"Jovens da Primavera Árabe só querem liberdade"
10 de junho de 2011, 7h35
Leia, a seguir, a transcrição da entrevista:
Jon Lee Anderson (na foto, à esquerda) é jornalista, mas quem lê seus livros sabe que ele é mais do que isso. Na verdade, é um cronista de crises sociais e políticas. Ficou conhecido mundialmente quando escreveu uma elogiada biografia de Ernesto Che Guevara, lançada em 1997. Para escrever o livro, mudou-se com a família para Cuba e teve acesso a documentos inéditos. O resultado é um retrato apurado de um revolucionário que se tornou um ícone. A biografia equilibrada mostra as contradições de um líder que foi ao mesmo tempo um revolucionário inspirador e um político dogmático, que perseguiu e, até, mandou executar inimigos. O livro foi uma das fontes do roteiro do filme Che, épico em duas partes, dirigido por Steven Soderbergh, com Benício Del Toro no papel principal.
Anderson fez várias coberturas de guerras. Para escrever seu primeiro livro, sobre guerrilhas, em 1992, esteve em El Salvador, no Afeganistão, em Mianmar, no Saara Ocidental e na Faixa de Gaza. Em 2001, Anderson chegou ao Afeganistão dez dias antes de os Estados Unidos começarem a bombardear o país. Em 2003, durante a ocupação do Iraque, resistiu aos apelos de seus editores para sair da zona de perigo. Ficou em Bagdá e relatou o fim do regime de Saddam Hussein através de histórias de gente comum. Dessa vivência, saiu o livro A queda de Bagdá. Americano, filho de diplomata, Anderson morou na Coréia do Sul, no Peru, na Colômbia, em Taiwan, na Indonésia e na Libéria. Hoje, mora na Inglaterra com a mulher e três filhos. O Milênio aproveitou a presença de Jon Lee Anderson em São Paulo, para gravar este programa especial.
Tonico Ferreira – Quais seriam as consequências da morte de Osama Bin Laden? O que muda na agenda dos EUA para o Oriente Médio e norte da África e na agenda mundial dos grupos fundamentalistas islâmicos?
Jon Lee Anderson – A morte de Bin Laden ocorreu em um momento de mudanças extraordinárias, depois de dez anos de constantes conflitos entre Ocidente e o que podemos chamar de “fenômeno do Islã radical”. O único fenômeno que parece ser novo, partindo do mundo árabe e muçulmano, é essa militância irredentista, extremista e jihadista. E muito da política de segurança do Ocidente, em particular a dos EUA, realmente se baseou nessa ameaça e, de repente – começando logo antes do final do ano passado e no início deste ano – surgiu o que chamamos agora de “primavera árabe”, que, na verdade, é um fenômeno à margem da Al-Qaeda. É irônico. Existe um tipo de ironia agridoce no fato de que Osama Bin Laden morreu no momento em que o mundo árabe, que ele esperava revolucionar pelo extremismo, se transformava através de protestos democráticos. Combatidos, sim, com violência e, em alguns caos transformando-se em conflitos como o da Líbia, por parte dos manifestantes porque não tinham escolhas. Mas, em todo caso, um fenômeno que não tem nada a ver com a Al-Qaeda e tem tudo a ver com pessoas comuns expressando anseios e desejos comuns de mudança democrática, revolucionando seus próprios ambientes por meio de dois elementos-chave: ferramentas de redes sociais, internet móvel, permitindo que as pessoas se organizassem e enviassem rapidamente informações umas paras as outras, o que se tornou uma ferramenta de empoderamento. Vimos esse movimento pela primeira vez no Irã, há cerca de dois anos, onde foi esmagado. E, então, o vimos no mundo árabe, perto dali. O outro ingrediente crucial é a perda do medo. As pessoas que tinham sido, durante anos, condicionadas a viver sob ditaduras e a não questionarem, perderam o medo. É algo geracional. De certo modo, é algo análogo ao que aconteceu nos anos 1960 no Ocidente democrático e de livre mercado – Estados Unidos e Europa Ocidental – com a revolta da juventude contra a ordem estabelecida. Na época, isso gerou manifestações esquerdistas. Esta “primavera árabe” é, de certa forma, análoga a isso porque é uma parte do mundo que tem muito em comum e, embora não tenha uma tendência política – esquerda ou direita – é sobre liberdade. E a geração dos pais dessa juventude, pessoas nos seus 40, 50 ou 60 anos, em sua maioria, aceitaram essa vida sob a ditadura. Quando eram jovens, eles foram aterrorizados pelos ditadores e pararam de lutar. Se lutaram, eles pararam, mas seus filhos que têm 18, 19, 20, 22… Viram que em grupos abertamente juntos, alguns vão se sacrificar, mas se unirem, eles podem depor seus ditadores. Viram isso na Tunísia e no Egito.
