Direito & Literatura

Do fato à Ficção:O Estrangeiro de Albert Camus

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17 de fevereiro de 2012, 14h16

Direito e Literatura: do Fato à Ficção é um programa de televisão apresentado pelo procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e professor da Unisinos Lênio Streck, onde se discute, com convidados, uma obra literária e seu diálogo com o Direito. A obra desta edição, que a ConJur reproduz a seguir, é O Estrangeiro, do argelino Albert Camus. Participam do debate a professora de Direito da Unisinos Roberta Magalhães Guberte a professor doutor em letras Roberto Ponge. Assista ao vídeo e leia a resenha do programa feita pela jornalista Camila Mendonça.

Direito e Literatura – O Estrangeiro from Unisinos on Vimeo.

O Estrangeiro é um romance curto, que conta a história de um homem que mata outro homem e a seguir há a investigação pelo assassinato, o julgamento e condenação à morte dele. Ao final do romance o personagem sabe que é condenado à morte e está esperando a decisão relativa ao último recurso que apresentou para saber se vai ter a cabeça cortada ou se terá prisão perpétua. A história se passa na Argélia.

Lênio comenta com a professora convidada que, O Estrangeiro, assim como O Processo de Franz Kafka, são livros que tratam, entre outras coisas, de um julgamento. O que se pode tirar para contemporaneidade do Direito nessa catástrofe a qual o personagem se envolve? Pergunta o mediador de Direito & Literatura. “Me parece que o Camus faz um discurso da fragilidade do discurso jurídico. Na estrutura do Direito, na sua capacidade de apreender e compreender determinadas ações humanas”, opina Roberta.

“O Mersault, o personagem central, é um indivíduo que quer permanecer à margem, é uma pessoa extremamente alheia ao convívio com as outras, se mostra um individuo que não aceita se incluir no pacto social, acaba se tornando a margem do próprio Direito. Tanto é que na segunda parte do livro ele se mostra completamente desinteressado pelo próprio julgamento, indiferente a todo ritual do julgamento e até ao resultado final. Não tem interesse em escolher um bom advogado, não se preocupa em demonstrar arrependimento ou culpa durante o julgamento.” Elucida a docente.

Lenio pergunta a Ponge, se é importante o contexto em que a obra é escrita, antes da guerra, se isso tem haver com a guerra, se Camus está usando um modo de trabalhar o estado da arte e da política da época?

O professor explica que o livro foi escrito antes da segunda guerra e não tem a ver com ela, mas está situado na Argélia, quem mata é um argelino europeu e quem é morto é um árabe. Na época havia em média 9 milhões de árabes para um europeu no país. “Os europeus, apesar de vida modesta, tem estatuto social superior ao dos árabes, então o livro tem muito a ver com isso. Embora não seja um livro destinado a denunciar o colonialismo, está situaldo na Argélia, e o fato de um árabe ser morto e o europeu ser condenado é significativo, pois quantidade de europeus condenados na Argélia devia ser ínfima”, contextualiza Ponge.

Ainda sobre o enredo, os convidados explicam que o livro é divido em duas partes.

Na primeira, que dura 18 dias, é onde o leitor aprende a conhecer o personagem, fica sabendo como ele reage diante da morte da mãe dele. Mostra que ele é uma pessoa ingênua, cândida, inocente, fala pouco, não está preocupado em se comunicar. E aprende também que ele matou o árabe por causa do sol, que o crime não foi premeditado, mas sim quase um acidente, falta de sorte.

Já na segunda parte todos os fatos anteriores são vistos sob outra luz. No 18º dia ele mata o árabe, ai vem a investigação, julgamento e condenação e espera da decisão do recurso.

Em relação a essa segunda parte, a professora explica, poderia se resumir dizendo que o sujeito foi condenado porque não foi ao enterro da mãe. No texto fica evidenciado que ele foi condenado não somente pelo assassinato do árabe. Tanto o juiz, quanto o promotor, a todo momento lembram que Mersault é uma pessoa que não se importa, não demonstrou sentimentos durante a audiência.Roberta cita um trecho do livro em que uma mulher pergunta: “Afinal, ele é acusado de ter enterrado a mãe ou de ter matado um homem?” E o promotor responde: “Sim, acuso esse homem por ter enterrado a mãe, com um coração criminoso.”

Roberta explica que todo o julgamento é pelo fato dele ser um estranho naquela sociedade, uma pessoa que não compactua e não aceita as regras e ainda comenta que o filósofo Jean Paul Sartre dizia que por trás de palavras como Direito e Justiça, nós vamos perceber um homem jogado no absurdo, na arbitrariedade, porque ele percebe que está numa situação sem sentido.

O livro mostra ainda que é nítida a existência de um sistema jurídico onde o homem não tem a menor importância, vira parte da engrenagem, é coisificado.

Há também na parte da reconstrução dos fatos, a mudança de sentido em relação à primeira parte. Onde os promotores enaltecem que ele abandonou a mãe, botou-a em casa geriátrica, não se relaciona com vizinhos e no dia seguinte ao enterro vai ao cinema assistir a uma comédia.

No livro também há a denúncia da retórica, quando Mersault diz: “Eu me dou conta que sou apenas mais um componente do procedimento, eu enquanto réu já não importa dentro do processo.”

Por fim, a obra remete a crise da década de 20, do desencantamento do mundo. Tenta entrar nesse caminho de tentar desvendar a questão da linguagem.

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