Ideias do Milênio

"O Holocausto foi o massacre de pessoas indefesas"

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17 de fevereiro de 2012, 11h43

Entrevista concedida pelo escritor e cineasta francês Claude Lanzmann ao jornalista Silio Boccanera, do programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça; 5h30 de quarta; e 7h05 de domingo. Leia, a seguir, a transcrição da entrevista:

Equipe Milênio/GloboNews
Escritor, intelectual e cineasta francês de 86 anos, Claude Lanzmann sobreviveu à ocupação nazista da França, que perseguia judeus como ele e sua família. Adquiriu fama internacional como autor de um filme marcante sobre o holocausto, Shoah, que dura nove horas e meia, tem entrevistas reais e reconstruções, mas ele recusa a classificação de documentário. Fez também Subibor, sobre o campo de extermínio na Polônia, além de filmes que tratam de Israel, país com o qual ele sente uma ligação existencial, que deixa pouco espaço para qualquer crítica. Em viagem ao Brasil para promover sua autobiografia, A Lebre da Patagônia, Lanzmann provocou polêmica quando se irritou com o mediador de sua apresentação na Flip, Festa Literária de Paraty e confrontou-o de forma agressiva diante de uma plateia surpresa e decepcionada com o comportamento do convidado estrangeiro. A temperatura subiu mais no dia seguinte, quando o curador do evento classificou o comportamento de Lanzmann como de nazista e acabou tendo que se desculpar pelo uso do termo. Este é o convidado do Milênio, e tentamos extrair a opinião dele sobre vários assuntos ligados a uma vida cheia de aventuras. Vai desde a resistência aos nazistas como adolescente durante a Segunda Guerra Mundial até a amizade próxima com Jean Paul Sartre e bem intima com a mulher do filósofo, a escritora Simone De Beauvoir, de quem Lanzmann foi amante durante dez anos. Ele conviveu ainda com muitos intelectuais de sua geração, escritores, artistas e filósofos com renome mundial. Como outros descobriram antes, não é fácil extrair informação de Lanzmann, que prefere confrontar a esclarecer. Mas não custa tentar. Aqui vamos.

Silio Boccanera — Vamos começar. O seu livro nos leva a uma época sombria: a ocupação da França pelos nazistas. O senhor era jovem, mas, mesmo assim, participou da Resistência. Conte-nos de que modo o senhor participou da Resistência.
Claude Lanzmann —
Do modo mais direto, digamos assim, pois eu entrei para a Resistência em junho de 1943. Um sujeito que, na época, eu não conhecia bem me procurou e me perguntou se eu aceitava me tornar um integrante da Juventude Comunista. Ele era integrante do Partido Comunista. Ele era mais velho que eu. A minha família era de esquerda por natureza, por estilo de vida, por… Eu respondi sim à pergunta dele. Mas, se fosse outra organização, eu teria respondido sim do mesmo modo, pois, no fim das contas, a Resistência… Para um judeu, em plena guerra e sob o regime de Vichy, talvez, resistir ainda fosse o melhor modo de se defender e de se salvar. No começo, quando houve a 1ª lei racial, eles obrigaram os judeus a se declararem judeus. Depois, vieram as operações de marcação, o carimbo de “judeu” na carteira de identidade. Era muito difícil de saber se era preciso obedecer ou não. E o meu pai, no começo, só tinha uma coisa na cabeça. Ele era um homem muito pessimista. Ele achava que o pior era certo. E, depois do Acordo de Munique, em 1938, o meu pai achou que, talvez, fosse melhor obedecer para salvar a família, para salvar os seus filhos. Então, nós fomos declarados judeus e recebemos uma carteira de identidade com um carimbo vermelho de judeu estampado nela. Era realmente um carimbo estigmatizante. Eu ainda a tinha, mas a perdi não sei onde. Mas ainda tenho em casa a do meu pai. Rapidamente, ele percebeu, e todos nós também percebemos, meu pai, meu irmão, eu e a minha irmã, que era bem mais nova. Eu era o mais velho. Percebemos que era intolerável carregar essa carteira de identidade.

Silio Boccanera — O senhor vivenciou a ocupação e a Resistência. O que o senhor pode dizer sobre a colaboração dos que não seguiram o que o senhor fez?
Claude Lanzmann —
Colaboração de quem?

Silio Boccanera — Dos franceses durante a ocupação, daqueles que seguiram um caminho diferente do seu.
Claude Lanzmann —
Não devo falar de mim como um francês. Você está falando de mim como judeu nesse momento. Eu lhe digo que, nessa profundidade, nós somos muito profundos, a França é muito complicada. É um país muito complicado de entender, pois a maioria dos judeus da França se salvou. Eles se salvaram graças aos franceses. Na Holanda, por exemplo, foi o contrário. A maioria dos judeus da Holanda morreu nos campos de extermínio. Então, houve uma colaboração ativa dos franceses. A França foi dividida em duas zonas. Havia a zona ocupada e a chamada “zona livre”. Era a zona administrada pelo governo, por Pétain. Mas, quando isso foi… Não podemos ver as coisas com o olhar de hoje. Devemos vê-las com o olhar de então. Sem retroatividade histórica, é a pior maneira de julgar.