Tonico Ferreira – As revoltas populares na chamada “primavera árabe” foram uma surpresa para você?
Jon Lee Anderson – Sim e não, ou seja, eu não poderia ter previsto isso da mesma forma que não poderia ter previsto a Revolução Verde no Irã. Eu estive no Irã seis ou oito meses antes e a minha impressão dos jovens iranianos, naquele momento, era de que eles eram comodistas, vivendo vidas fantasiosas, com todo o potencial político tirado deles. E, de repente, eles desabrocharam. É claro que o regime usou contra eles as mesmas ferramentas que eles usaram para se reunir, contra eles. Em outras palavras, se o twitter é útil para você organizar pessoas, para levar muitas pessoas a uma praça para protestar, o regime também usa essas ferramentas de redes sociais para aterrorizar as pessoas. O que eu quero dizer é que agora estamos lidando com uma situação que está se tornando mais sofisticada, mais complexa. Eu não poderia ter previsto a “primavera árabe”, mas, no momento em que aconteceu, era de alguma forma, como também para eles e para as pessoas que conheciam essas sociedades, como um véu que caía. Tudo que estava entre eles e a mudança era o medo e eles perderam o medo. Quando perdem seu medo, elas são capazes de qualquer coisa.
Tonico Ferreira – Qual seria a saída para o impasse na Líbia?
Jon Lee Anderson – A única saída seria Kadafi aceitar o exílio e, sabe, não é da natureza dele fazer isso. Talvez se matarem mais dos seus filhos, ele aceite. Esse é o tipo de guerra por lá agora. É muito brutal. Ele se percebe como um revolucionário. Ele é muito líbio, não consegue se imaginar em outro lugar. Se percebe como uma personalidade histórica. Ele está pensando em seu legado agora… Para onde ele vai? Ele apoiou o terror em tantos países vizinhos que ninguém vai aceitá-lo no mundo árabe. Ele poderia ir, talvez, para Burkina Faso. Alguns desses ditadores africanos precisam de ajuda, mas, hoje, seria tolo em fazer isso porque sabe que iriam atrás dele. Charles Taylor aceitou ir para a Nigéria e foi entregue. Está sendo julgado em Haia agora. O Kadafi não tem lugar para ir. Acho que isso é possivelmente um erro porque, agora que ele está contra a parede, ele só pode lutar de volta e a situação só pode ficar pior. Por isso é que estamos vendo ataques com mísseis com o objetivo claro de assassiná-lo. A Otan diz que é para abalar comando dele e as instalações militares, mas todo mundo sabe que estão tentando assassiná-lo. Então, independente de como isso surgiu – e não é algo bonito, é triste ver esse tipo de guerra de controle remoto – não é uma guerra nobre. Não é uma guerra nobre por parte do Ocidente e não é uma guerra nobre por parte de Kadafi. É uma situação muito feia porque permitiram que ele ficasse no poder por meio de acordos petrolíferos com o Ocidente. Há muita corrupção, muita gente no Ocidente, nos mesmos países que agora o estão atacando, que ganharam muito dinheiro por causa do Kadafi.
Tonico Ferreira – Como na Turquia?
Jon Lee Anderson – Só que a Turquia tem 25 bilhões de dólares em projetos de construção civil na Líbia. A China deve ter muito mais, assim como a Itália, a França, os EUA, a Inglaterra… É uma história feia e todos devíamos nos sentir desconfortáveis enquanto ela se desenrola. Mas também é verdade que o povo líbio, em sua maioria, finalmente viraram para ele e disseram: “O que você está fazendo aqui? Quem colocou você aqui? Por que você está nos governando? Como você ousa? Como você ousa nos dizer o que fazer?”. Isso nunca havia acontecido antes no mundo árabe.
