Centralização da dívida

União deve administrar todos os precatórios

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1 de agosto de 2011, 13h04

Deverá recomeçar em breve no Supremo Tribunal Federal o julgamento da Emenda 62 à Constituição Federal, conhecida como “Emenda do Calote”. Como o mesmo STF julgou inconstitucional recentemente outra Emenda parecida (a 30, que deu dez anos de moratória em 2000), é razoável presumir que a 62 terá o mesmo destino.

Seja qual for o resultado do julgamento, o day after exigirá movimentos práticos, objetivos e imediatos para a reestruturação dos precatórios no mundo real.

Uma solução bastante aceita por especialistas é o refinanciamento de precatórios estaduais e municipais pela União, o que significará um retorno ao chamado “Projeto Jobim”, quando o ministro Nelson Jobim ainda era presidente do STF.

Ninguém reinventará a roda: em 1998, a União assumiu R$ 101,9 bilhões de dívidas estaduais, sendo R$ 77,5 bilhões refinanciados pelo prazo máximo de 30 anos, a uma taxa de juros real mínima de 6% ao ano, R$ 11,4 bilhões a amortizar com receitas de privatizações estaduais e R$ 13 bilhões referentes à diferença de encargos pela rolagem das dívidas entre a data de corte e a data de assinatura dos contratos (valores expressos em reais constantes de 1998). O montante assumido pela União equivalia, à época, a 11,3% do PIB e a 77,9% da dívida líquida de estados e municípios em dezembro de 1998.

Os débitos relativos a precatórios vencidos e não pagos foram escondidos por várias razões: A primeira, e mais óbvia, foi o aumento do custo que tal inclusão traria na renegociação para a União (à época, o subsídio implícito na renegociação, que resulta da diferença entre a taxa de juros contratual e a taxa de juros de mercado, foi estimado entre um mínimo de R$ 26 bilhões e um máximo de R$ 38 bilhões — também a preços constantes de 1998). A segunda, e menos explícita, era a fragilidade dos precatoristas em relação aos demais credores e a falta de vontade política de resolver o problema. Durante esse período, desde que a dívida foi renegociada (mais de 12 anos), foram os precatoristas que subsidiaram os estados às mesmas taxas aplicadas à renegociação (taxa de juros real mínima de 6% ao ano — IPCA-E + 0,5% ao mês). Fazendo uma comparação simples em relação a quanto a União subsidiou a parcela da dívida renegociada, podemos concluir que sobrou para os precatoristas (já transcorrido quase metade do prazo da renegociação), um subsidio de pelo menos R$5 bilhões nesse período (isso somente sobre a dívida pendente à época).

Mesmo diante dessa vergonhosa situação, os estados não se acanharam em mais uma vez, em dezembro de 2009, repassarem aos seus credores os custos do seu descontrole de gastos e o eterno adiamento do ajuste fiscal no âmbito dos governos estaduais (o que resulta da combinação dos incentivos do federalismo fiscal com a ausência de consenso para a distribuição dos custos do ajuste). Com a aprovação da Emenda Constitucional 62/09, conseguiram rapidamente aumentar seus subsídios, ao impor uma redução do reajuste dos precatórios para o equivalente, hoje, a TR + 6% ao ano (taxa da poupança). Também impuseram um prazo mínimo de mais 15 anos para a quitação dessa dívida (prazo final de 2024 vs. 2027 da renegociação de 1998), basicamente piorando a situação dos precatoristas em relação às condições renegociadas em 1998 com a União, que hoje continuam (apesar de diversas tentativas de governadores de diversos estados em reduzir a taxa minima de juros) recebendo uma taxa de juros real mínima de 6% ao ano!

Hoje, já um ano e meio após a aprovação da Emenda Constitucional 62/09, a situação dos precatoristas continua crônica. Apesar de alguns estados e municípios respeitarem as condições estabelecidas no Regime Especial criado pelo Artigo 97 do Ato das Disposições Constitucionais Tranistórias (ADCT), realizando os depósitos mínimos, é evidente a dificuldade dos tribunais (a quem foi delegada a gigantesca tarefa) em distribuir os recursos depositados aos precatoristas (respeitando o complexo e irrazoável sistema de pagamentos imposto pela EC 62/09). Além disso, a EC 62/09 falhou ao não estabelecer uma solução aplicável a todas as entidades federativas e, para piorar, criou enormes lacunas que a Resolução 115 do CNJ tentou sanar. No entanto, por se tratar de Resolução, a regulamentação não vem sendo respeitada por muitos estados, que tentam tirar vantagem de interpretações absurdas da EC 62/09 (o objetivo é perpetuar o calote em estados com elevado grau de endividamento – no que tange seus estoques de precatório –, como nos casos do Espirito Santo, Rio Grande do Sul e Paraná, além de centenas de municípios).

