Presidente do Coaf quer mais poderes para o órgão
8 de janeiro de 2012, 15h30
Em entrevista à Revista IstoÉ deste semana, Gustavo Rodrigues, presidente do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Fazenda, fala sobre como funcionam as investigações do órgão e sobre a proposta de ampliar ainda mais os poderes de uma das poucas instituições que tem acesso, sem passar pelo Judiciário, a dados sobre a movimentação bancária de todos os correntistas do país. Rodrigues quer que o órgão seja informado sobre a compra de veículos, embarcações e aeronaves com dinheiro vivo, o que pode significar lavagem de dinheiro. Protesta ainda contra a dificuldade em rastrear compras em joalherias, que também não têm, como os bancos, a obrigação de informar operações consideradas suspeitas.
Especialistas consultados pela Consultor Jurídico, no entanto, discordam. Para eles, a Lei Complementar 105, de 2001, que ampliou o acesso do órgão a dados bancários, atropelou a Constituição ao permitir o atalho entre as instituições financeiras e o fisco ou a polícia, sem passar pelo Judiciário.
É o que pensa o ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio. Para ele, essa deve ser a grande questão jurídica do início de 2012. "O Coaf interpreta o preceito legal como se isso permitisse a transferência da informação. Nem na época do regime de exceção isso acontecia. O Supremo foi categórico no sentido de que o Fisco não pode quebrar sigilo, ao julgar sobre a constitucionalidade da Lei Complementar 105", diz. Segundo ele, o Recurso Extraordinário 601.314, que teve repercussão geral reconhecida, deve levar novamente a discussão à corte. "Vivemos quadra preocupante. Não é uma bandeira popular, a questão envolve valores constitucionais."
Na opinião do criminalista Roberto Podval, o Coaf tem mais poderes do que deveria. O advogado acredita que o órgão deveria estar submetido à Justiça e não ao Ministério da Fazenda. Segundo Podval, quando o Coaf entende que há movimentação atípica e avisa, imediatamente, a Polícia Federal ou o Ministério Público, não dá ao cidadão a oportunidade de ir se explicar. “Melhor seria se o Coaf entrasse em contato com o suspeito e o avisasse. Seria mais fácil, ele apontaria a irregularidade e o cidadão poderia se explicar antes de ser investigado.”
O criminalista Cesar Vilardi concorda. Para ele, embora a lentidão da Justiça seja um problema brasileiro, se cada órgão quiser ter mais poderes em virtude disso princípios democráticos seriam violados. Além disso, o advogado discorda que casos envolvendo o Coaf sejam lentos na Justiça. "Existe um sistema equivocado de comunicações. Muitas vezes o Coaf avisa a polícia em relação as operaçoes atípicas, mas não suspeitas."
Leia abaixo a entrevista de Gustavo Rodrigues à IstoÉ.
"Tem corrupção todo dia"
O presidente do Coaf diz que em 2011 foram investigadas 12 mil pessoas e que este ano vai fiscalizar o comércio de veículos para evitar a lavagem de dinheiro.
por Adriana Nicacio e Izabelle Torres
No comando do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) desde 2004, Antonio Gustavo Rodrigues conquistou prestígio na cúpula do governo e virou referência de discrição e poder. Em suas mãos estão informações fiscais e bancárias de qualquer brasileiro e é com esses dados que ele se dedica a rastrear o caminho dos recursos desviados em esquemas de corrupção.
O Coaf tem a tarefa de identificar movimentações financeiras do crime organizado e até de averiguar o súbito enriquecimento de políticos. Mas, apesar de ser peça-chave para investigações do Ministério Público e da Polícia Federal, o Coaf, segundo Rodrigues, sofre com uma estrutura limitada e a falta de integração com outros órgãos de fiscalização.
Em entrevista exclusiva à ISTOÉ, ele conta que em 2011 o Coaf teve mais de 1,2 mil relatórios enviados e 12 mil pessoas fiscalizadas. Para aprimorar a ação em 2012, o presidente do Coaf quer fechar um importante gargalo para a lavagem de dinheiro: o comércio de veículos. Nos próximos meses, o órgão vai editar uma resolução obrigando as revendedoras de automóveis a informar sobre transações acima de R$ 50 mil feitas em dinheiro vivo. Um dos maiores desafios, segundo Rodrigues, é conseguir a aprovação no Senado do projeto sobre lavagem de dinheiro, que já passou pela Câmara.
ISTOÉ – O sr. está satisfeito com o trabalho do Coaf?