Tonico Ferreira – O que a comunidade internacional pode fazer para promover a democracia no Oriente Médio e no norte da África? E quando a intervenção militar externa é necessária?
Jon Lee Anderson – Essa é uma pergunta muito boa e eu acho que é com isso que o presidente Obama e outros estão lidando neste momento. Essa é a chave. Como eu dizia antes, acho que é muito importante fazer exatamente os movimentos mais corretos e exatamente as declarações mais certas. Muitas pessoas olham para o presidente Obama – afinal ele é o presidente dos EUA, a grande superpotência – muito desapontados com ele. Isto é unânime. Todos acham que ele é muito deliberativo, muito racional e que não é demonstrativo o suficiente. Mas é preciso lembrar que ele se elegeu oito anos depois de George W. Bush, de direita radical, que cometeu muitos erros, trouxe de volta o espectro do “americano feio” e criou uma enorme reação no mundo sobre a maneira como os EUA se comportam. Obama tem um grande fardo nos ombros: executar seus deveres em prol da sua nação, manter a segurança por meio da força e, ao mesmo tempo, mandar uma mensagem de razão e decência moral, reforçando um tipo de decência que eu achava ter sido perdida. Isso não é algo fácil de fazer e não se muda a percepção das pessoas subitamente. De certa forma não existe uma maneira boa de se fazer nada neste momento, tanto para os EUA, quanto para o presidente. Você intervém para ajudar as pessoas na Líbia? Você salva vidas ou está sendo uma potência imperial? Você é as duas coisas.
Tonico Ferreira – Na sua opinião, qual será o futuro das ações militares dos EUA no Afeganistão daqui para frente?
Jon Lee Anderson – O presidente Obama gostaria de ver uma retirada mais significativa assim que possível. Seus militares, não necessariamente concordam com isso. Essa é uma negociação em curso que existe desde que ele assumiu a presidência. Existe alguma tensão agora sob a superfície no que concerne a esse assunto. Acho que ele gostaria de ver contingentes maiores saindo nos próximos meses. Existe um número base de 120 mil soldados e ele mandou o que se chama de “reforço”: 30 mil soldados a mais, assim como Bush fez no Iraque para quebrar a resistência. Isso não funcionou. É muito cedo para avaliar, mas o custo disso é enorme. Cada soldado no Afeganistão custa U$ 1 milhão ao ano para os EUA. É um gasto muito grande.
Tonico Ferreira – E os Estados Unidos precisavam da ajuda do Paquistão?
Jon Lee Anderson – Sim. Os EUA sempre precisaram da ajuda do Paquistão.
Tonico Ferreira – Alguns analistas acreditam que bin Laden estava protegido por parte da Inteligência do Paquistão. O senhor acredita nisso?
Jon Lee Anderson – Sim. Veja, todos nós que conhecemos esses países – Afeganistão e Paquistão – desde 2001, todos nós acreditávamos que Bin Laden estava no Paquistão e estava recebendo ajuda da Inteligência paquistanesa. Todos nós acreditávamos.
Tonico Ferreira – Qual seria a reação dos EUA?
