Interpretações distintas

Súmulas são aplicadas como se fossem leis

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4 de fevereiro de 2012, 7h20

A Lei 12.551/2011 alterou a redação do artigo 6º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o qual passou a dispor: “Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego. Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.

Diante dessa mudança de panorama normativo, vozes surgiram a sustentar que agora será possível a limitação da jornada de trabalho do empregado que desempenha suas atividades em domicílio, e será devida a remuneração de horas extras prestadas por ele; outras disseram que, doravante, caberá o pagamento de adicional de sobreaviso por uso de telefone celular, por exemplo. Finalmente, outras vozes garantem que nada disso pode ser extraído da nova redação da lei.

Tudo bem. Sem problemas. O Direito é assim mesmo. Ciência de interpretação, de argumentação, para a qual a ausência de discussões e polêmicas pode trazer sérios prejuízos. É saudável para o próprio Direito que haja discussões em torno da interpretação das normas; é dessas discussões que nasce a consolidação do Direito vigente. Quando se chegar a um denominador comum na celeuma interpretativa, em tese essa conclusão será sedimentada e legítima.

Nesse contexto, preocupa-me um rumo que tomam algumas discussões neste caso (como também em outros casos de alterações legislativas): a imediata alusão à necessidade de alteração de súmulas de tribunais. Publicada a norma, já se ouve o vaticínio: “agora, o Tribunal Superior do Trabaho vai ter de revogar sua súmula tal”; de outro lado vem a resposta: “não, não é preciso alterar a súmula tal”, e todos expõem seus fundamentos, bastante respeitáveis.

Não me preocupo, neste momento, com a questão de estar ou não esse ou aquele verbete de tribunal prejudicado por legislação superveniente. A súmula da jurisprudência dos tribunais depende, por definição, de reiteradas decisões tomadas no mesmo sentido, tendo ela a missão de sinalizar os entendimentos pacificados no âmbito da corte que a edita. Sua função está, portanto, diretamente ligada à segurança jurídica.

Se assim é, não se concebe como possa haver discussão sobre os efeitos da lei recém-publicada na redação de uma súmula de tribunal. Não há, ainda, casos decididos com base na nova lei, muito menos no âmbito do TST (os processos demoram a chegar lá). Qualquer deliberação sobre essa influência será baseada exclusivamente em juízos teóricos, e é aí que começa o problema.

As súmulas de jurisprudência não se baseia em juízos teóricos, e sim em decisões de casos concretos. Por que, então, essa tendência que se nota no Brasil de discutir imediatamente a validade da redação das súmulas?

Arrisco-me a dizer que o problema decorre do fato de que, materialmente, considera-se a súmula (em especial no âmbito do Judiciário trabalhista) não como verbete que sinaliza entendimentos homogêneos de um tribunal, mas sim como norma jurídica em tese. Não raro, julgamentos em primeiro e segundo graus são fundamentados exclusivamente em súmulas de tribunais superiores, como se se tratasse de lei formal. Progredindo essa realidade a passos largos, em breve a publicação de lei federal virá acompanhada de uma súmula de tribunal superior, já conferindo a “melhor” interpretação da norma editada. Tudo para evitar o “caos” das diversas interpretações que insistem em surgir nas primeiras instâncias do Poder Judiciário, e para gerar a tão valorizada segurança jurídica.

O ordenamento jurídico brasileiro não autoriza, contudo, esse comportamento. Não é adequada, então, a motivação de sentenças (Constituição Federal, artigo 93, IX) exclusivamente em verbete jurisprudencial; este pode corroborar a interpretação do Direito que é exposta na sentença, de modo a reforçar a fundamentação da decisão. Nunca figurar como fundamento único. Súmula, definitivamente, não é lei; não é norma jurídica. A jurisprudência não é fonte imediata do direito, mas sim mediata.

Ademais, como já foi ressaltado, o “caos” das interpretações distintas faz parte da sedimentação dos entendimentos jurídicos que pacificarão a sociedade. Sem esse movimento dialético, não há consolidação democrática de entendimentos jurídicos, e consequentemente não haverá segurança jurídica.

O TST possui centenas de verbetes de jurisprudência, entre súmulas, orientações jurisprudenciais e precedentes normativos. Sobre quase todos os temas de sua competência. E a realidade forense indica que essas centenas de enunciados são vistos e aplicados, muitas vezes, como se fossem leis. Não sempre, ressalve-se. Há fortes resistências quanto à perigosa aplicação de verbetes desprovida de análise crítica.

É perigosa a aplicação acrítica de súmulas, porque ignora a necessidade de interpretação do Direito à luz do caso concreto, à luz dos fatos de cada causa. Afinal, é essa a função do juiz (interpretar e aplicar a lei aos casos concretos). Se a função interpretativa for retirada da alçada do magistrado, não mais haverá verdadeira magistratura em primeiro grau de jurisdição.

Tornando à nova redação do artigo 6º da CLT, as discussões sobre seus efeitos devem existir, devem ser fomentadas e valorizadas. Mas penso que devem ser projetados e discutidos os efeitos que a lei terá nas relações sociais, não no catálogo de súmulas do TST. A jurisprudência do TST é que irá se adaptar (ou não) às mudanças que a lei trouxer às relações trabalhistas.

Autores

  • é juiz do Trabalho substituto em São Paulo (2ª Região). Foi professor de Direito Civil da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, da Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso do Sul e de cursos preparatórios para concursos públicos da área jurídica.

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