ANTONIO GUSTAVO RODRIGUES – Há marchas e contramarchas. O mecanismo de prevenção funciona. Recebemos gente do mundo inteiro para conhecer o nosso sistema, que é todo informatizado. Até o FMI tem o Coaf brasileiro como referência. A nossa maior dificuldade não está na investigação. O grande problema do Brasil é mandar o bandido para a cadeia. O Ministério Público investiga, a Polícia Federal prende, mas cai num processo judicial travado. O Grupo de Ação Financeira (Gafi), que é um organismo internacional, menciona na sua avaliação a lerdeza do processo judicial brasileiro. Até para homicídio, com arma e com corpo, o réu confesso fica 15 anos para ser julgado.
ISTOÉ – O Coaf não tem capacidade de mudar esse quadro?
ANTONIO GUSTAVO RODRIGUES – Nossa competência é bem delimitada. Somos uma unidade de inteligência financeira com padrão internacional. A nossa função é receber as comunicações das instituições financeiras e encaminhá-las para as autoridades competentes, a PF e o MP. No fundo, o conselho trabalha passivamente: se eu não recebo informações, não trabalho. Não somos delegacia do crime financeiro.
ISTOÉ – Quais são seus alvos principais?
ANTONIO GUSTAVO RODRIGUES –Qualquer pessoa pode parar nos bancos de dados do Coaf, basta fazer uma transação com alguém que tenha negócios suspeitos. Mas isso não quer dizer que o cidadão citado seja bandido. Não é ilegal, por exemplo, comprar uma casa do Fernandinho Beira-Mar. Se aparecer, porém, uma transação vultosa com ele, mandamos um relatório para o MP investigar. Em muitos casos suspeitos, há crimes mesmo.
ISTOÉ – Há muitos políticos sendo investigados neste momento?
ANTONIO GUSTAVO RODRIGUES – Existe uma norma do Banco Central para que os bancos prestem mais atenção nas pessoas politicamente expostas. Quando essa regra saiu, começaram a dizer que agora os políticos seriam investigados. Não é nada disso. Um dos objetivos do sistema é preservar os próprios bancos. Quando um deles se envolve num escândalo de lavagem de dinheiro, a instituição sofre como negócio. E tem corrupção todo dia.
ISTOÉ – O que o sr. acha do projeto do deputado Cláudio Puty (PT-PA) que cria regras para a investigação de pessoas politicamente expostas?
ANTONIO GUSTAVO RODRIGUES – Virando lei, dará mais força ao nosso trabalho, claro. Mas o maior problema no trabalho de rastreamento de pessoas é identificar de quem é o nomezinho que está lá. O mais importante, entre várias alternativas, é a aprovação do projeto sobre lavagem de dinheiro no Senado. Com ele, o Coaf vai ampliar seu poder de fiscalização.
ISTOÉ – Como o Coaf acompanha as consequências práticas dos seus relatórios?
ANTONIO GUSTAVO RODRIGUES – Normalmente, nós temos o retorno pela imprensa. Não é raro a gente pesquisar uma ação da PF e descobrir que mandamos um relatório há dois anos. Não existe ainda um mecanismo formal para liberar informações ao Coaf. Mas estamos tentando trabalhar com o Ministério Púb
ISTOÉ – Então o Coaf fornece a informação e não sabe o que a PF e o MP fizeram com ela?
ANTONIO GUSTAVO RODRIGUES – Isso.
ISTOÉ – Não é frustrante?
ANTONIO GUSTAVO RODRIGUES – Não há nada que possamos fazer. Quem decide se vai investigar é o MP e a PF. O que fazemos é emitir um relatório com informações complementares quando vemos que nada foi feito. Num caso em Brasília, do Instituto Candango de Solidariedade (ICS), nós fizemos oito relatórios. Eles movimentavam tanto dinheiro em espécie que mudou até a estatística do Distrito Federal. Mas a gente ficou uns três anos mandando relatórios. O tempo entre a gente mandar um relatório e ver a reportagem no jornal é de uns dois anos. Quando vemos que nosso trabalho ajudou a disparar uma investigação, ficamos satisfeitos. Mas o trabalho do Coaf é anônimo.
ISTOÉ – Essa falta de integração com a PF e o MP gera prejuízos?
ANTONIO GUSTAVO RODRIGUES – Às vezes, a pessoa que apareceu no relatório do Coaf pode não ser punida nunca. Recentemente, saiu uma resolução superbadalada do Superior Tribunal de Justiça sobre a operação Boi Barrica, envolvendo a família do senador José Sarney. O juiz concedeu a quebra de sigilo bancário, a pedido do Ministério Público, com base no nosso relatório. O STJ anulou. Disse que houve vício de iniciativa e o MP não poderia ter feito pedido. Se está certo ou errado, não sei dizer. Mas também não quero saber. O meu papel é continuar fazendo os relatórios. Nosso papel é alertar.
ISTOÉ – Quantas comunicações o Coaf recebeu dos bancos no ano passado?