Jon Lee Anderson – Os paquistaneses, por muito tempo, tiveram uma política externa essencialmente baseada na desestabilização de seus vizinhos. É um Estado extremamente inseguro. Sempre foi governado pelos militares e por seu núcleo de Inteligência, que é extremamente poderoso. Primeiros-ministros vieram e se foram. Muitos foram assassinados ou executados pelos seus predecessores. Você tem um Estado muito fraco e militares muito fortes. Esses militares, nos anos 1980, embarcaram em uma ideologia jihadista que não é compartilhada por todos os oficiais, mas por um núcleo profundo. Esse núcleo profundo patrocinou o terrorismo na Caxemira e outros grupos que foram para a Índia. Por exemplo, os ataques de Mumbai dois anos atrás. Isso foi realizado pelo equivalente paquistanês da CIA, o ISI. Sabemos disso. Isso é conhecido há dois anos. Quando os americanos questionaram o presidente paquistanês, ele disse: “Eu não sei”. Quando falam com o chefe do ISI, eles negam, mas há provas. Enquanto isso, na fronteira sem lei com o Afeganistão, os Talibãs, Al-Qaeda e outros passam livremente de um lado para outro. Os militares dizem: “Estamos cooperando com vocês. Mandamos nossos soldados e eles morreram”. Sim, eles mandam seus soldados para morrer e, enquanto isso, cooperam com a Al-Qaeda. O assassinato de Bin Laden removeu todo o fingimento. Todos estão tentando amenizar as coisas de novo, mas mostrou ao público, pela primeira vez, o que nós jornalistas – aqueles que estavam trabalhando lá – sabíamos há muito tempo. É muito difícil para um repórter trabalhar no Paquistão. É muito fácil ser morto. Daniel Pearl foi decapitado pela Al-Qaeda no Paquistão e isso aconteceu no início de 2002. Desde então, eu tive colegas que foram mortos, sequestrados ou quase mortos no Paquistão. Eu sempre me preocupei muito com o trabalho no Paquistão e há grandes partes do país que estão fora do controle para nós. Não conheço nenhum jornalista que tenha ido a Queta, cidade militar do sul, nos últimos seis anos. E a liderança talibã, a liderança talibã afegã, o mulá Mohammed Omar, sem dúvida está morando em Queta, protegido pelos militares paquistaneses.
Tonico Ferreira – Qual o futuro desse país?
Jon Lee Anderson – Eu tenho medo do futuro desse país e temo que esse seja o terrível problema que virá, porque o Paquistão tem armas nucleares e acho que esse é o problema de segurança número um do mundo. Você tem 150 milhões de pessoas, dezenas de milhares de jovens desempregados e sem instrução com ideias profundamente antiocidentais. Uma cultura oficial de patrocínio ao terror, um Estado muito fraco, a dinâmica com a vizinha Índia, de quem o Paquistão foi um tipo de rompimento… Existe toda a chance de eclodir uma grande guerra por ali nos próximos dez anos, uma guerra de grande escala do tipo que não vimos há muito tempo.
Tonico Ferreira – Vamos voltar ao último discurso do presidente Obama. Ele insistiu nas fronteiras de 1967, que as fronteiras deviam ser respeitadas. É um passo importante para chegar à paz entre israelenses e palestinos?
Jon Lee Anderson – Eu acho que é importante definir um tipo de limite, porque é claro que nesta contínua e antiga briga entre judeus e árabes – vizinhos – entre palestinos e israelenses, existe um tipo de argumento ovo-galinha que se tornou… que abalou a estabilidade não só no Oriente Médio, mas em todo mundo durante muito tempo. Precisa ser resolvido. Em algum momento, as pessoas precisam se encontrar mais perto do meio do caminho. Voltamos para as fronteiras de 1948, quando não havia um Estado palestino nem um Estado israelense? Ou voltamos para as fronteiras de 1967? As fronteiras de expandiram e se contraíram proporcionalmente. Eu acho que essa é uma fronteira realista porque fornece aos palestinos algo próximo de um Estado viável. Não sei o que faria sobre Jerusalém, isso, é claro, é sempre a questão, mas, pelo menos, estariam… Presumivelmente seria preciso ter um mandato internacional para uma custódia conjunta, não sei… Sessenta anos de derramamento de sangue mostraram isso. Então, sempre esperamos pela sinergia correta neste conflito terrível entre um governo israelense iluminado e uma liderança palestina iluminada. Você também tem a liderança do Hamas, que é a mais poderosa das facções palestinas e que deplora a morte de Bin Laden e o descreve como um tipo de herói. Isso aliena muitos que estavam preparados para lidar com o Hamas como um sócio político nessa solução. Os americanos escutam isso, o que torna muito difícil para eles conversarem com o Hamas. Então, quando você acha que está chegando a algum denominador comum ou algum tipo de cenário em que partes iguais se reunirão, esse tipo de declaração surge ou acontece alguma outra ação.