Claramente, o Legislativo não cumpriu sua função e optou mais uma vez em ajudar o Estado em prejuízo de seus contribuintes. No entanto, eventualmente já prevendo uma possível declaração de inconstitucionalidade do Artigo 97, que introduziu o mais recente calote (como recentemente ocorreu em medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2.362, para suspender, por maioria de votos, a eficácia do artigo 2º da Emenda Constitucional 30), estabeleceu, no parágrafo 16 do Artigo 100 da EC 62/09, que “a seu critério exclusivo e na forma de lei, a União poderá assumir débitos, oriundos de precatórios, de Estados, Distrito Federal e Municípios, refinanciando-os diretamente.” Até agora, nada de concreto foi feito em relação a utilização desta disposição, porém, é importante destacarmos a possibilidade de uma federalização, principalmente se levando em consideração as constantes investidas de senadores e governadores na promoção de uma nova renegociação das dívidas e na negociação do ICMS interestadual/FPE.

Antes, é importante reconhecermos a realidade. Estamos em um Brasil muito diferente do de 1997-1998, pelo menos do ponto de vista econômico (apesar dos motivos políticos relacionados ao crescimento das dívidas dos governos estaduais e municipais continuarem os mesmos). Saímos de um período de inflação média de quase 9% ao ano (de 1999 a 2004) para 4,8% ao ano. (de 2005 a 2010) e taxas Selic acima de 20% ao ano para taxas abaixo de 10% ao ano (como observado em 2010). O Brasil se tornou a sétima maior economia do mundo, tendo alcançado o tão desejado grau de investimento (investment grade), mas continua devendo R$ 100 bilhões em precatórios para milhões de contribuintes. Mas mesmo com todas essas melhorias, é quase utópico o cenário em que a dívida em questão seria paga de uma só vez dado o efeito avassalador que tal saída de caixa causaria aos cofres públicos.

Diante de tamanho desafio, uma conciliação é necessária, minimizando-se ao máximo os prejuízos aos credores. Diferentemente do que ocorreu na década anterior, o custo do subsídio implícito em uma eventual renegociação de dívida entre a União, estados e municípios, incluindo-se a dívida de precatórios, seria quase nulo dado que a diferença entre a taxa contratual da renegociação de 1997-1998 (juros real de 6% ao ano) e a taxa de juros de mercado (hoje um título do governo federal — NTN-B — com prazo de vencimento de 2035, é negociada a uma taxa média de juros real de 5,6%) é negativa, ou seja, o governo federal se financia no mercado a uma taxa de juros real mais baixa do que ela recebe como parte do acordo.

Se, com base no parágrafo 16º do artigo 100 da EC 62/09, a União assumisse os débitos de precatórios de estados, Distrito Federal e municípios, por meio de emissão de títulos públicos federais com prazo de 15 anos e juros equivalente a poupança (TR + 0,5 % ao mês), os atuais precatoristas receberiam títulos que se assemelhariam em termos de risco de crédito a qualquer título público emitido pelo governo federal (NTNs, LTNs, LFTs, TDAs etc.). Atualmente, o estoque da dívida pública federal em mercado supera R$ 1,7 trilhão, sendo extremamente líquida. Ao se padronizar os títulos a serem dados como pagamento em troca dos precatórios (mesmo vencimento, taxa de juros etc.), automaticamente se criará um mercado secundário para esses títulos que potencialmente pode chegar a R$ 100 bilhões (valor equivalente ao estoque estimado de precatórios do país). Cria-se assim a possibilidade dos credores que reterem esses títulos (com um perfil de risco muito melhor do que o dos atuais precatórios) até o seu vencimento (quando receberão o valor integral de seus precatórios mais o juros equivalente a taxa da poupança) ou vendê-los no mercado secundário (onde deveriam ser negociados a um desconto médio de 30% dado o spread negativo entre a TR — índice de “correção” dos precatórios — e IPCA — índice de atualização das NTN-B). Na atual situação, a grande maioria (senão todos) dos credores de precatórios estaduais e municipais ficaria satisfeita com o recebimento de 70% do valor atualizado de seus precatórios.