ANTONIO GUSTAVO RODRIGUES – Foram 51 mil comunicações, citando 12 mil pessoas. Elaboramos mais de 1,2 mil relatórios com indícios de corrupção. Foi mais que em 2010. Não recebemos dados somente dos bancos. Também as seguradoras e empresas de cartões de crédito e de factoring são obrigadas a nos informar sobre transações financeiras suspeitas. Há milhares de pessoas citadas todos os anos.
ISTOÉ – O que pode ser considerada uma operação suspeita?
ANTONIO GUSTAVO RODRIGUES –Depende do juízo de valor da empresa que mandou. Por exemplo, o banco nos comunica quando a movimentação é incompatível com a renda e o padrão. Se um cidadão recebe R$ 1 mil, não pode fazer transações de R$ 500 mil de uma hora para outra. Em outro caso, o cliente faz um saque ou um depósito de R$ 100 mil em espécie sem comunicar a origem ao Banco Central. Ele pode ser o maior milionário do Brasil, que é obrigado a comunicar suas operações. Nesse caso, o banco nem pensa e nos avisa automaticamente.
ISTOÉ – O Coaf cobre todas as brechas da lavagem de dinheiro?
ANTONIO GUSTAVO RODRIGUES – Há diversos setores regulados pelo Coaf que são difíceis de monitorar. No de joias e metais preciosos, a colaboração é pequena, apesar de ter melhorado. As informações são raríssimas também na área dos objetos de arte e antiguidades.
ISTOÉ – Há planos para melhorar o controle em 2012?
ANTONIO GUSTAVO RODRIGUES – Estamos fazendo uma regulação para pegar as revendedoras de veículos (carro, barco e avião) com base na nova lei. Este sim é um grande gargalo. Veja no caso do assalto ao Banco Central, em Fortaleza: a primeira coisa que o sujeito fez foi comprar uma frota de picapes. A revendedora não tinha nenhuma obrigação de ficar atenta, mesmo que ela achasse estranho alguém chegar com uma mala de dinheiro.
ISTOÉ – As concessionárias serão obrigadas a informar tais negócios?
ANTONIO GUSTAVO RODRIGUES – A desculpa de que não estava alerta deixa de ser aceitável. Se não comunicar, a empresa pode ser processada por dolo eventual. A concessionária pode até não fazer parte da quadrilha, mas aquela coisa de colocar a cabeça debaixo da terra e fechar os olhos não vai colar. Se o cara fecha o olho e diz que não quer ver, então, meu filho, você será acusado até de ser partícipe do crime, porque tem a obrigação de enxergar.
ISTOÉ – Como será essa regra?
ANTONIO GUSTAVO RODRIGUES – Além da regra geral, de manter o cadastro do cliente atualizado, vamos pedir que envie ao Coaf informações sobre qualquer compra acima de um determinado valor. É basicamente isso. Também não dá para achar que a gente vai revolucionar o mundo usando esse mecanismo, porque não vai. Pediremos providências factíveis com a realidade. Estamos ainda estudando o valor. Acredito que compras de veículos acima de R$ 50 mil deverão ser comunicadas.
ISTOÉ – O sr. não teme uma enxurrada de informações? Hoje é fácil comprar um automóvel de R$ 50 mil.
ANTONIO GUSTAVO RODRIGUES – Ninguém compra carro com uma mala de dinheiro. Normalmente faz um TED e o sistema bancário é rastreável. Estamos olhando para o dinheiro em espécie, no saquinho, na cueca…
ISTOÉ – O Coaf pretende mirar outras atividades econômicas?
ANTONIO GUSTAVO RODRIGUES – Temos um problema: quando o setor não conta com um órgão regulador próprio, é o Coaf quem fiscaliza. E nós somos apenas 50 pessoas. Os Estados Unidos têm 500 nessa área. Não podemos aumentar a nossa carga porque não damos conta. Nós fazemos a norma e criamos a penalidade para cada setor que fiscalizamos. Mas não temos o fiscal de rua, como a Receita Federal, ou mesmo o esquema de fiscalização do Banco Central. Quando um banco é formado, o banqueiro tem que ir lá pedir a bênção do BC. Já uma empresa de joias ou de artes pode ser aberta em qualquer esquina. É o nosso abacaxi.
ISTOÉ – Há praticamente oito anos no cargo, qual a sua percepção em relação ao crime do colarinho-branco?
ANTONIO GUSTAVO RODRIGUES – Acho que tem de haver um esforço para punir as pessoas, porque no final o resultado ficará para os nossos filhos e netos. Antigamente, os estrangeiros vinham para ganhar dinheiro e voltar para um país decente. O meu avô veio de Portugal, mas morreu aqui. O meu pai morreu aqui. Eu também vou morrer aqui. Então, vamos fazer do Brasil um lugar decente. A gente está aqui mesmo, então, vamos arrumar a casa.
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