Tonico Ferreira – Eu acho que a declaração do Hamas pode ser para o público interno.
Jon Lee Anderson – Talvez. Pode ser. É verdade que existe uma diferença entre o Hamas e a Al-Qaeda. Há uma grande diferença. Eles usam o terrorismo e os homens-bomba como instrumento de guerra, mas deixaram de usar quando não se tornou mais viável. Eles não buscam uma jihad global, são um grupo islâmico conservador na sua área. Eles são muito diferentes. Eles nunca se aliaram à Al-Qaeda. Então, sim, você pode estar certo, que foi para consumo interno, mas isso mostra que eles concordam que consciências ao redor do mundo são separadas pelo que há em sua imaginação política. É um pouco assustador que, o líder da faixa de Gaza, para consumo interno, precise expressar uma opinião favorável a alguém como Osama bin Laden.
Tonico Ferreira – Vamos falar da América Central. As guerrilhas eram um grande problema. Há alguns anos, você escreveu um livro sobre isso. É difícil entender por que os problemas, agora, são gangues de drogas?
Jon Lee Anderson – De forma alguma. Vejo uma relação direta entre as guerras civis e a violência, que duraram dos anos 1960 aos anos 1990, e o que vemos hoje. O que houve, em geral… Nos anos 60, se você fosse um camponês em El Salvador, 1964, e se seus pais fossem camponeses, você só tinha um caminho na vida: pegar um facão cortar café, colher café, ou cortar cana, como seus pais. E receberia US$ 1 por dia. Você não teria uma casa sua, talvez não tivesse nem uma bicicleta. Viveria em um barraco na beira da estrada, fora dos muros dos proprietários da terra que contrataram seus pais e vizinhos como empregados temporários. Talvez pudesse construir um barraco na linha do trem, se houvesse uma. No fim da temporada, tinha que retirar o barraco e ir para outro lugar. Quando Che Guevara e outros, patrocinados por Cuba, elites das universidades e outros, falaram sobre uma revolução marxista, ofereceram uma possibilidade, certa ou errada. Se você fosse um camponês e quisesse mudar sua vida, nos anos 60, 70, você podia ir às montanhas. E podia tentar lutar por dignidade. No final das contas, dignidade. O que aconteceu? As guerras civis tornaram-se muito sangrentas, muita gente morreu. Sabemos que lado os EUA patrocinaram. Ao longo dos anos 80, quando isso atingiu o auge, um a um, os exércitos se fortaleceram, e com exceção da Nicarágua sandinista, todos foram esmagados, a um grande custo humano. Massacres, esquadrões da morte… Milhões de centro-americanos fugiram para o norte para o único lugar aonde podiam ir, através do México: as favelas dos EUA, onde trabalhavam lavando pratos, ou como jardineiros, trabalhadores braçais. Eram os imigrantes ilegais sem rosto dos EUA. Quando a União Soviética ruiu e os guerrilheiros aceitaram a paz, acordos foram feitos em vários países. Mas, em geral, foi um ponto final. Amnésia e anistia. Anistia e amnésia a favor dos militares. Ninguém foi punido por nada. Ao mesmo tempo, havia uma situação de paz. Embora, ninguém tenha sido punido, havia paz aparente, e um certo desenvolvimento econômico. Os que foram viver em Los Angeles e outras cidades voltaram. E voltaram com adolescentes, porque viveram nos EUA e se juntaram a gangues. Eles trouxeram as gangues dos EUA, que eram gangues violentas, de tráfico de drogas. Voltaram a El Salvador e à Guatemala com elas. Em pouco tempo, as gangues formaram grupos com ex-insurgentes, militares, soldados, até chegar a uma situação na qual a economia de drogas dos EUA – ajudada e, em grande medida, monopolizada pelo México, como ponto intermediário, e pelas forças de segurança mexicanas, que sempre fizeram parte disso, dessa cultura criminosa, – espalhou essa violência e essa cultura. Não há exemplo melhor para mostrar a conexão entre essas duas partes da história. Há três dias, 29 trabalhadores foram achados decapitados em uma fazenda no interior da Guatemala. Entre eles, havia uma mulher e duas crianças. Trabalhadores inocentes. Parece que os homens que fizeram isso procuravam o patrão deles. Ele não estava. Eles executaram todos os trabalhadores. Quem são esses homens? São homens chamados de “Los Zetas”. Quem são os Zetas? Ex-soldados do governo, contrainsurgência treinada nos anos 80 para aterrorizar a população que apoiava os guerrilheiros. O que eles faziam nos anos 80? Eram chamados de “Kaibiles”. Eles cometiam massacres. Massacres no próprio país. Quando a guerra acabou, eles se tornaram guardas, vigilantes, sicarios para as máfias de drogas no México, para os chefões. Então, pesaram: “Podemos fazer isso sozinhos.”