Para os estados e municípios, o custo de tal solução não deveria aumentar. Atualmente sujeitos a EC 62/09 e a Resolução 115 do CNJ, encontram-se obrigados a quitar toda a sua dívida de precatórios em prazo máximo de 15 anos mediante contribuição mínima de um percentual sobre a suas receitas correntes líquidas que permitam a quitação plena desses passivos neste prazo. Ao invés de distribuírem esses recursos para os precatoristas, estes os utilizariam para quitação da dívida assumida com a União (que em contrapartida emitiria os títulos públicos federais em favor dos precatoristas). Fica então a União, soberana e detida de poderes muito acima dos detidos pelos precatoristas, responsável por ajustar os percentuais mínimos da receita corrente líquida a serem destinados para a quitação desta dívida adicional, bem como por negociar a taxa de juros a ser paga pelos estados e municipios nesses financiamentos (não deixando tal responsabilidade, como atualmente ocorre, para o Judiciário). O risco de crédito da União pode ser mitigado por mecanismo similar ao dispositivo já previsto na EC 62/09, no inciso V do parágrafo 10 do artigo 97 da ADCT: “no caso de não liberação tempestiva dos recursos de que tratam o inciso II do § 1º e os §§ 2º e 6º deste artigo” prevê a possibilidade da União reter os repasses relativos ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal e ao Fundo de Participação dos Municípios como forma de garantir os pagamentos dos percentuais mínimos estabelecidos para o pagamento de precatórios.”

Ademais, com esta solução, a União poderia esperar uma arrecadação adicional advinda da retenção de imposto de renda sobre os títulos federais oferecidos como pagamento dado que hoje, o imposto é recolhido a medida em que os precatórios são pagos (o que deve ocorrer em até 15 anos) e com a quitação através do mecanismo sugerido, poderia recolher os tributos de uma só vez quando da dação dos novos títulos como pagamento.

Mais. Do ponto de vista operacional, a implementação desta solução implicaria necessariamente na padronização dos sistemas e cálculos relacionados a atualização dos créditos, trabalho que poderia ser realizado por instituição financeira capacitada ou por exemplo pela CETIP que hoje dispõe de sistemas extremamente avançados e já é o ambiente de liquidação de títulos públicos federais como as TDAs (Títulos da Dívida Agrária) que são (como os precatórios) indexados a TR, tirando dos TJs a responsabilidade pela administração das contas criadas pelo regime especial.

As razões apontadas acima são apenas algumas das razões pela qual a “federalização” da dívida de precatórios seria mais fácil e saudável do que a solução abrangida pela EC 62/09. Obviamente implicará em uma negociação politicamente sensível entre a União, estados e municípios. Para evitar tal “conflito” no passado, governadores, senadores e deputados preferiram impor a força do Estado sobre a ponta mais fraca: seus contribuintes. Aos precatoristas resta a esperança de que uma ADIN (4357), ajuizada pela OAB, seja aprovada, declarando a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 62. No entanto, caso isso ocorra, o regime anterior passará a valer ficando os estados e municípios sujeitos a sequestros de renda substantivos o que sobrecarregará ainda mais o Judiciário. Outras soluções práticas e responsáveis poderiam ser implementadas, como a criação de fundos de infra-estrutura (lastreados em precatórios) e a utilização de precatórios como

”moeda” para pagamento de dívida ativa, contribuições para aposentadoria, privatizações, etc. Neste menu de opções, a federalização/securitização certamente parece ser uma grande opção para redimir, pelo menos em parte, as violências cometidas por estados e municípios dando a possibilidade de liquidez imediata a todos os seus credores de precatórios que há décadas esperam, sofrendo, para receber o que lhes foi afirmado como de direito por decisão judicial.

O “calote” soberano de países (Grécia, Portugal, Espanha e mesmo dos EUA!) está na ordem do dia e o Brasil, por enquanto, está em posição privilegiada para evitar sua participação indesejada nesta agenda negativa mundial. Precisamos, entretanto, colocar em operação soluções equilibradas, restaurando a segurança jurídica para investimentos e o equilíbrio entre os Poderes.

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