Silio Boccanera — O seu livro nos conduz também à época em que os intelectuais franceses tinham uma influência considerável mesmo fora da França. Todo mundo conhecia os intelectuais franceses, e a sua ligação com a revista intelectual Les Temps Modernes já dura há muito tempo. Relembre, por favor, da evolução da revista até a época atual, pois isso nos fala da vida…
Claude Lanzmann —
Escute… Eu não vou falar sobre isso. A minha relação com a revista é muito forte, pois sou o diretor dela.

Silio Boccanera — É, há muito tempo. Exatamente.
Claude Lanzmann —
Entrei para a revista em 1952. Eu nunca deixei a revista. Hoje, eu sou o diretor.

Silio Boccanera — Essencialmente, o senhor acha que os intelectuais, hoje, têm a mesma influência que eles tinham no passado?
Claude Lanzmann —
Não podemos comparar. Isso não faz sentido. Todos tiveram influência. Todos querem ter uma influência, mas, frequentemente, você vê, nos intelectuais de hoje, uma postura que eu chamaria de paródia em relação àqueles que eram totalmente engajados os quais nós adoramos como Sartre, como Malraux, etc. E Zola, com o Caso Dreyfuss.

Silio Boccanera — É essa a diferença. Naquela época, as pessoas ouviam os intelectuais. Hoje, elas ouvem os intelectuais?
Claude Lanzmann —
Depende. Os intelectuais não são mais exatamente os mesmos. Eles tentam muito ser eles mesmos, mas isso não vem da sua mais profunda essência. É isso que eu quero dizer quando falo de paródia. Mas o mundo mudou não só os intelectuais. A França mudou, o mundo mudou, o Brasil, certamente, mudou, então, não há termos de comparação.

Silio Boccanera — O senhor conhece muito bem um nome internacional como Sartre, como homem, como personalidade. O que o senhor pode nos dizer sobre ele? Que tipo de pessoa ele era, além de filósofo e escritor?
Claude Lanzmann —
Ele era a máquina de pensar mais formidável que eu já conheci. Quando Sartre pensava, nós podíamos ouvir o pistão do seu pensamento em funcionamento como o pistão de uma locomotiva. Ele era o homem mais generoso que existia. Ele era generoso em tudo, não só com o seu dinheiro. Ele dava o dinheiro dele a todo mundo. Não havia um só movimento de liberação na América Latina que não era financiado por Sartre, que não recebia o dinheiro de Sartre. Ele dava todo o seu dinheiro. Ele era generoso não só com o seu dinheiro, mas também com o seu pensamento, com suas ideias. Quando entrei para a Les Temps Modernes, a revista da qual hoje sou diretor, as reuniões editoriais eram maravilhosas. Nós éramos pessoas muito jovens, e Sartre não só nos ouvia, como também conversava conosco, nos enchia de força. E, quando saíamos das reuniões, nos sentíamos capazes de afrontar o mundo através do pensamento.

Silio Boccanera — O senhor diria a mesma coisa de Simone de Beauvoir?
Claude Lanzmann —
Eu não diria exatamente a mesma coisa dela.

Silio Boccanera — Quanto à influência hoje, acredita ainda ser importante a influência de tudo o que ela criou?
Claude Lanzmann —
Ela tem uma importância enorme, sim. Na França, é enorme. Ela é muito famosa. Ela tem uma grande importância por… Ela escreveu muitos livros, mas ela… O Segundo Sexo é um livro importantíssimo. Eu conheci bem. Eu vivi com ela.

Silio Boccanera — Ela teve uma influência sobre o senhor…
Claude Lanzmann —
Muito grande, sim.

Silio Boccanera — Vocês viveram juntos cerca de 10 anos.
Claude Lanzmann —
Foram 8 anos.

Silio Boccanera — 8 anos.
Claude Lanzmann —
Mas nós tínhamos… Eu tinha 27 anos, e ela 44 anos. Não é tão ruim. Ela me ensinou o mundo. Eu ensinei a ela outras coisas. Eu fiz muitas viagens com ela. E, quando eu me lancei nas obras bem difíceis, como “Shoah”, por exemplo, eu passei a vê-la duas vezes por semana. Eu não vivia mais com ela, mas eu a via duas vezes por semana. Eu lhe falava do filme que eu estava fazendo. E eu lhe mostrava o filme à medida que eu o fazia.

Silio Boccanera — Ela aceitou bem o filme?
Claude Lanzmann —
Sim, ela admirava muito o que eu fazia.

Silio Boccanera — O senhor ainda ouve, quando apresenta “Shoah” hoje, não no Irã, evidentemente, mas em outros países, pessoas dizerem: “Eu não sabia disso.”? Ainda há pessoas que dizem isso?
Claude Lanzmann —
Esse não é o problema. As pessoas não dizem que não sabiam daquilo, mas, sempre que “Shoah” é exibido, é um verdadeiro choque. Então, “Shoah” nunca deixa de ser exibido. Ele é como uma fonte. Isso não tem fim. “Shoah” é um filme que não envelhece, que não tem uma única ruga. É um filme que foi concebido desse modo. A primeira frase do “Shoah” é: “A ação começa nos dias de hoje.” “Nos dias de hoje” é 1942, é 1985, quando escrevi isso, pois eu havia terminado o filme. Cada vez em que o exibo… em 100 anos, não sei, mas, em 50 anos, ainda terá efeito.