. E criaram seu próprio cartel. Hoje, são especializados em massacrar pessoas inocentes para um efeito político. Eles massacraram os trabalhadores na fronteira em México e EUA. Executam muitas pessoas. E agora, fazem isso no próprio país, onde não há estado de direito. Por que não há estado de direito? Porque as guerras civis acabaram com total impunidade para homens que se tornaram assassinos seriais. Não eram guerras normais. Eram guerras nas quais as vítimas eram mutiladas antes de serem mortas. Eles não atiravam na cabeça simplesmente, em El Salvador, na Guatemala. Falamos de uma perversão do estado a um grau raramente visto nessa parte do mundo. E é o que estamos vendo hoje. Para assassinos seriais não há outra alternativa: ou ficam presos pelo resto da vida ou são executados. Na América Central, eles ganharam empregos e puderam continuar matando.
Tonico Ferreira – O senhor conhece bem as favelas no Rio de Janeiro. Escreveu um artigo sobre gangues de drogas há dois anos. É possível comparar a situação da América Central com a situação do Rio?
Jon Lee Anderson – Sabe que há algumas… Claro… Meus amigos cariocas negariam isso veementemente, e muitos brasileiros ficam na defensiva quanto a isso. Mas, claro, como estamos falando, conhecemos bem as semelhanças pela América Latina ou em qualquer país onde, no passado, houve grandes injustiças sociais e enormes disparidades em termos de riquezas. Nesta cidade onde estamos, São Paulo, algumas pessoas ricas andam de helicóptero, mas a maioria está presa ao chão, e têm que ficar no planeta Terra. Não vivemos em um mundo perfeito. E, com certeza, não foi perfeito no passado, no Brasil. É um passado baseado em escravidão, assim como o meu país, em algumas partes. É muito difícil superar este tipo de injustiça em décadas. O Brasil é um país muito dinâmico e progressista. Vemos isso agora, isso é reconhecido no mundo. Mas está levando junto alguns desses problemas terríveis que têm relação com os da América Central. Como aconteceu o fato de vocês terem mil favelas dominadas por traficantes com armas automáticas, na cidade que vai sediar os Jogos Olímpicos, e que é a cidade mais linda do mundo? Como isso é possível? Isso mostra quase uma negligência criminosa do Estado. Se eu tivesse que identificar o problema, diria que é negligência beirando a uma decisão criminosa das autoridades que deveriam ter fornecido um Estado de Direito e Justiça Social aos seus cidadãos, e não fizeram isso. O único motivo de esta ou aquela favela em determinada parte da cidade estar nas mãos de criminosos é o Estado permitir isso. Ele não quis investir nas pessoas. A única diferença entre essas pessoas e as pessoas que não estão nas mãos dos criminosos ou sem chance, exceto ser criminoso também, é educação e algum tipo de dignidade, um trabalho, uma vida em que podem ganhar um salário decente para sustentar a família. Até isso acontecer, o problema existirá. Sei que algo está sendo feito, e isso é ótimo. Mas é basicamente isso. Estado de Direito é coisas simples, como educação. Nem é preciso dar um emprego. Se der educação, se der conhecimento prático, as pessoas sobreviverão. Não é tão diferente dos guerrilheiros. Eu conversava com guerrilheiros nos anos 80 e 90. Eu subia as montanhas e passava um tempo com guerrilheiros que queriam uma vida diferente. Mas, como o Estado não deu às pessoas que pensavam como eles a chance de fazer algo legalmente, eles não tiveram escolha, a não ser permanecer escondidos, vivendo clandestinamente.
