cada vez melhor, o gigantesco potencial de recursos renováveis que a Amazônia constitui, sem fechar os olhos sobre os recursos não renováveis que ali existem. Não sejamos puristas ao ponto de não querer utilizar as riquezas geológicas.

Marcelo Lins — Na sequência desse debate, o outro termo que aparece e reaparece muitas vezes nos últimos tempos é o da economia verde. E eu também já li, já ouvi o senhor tecer algumas críticas em relação ao uso desse termo. Às vezes, falta uma definição mais clara sobre o que é isso. Parece que hoje todos somos a favor da economia verde. O senhor é a favor da chamada economia verde?
Ignacy Sachs —
Em termos, a minha bandeira é a bandeira portuguesa, ou seja, verde e vermelha. Eu acho que devemos fazer todo o possível e forçarmos por todos os meios e mobilizar todos os nossos conhecimentos e todas as nossas capacidades de pesquisa para aprender a usar cada vez melhor o extraordinário potencial dos recursos renováveis. Dito isso, eu não posso esquecer a questão de como esses recursos… Em que economia esses recursos serão processados e como serão distribuídos os frutos desse produto. Por isso, eu não posso pensar apenas o ambiental separado do social. Eu tenho que pensar sempre como a sociedade se organiza para fazer o uso cada vez mais racional dos recursos que estão a sua disposição, mas também para repartir de uma maneira equitativa esse produto. E a questão da justiça social implica duas coisas diferentes: de um lado a justiça social com relação a geração presente, ou seja, todos aqueles que estão contribuindo aquela produção ou aqueles que estão sendo marginalizados quando devem ser envolvidos, e todos aqueles que virão depois. E, portanto, é por aí que entra a sustentabilidade ambiental, ecológica.

Marcelo Lins — Mudando um pouco de assunto, uma questão que o senhor também está muito próximo, até por viver uma parte do tempo na Europa, na França. A crise econômica consegue derrotar o sonho de uma Europa unificada e sem fronteiras de vários aspectos?
Ignacy Sachs —
Certamente, o futuro da Europa vai depender da sua capacidade de dar uma resposta organizada à crise atual. O fato é que a Europa tem um capital precioso que é a construção europeia que progrediu muito. E seria uma pena que não se aproveite desse capital precioso para armar uma estratégia de apoio aos que estão mais atingidos pela crise. Esse vai ser o teste da resiliência da comunidade europeia.

Marcelo Lins — Professor, para encerrar, aproveitando da sua larga experiência como um expectador privilegiado, e também um ator privilegiado de boa parte do século 20 e agora já pelo século 21, nas questões de desenvolvimento ligadas ao respeito ambiental e social, o senhor se considera hoje mais otimista, mais cético ou mais pessimista do que era em Estocolmo em 72 ou no Rio em 92?
Ignacy Sachs —
Difícil de responder a isso. Você conhece a definição do que é um pessimista. Pessimista é um otimista bem informado. Mas eu me recuso a me considerar suficientemente bem informado para olhar de uma maneira pessimista o futuro. Mas falando seriamente, é muito difícil dizer que entre 72, 92 e 2012 houve mudanças de posicionamento muito fortes. O fato é que a Europa por enquanto não produziu o plano de assistência aos elos mais fracos da comunidade europeia. Se não fizer, não se pode excluir problemas de saídas individuais de países da comunidade. Qual será a importância dessas saídas? Outra vez muito difícil dizer. E, sobretudo, nada impede que frente a essa nova crise a Europa reencontre a capacidade de se pensar de uma maneira renovada. Se há uma coisa pela qual eu torço é essa.

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