Silio Boccanera — Vamos entrar um pouco na Segunda Guerra Mundial. Quero saber sobre o lado dos Aliados. O senhor acha que os Aliados deviam ter feito alguma coisa?
Claude Lanzmann —
Se eu acho…

Silio Boccanera — Os Aliados, a Grã-Bretanha, os EUA, eles deviam ter feito algo quanto ao extermínio dos judeus que eles não fizeram?
Claude Lanzmann —
Essa é uma questão séria muito importante. Durante muito tempo, eu achei que teria sido possível fazer algo para salvar os judeus, mas, hoje, eu penso o contrário. Acho que, desde o momento em que Hitler começou a sua guerra, e que ela era, fundamentalmente, também uma guerra contra os judeus, era tarde demais. A salvação dos judeus tinha que ter começado bem antes. No meio da guerra, o que era possível fazer por 1 milhão e 600 mil judeus assassinados pelos grupos especiais, pelos Einsatzgruppen na União Soviética, nos países bálticos, na Ucrânia. Não era possível fazer nada. E nos campos de extermínio também. A única questão que se apresentou foi o salvamento de judeus da Hungria. 400 mil judeus húngaros tinham sido mortos nas câmaras de gás de Auschwitz entre maio e junho de 1944. Todo mundo sabia o que estava acontecendo, e as coisas se complicaram. Bem… essa questão se apresentou, e a coisa mais importante que podia ser feita nesse momento era bombardear o campo. Muitos pilotos se recusaram a fazer isso. “De que adianta bombardear as pessoas que queremos salvar? Isso é muito bizarro.” Então, a solução era mandar dinheiro, pois os nazistas eram uns ogros. Eles pegavam todo o dinheiro dos judeus. Isso era para deter a deportação.

Silio Boccanera — Nós podíamos comprá-los.
Claude Lanzmann —
É. E acabar com… A deportação na Tchecoslováquia, por exemplo, foi incrível. Mas havia leis que regulamentavam a conduta de um país como os Estados Unidos em tempos de guerra. Era impossível mandar dinheiro para o inimigo, em território inimigo. Os únicos que fizeram alguma coisa, pois a lei divina era mais importante para eles que a lei humana, foram os judeus ultraortodoxos dos Estados Unidos, que burlaram esse trâmite complicado. Eles conseguiram mandar um pouco de dinheiro, o que salvou algumas pessoas. Então, é preciso saber que a realidade era a configuração verdadeira do impossível. O Holocausto não foi só o massacre de inocentes, foi o massacre de pessoas indefesas. Foi moda, depois, entre os universitários americanos, sobretudo os judeus, escrever nos livros: “Os judeus foram abandonados. Os políticos negaram socorro, etc.”

Silio Boccanera — E o senhor é mais realista…
Claude Lanzmann —
Eu sou mais realista.

Silio Boccanera — Quanto à situação.
Claude Lanzmann —
Exatamente.

Silio Boccanera — O senhor abordou esse assunto, em “Shoah”, sob a forma de documentário. Mas há pessoas que tratam do mesmo tema usando a ficção. O senhor acha que eles têm algo a contribuir para a compreensão do que aconteceu?
Claude Lanzmann —
“Shoah” começa com um garoto cantor que canta em um barco. Não é um documentário. Os judeus não cantavam. É uma criação, uma invenção minha. A locomotiva que chega a Treblinka, atrás da qual há 100 mil pessoas e muitos vagões… “Shoah” é uma criação contínua…

Silio Boccanera — Eu aceito isso. Diga-nos…
Claude Lanzmann —
Todo mundo tenta…

Silio Boccanera — Há outra diferença. O senhor não faz ficção, o senhor faz a realidade. E as melhores pessoas que fazem ficção para abordar esse tema, o senhor acha que elas têm algo a contribuir para a compreensão? Falo de filmes como “Amém”, de Costa-Gavras, e “A Lista de Schindler”.
Claude Lanzmann —
Esses filmes não têm nada a ver com “Shoah”. “Shoah” é uma visão com um olhar frontal. Ele tem antolhos. Não olha nem para a direita nem para a esquerda. Não é possível fazer isso. Até hoje, ninguém ousou fazer ficção com três mil pessoas — homens, mulheres e crianças — morrendo asfixiadas numa câmara de gás, nos crematórios 2 e 3 de Birkenau.

Silio Boccanera — O senhor acha que esses filmes de ficção não nos ajudam a entender o que aconteceu?
Claude Lanzmann —
Acho que eles ajudam a não entender.

Silio Boccanera — É mesmo? De que modo?
Claude Lanzmann —
O único filme que nos ajuda a entender é “Shoah”. O filme que mais se aproxima daquela realidade é “Shoah”.

Silio Boccanera — Eu lhe agradeço.
Claude Lanzmann —
De nada.

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