Tonico Ferreira – Segundo a sua biografia de Che Guevara, você já morou em Cuba. Como você vê as medidas capitalistas tomadas pelo Partido Comunista de Cuba?
Jon Lee Anderson – Cuba coexiste com paradoxos há muito tempo. O que Raul está tornando oficial é uma realidade submersa há muito tempo. Levou tempo demais para os irmãos Castro reconhecerem que a maioria do seu povo não vive uma vida digna para sustentar suas famílias. Há um problema nos círculos de esquerda na América Latina chamado “consignismo”. Fazem as pessoas irem à praça para glorificá-los. Eles se sentem felizes, as pessoas ainda os amam. Ainda são revolucionários, porque vieram e foram à praça. Mas que escolha tiveram? Os cubanos sabem o que acontece, mas não têm alternativas. Há muito, os cubanos vivem no que se chama de “economia negra”: dizem uma coisa e fazem outra. Isso é terrível, porque cria uma moral dupla, uma sociedade com duas faces. Veja a Rússia hoje. Que tipo de socialista os soviéticos criaram? Criaram um país de gângsters e prostitutas, sinto muito. Mesmo não sendo 100% verdade, e não é, se você perguntar a um brasileiro o que ele acha sobre as mulheres russas, o que ele pensa? Se perguntar a qualquer pessoa do mundo o que acha, a ideia que tem, sobre os homens russos… Máfia. Isso é terrível. Isso nos diz muito. A realidade percebida se torna realidade depois de um tempo. Foi o que 60 anos de socialismo criaram na União Soviética, e é algo terrível. Isso foi socialismo? Não. Foi uma distorção anômala dos russos. O que Cuba criou foi socialismo? Talvez seja algo que se aproxime mais disso. Há pessoas lá que são desprendidas, acreditam mesmo nesses ideais e vivem vidas tranquilas. Mas também existe outra classe de pessoas que só deseja bens materiais e faz de tudo para tê-los. Não se importam com o mundo das ideias. Só querem as coisas que nunca tiveram. E, assim, cria-se um tipo de cultura sociopata. Se um pai desvia o olhar quando a filha vai para a rua e volta com uma sacola de comida, e ele não pergunta onde ela conseguiu, está sendo cafetão da filha. E esta, infelizmente, é a situação dos cubanos, ou variações dela. O fato de Raul estar fazendo concessões oficiais agora mostra que devem mudar a economia. Pode ser uma volta à dignidade – se ele fizer bem feito – do povo cubano. Isso é essencial para a sociedade progredir de forma saudável. Eu não estou na mente dele, mas espero que isso esteja em sua mente, nessas concessões, nessa dualidade, nessa política paradoxal, até mesmo hipócrita… Como chamaríamos? “Política deformada”. Mas se for necessário que façam isso devolvendo a dignidade ao povo, então, é algo bom. Porque não se pode forçar as pessoas a viver vidas duplas e esperar que isso não mude o seu DNA.
Tonico Ferreira – Gostaria de saber sua opinião sobre repórteres em campo, em situação de guerra. Perdemos colegas recentemente, como Chris Hondros [fotógrafo americano, morto em 20 de abril, na Líbia].
Jon Lee Anderson – Tim Hetherington [cinegragista americano, morto no dia 20 de abril, na Líbia] também, e eu descobri hoje que perdi mais um. Um amigo, Anton Hammerl [fotógrafo sul-africano, morto na mesma época, na Líbia], que era um dos quatro jornalistas, colegas nossos, que vinham sendo mantidos presos pelas forças de Kadafi todo esse tempo. Foram soltos há dois dias, e um deles não foi solto. Agora, dizem que ele foi morto. Ele deixou dois filhos, um deles com três meses de idade. Eu me sentei em frente à viúva dele, quando ela ainda não sabia que era viúva, na sexta-feira, em Londres, no enterro de Tim Hetherington. Tem sido uma época muito perigosa. Muito difícil. E outro amigo meu perdeu as pernas, João Silva, um português da África do Sul. Os jornalistas pagam caro por tentar cobrir e registrar as realidades do nosso tempo. É preciso dizer que o público em sua maioria, é ingrato e não percebe até que ponto os jornalistas, que geralmente são muito criticados, arriscam suas vidas para realizar esta missão. E a maioria do público esquece que para a maioria dos repórteres e jornalistas isso é um tipo de missão, e não digo uma missão religiosa, mas há um forte senso de espírito público em muitos repórteres. Muitos não admitiriam isso, ficariam envergonhados. Mas é verdade. No fim das contas, o jornalismo é isso. O serviço público supremo. Porque, sem a nossa informação, como uma ligação honesta, eu espero, entre o público e os poderes estabelecidos, onde o público ia conseguir essas informações? Dos porta-vozes dos ditadores, dos relações-públicas dos chefes de polícia, dos porta-vozes dos governantes. Confiamos nessas pessoas? Não deveríamos. Não deveríamos.
Tonico Ferreira – Você acha que o mundo está no caminho para uma imprensa mais independente e mais livre?
Jon Lee Anderson – Estamos vendo um fenômeno interessante. Através das possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias, todos que têm acesso a um pequeno computador de mão – um celular com câmera e internet – podem expressar suas opiniões e partilhar informações, numa escala que, antes, era impossível imaginar. Rapidamente, nosso planeta está se tornando um lugar onde as pessoas têm grande quantidade de conhecimentos.
Tonico Ferreira – Por outro lado, estamos vendo o crescimento da China, um país sem liberdade de imprensa.
Jon Lee Anderson – Correto. E, de forma perturbadora, vimos como alguns dos gigantes da internet e das tecnologias da informação se adaptaram à China para poder trabalhar com ela. Para vender seus produtos.
Tonico Ferreira – E não discordar dela.
Jon Lee Anderson – Ajudando-os a construir firewalls, esse tipo de coisas. Mas com o tempo, acho que não há como a China continuar a tentar limitar essas liberdades. O que temo é que tenhamos uma situação… Isso já acontece. Se você for a Nova York ou a Londres e entrar no metrô, se olhar em volta, verá que a maioria das pessoas estará olhando para uma tela. As pessoas não vivem o momento da mesma forma. De certo modo, estão vivendo uma hiper-realidade. De uma forma virtual, estão vivendo o momento. Às vezes, estão lendo notícias em tempo real. A maioria está jogando ou algo assim. Mas é uma forma de tirá-los de seu estado de coisas. Temo que passemos a viver em um tipo de mundo virtual, no qual a vida real vai prossegue, e as pessoas, por sua capacidade de escapar, perderão a força e se distanciarão das circunstâncias presentes. Elas podem se sentir livres, mas, na verdade, não serão livres. Provei isso no Irã. Um ano após Ahmadinejad e a Guarda Revolucionária esmagarem a Revolução Verde, fui convidado para ir a Teerã entrevistar Ahmadinejad. Foi no meio do ano passado. Fiz isso, e a única forma de achar alguém que expressasse uma opinião contrária foi subir s colinas, como as pessoas fazem em Teerã em busca de ar fresco. Também é uma forma de eles se reunirem. Caminhei por duas horas, e em um pomar de cerejas, conheci pessoas do Movimento Verde. Estavam longe dos espiões da cidade. Mas uma mulher me disse: “Ainda estamos nos organizando. Ainda estamos fazendo coisas”. Perguntei: “Onde?”. Ela disse: “Estamos fazendo virtualmente”. Respondi: “Então, vocês têm liberdade virtual, mas não real. É o que está me dizendo?”. Ela ficou sem o que dizer. Percebi que tinha sido duro, pois o que disse era verdade. Isso é terrível, ela não havia pensado nisso. Estava vivendo uma ilusão de que eles ainda eram livres para se organizar. Mas, no mundo real, nada havia mudado. No mundo virtual, sim, eles podiam ser livres. Mas se suas ideias não se transformam em ação, de que elas servem? É como estar cantando uma música no coredor da morte. Porque você não vai mudar nada.
Tonico Ferreira – A mudança virá quando as pessoas superarem seus medos.
Jon Lee Anderson – Como fizeram na Praça Tahrir, como fizeram na Tunísia, e como fizeram na Líbia e na Síria.
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