Ideias do Milênio

"Para Salazar, os melhores deviam governar"

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29 de abril de 2011, 9h21

Entrevista do historiador português Filipe Ribeiro de Meneses ao jornalista Silio Boccanera do programa Milênio, transmitido originalmente nos dias 11 (Primeira Parte) e 18 (Segunda Parte)  de abril. O Milênio é um programa semanal do canal de televisão por assinatura Globo News que vai ao ar às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça; 5h30 de quarta; e 7h05 de domingo.  

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Entrevista Filipe de Meneses - g1.globo.com

Durante 40 anos no século 20, Portugal viveu sob uma ditadura sombria e retrógrada, chefiada por um líder reacionário e puritano, que durante muitos anos manteve em sua mesa de trabalho um retrato de Mussolini, com quem compartilhava algumas ideias políticas. Conviveu de perto com o caudilho espanhol Francisco Franco e foi admirador do führer alemão Adolf Hitler, todos seus contemporâneos e parceiros ideológicos, uma visão de mundo sob o prisma da direita com toques de racismo e crença na superioridade de uma elite para dar ordens às massas.

Antônio de Oliveira Salazar manteve Portugal no obscurantismo durante quatro décadas. Ferrenho em não conceder independência às colônias portuguesas na África e refratário a tudo que representasse modernização em seu país. Teve uma relação ambígua com o Brasil, do Estado Novo ao Regime Militar. E se aproveitou das ideias de Gilberto Freyre para justificar o colonialismo português na África, com a bênção e os elogios do sociólogo pernambucano. O

salazarismo só terminou quando a Revolução dos Cravos explodiu em Portugal em 1974, embora o próprio ditador tivesse morrido quatro anos antes e já se encontrasse fora do poder desde 68, quando sofreu um AVC. Só após o fim do regime ditatorial, com atraso, Portugal começou a se modernizar. Quem foi este homem até hoje pouco conhecido mesmo em Portugal? É o que pretende esclarecer Salazar – Uma Biografia Política, a volumosa biografia do velho ditador, recém-publicada em Portugal e no Reino Unido, com versão brasileira lançada agora. O livro é produto de sete anos de pesquisas do acadêmico português Filipe Ribeiro de Meneses, professor de História na Universidade da Irlanda, filho de diplomata que serviu no Brasil e convidado do Milênio para esta conversa especial.

Silio Boccanera — Nosso público no Brasil, sobretudo a geração mais jovem, talvez ache Salazar uma figura distante. Na verdade, Salazar lidou com vários presidentes do Brasil, de Washington Luís, passando por Getúlio Vargas até o general Costa e Silva. Fale-nos, por favor, da relação de Salazar com o Brasil.
Filipe Meneses — A relação de Salazar com o Brasil é extremamente interessante. Em primeiro lugar temos de lembrar-nos de uma coisa: Salazar quase nunca saiu de Portugal. Ele uma vez ainda com trinta e poucos anos foi à França e à Bélgica, mas foi uma viagem muito curta. E depois mais três ou quatro vezes saiu de Portugal para se encontrar com o general Francisco Franco, mas quase sempre ao pé da fronteira Portugal e Espanha. Depois foi a Sevilha uma vez. A sua experiência do resto do mundo foi quase nula. E ele nunca teve aquela sensação que os portugueses têm quando chegam ao Brasil, uma emoção muito forte de atravessar o mar, de atravessar um oceano e chegar ao Brasil, chegar a um país onde se fala o português, onde se é entendido. E qualquer português sente. Ele nunca sentiu isso. Por isso a relação que ele manteve com o Brasil e com todos os governantes do Brasil dessa longa época foi uma relação cerebral, foi uma relação intelectual, uma relação política com muito pouco, parece-me a mim, de emocional. E por isso havia certas coisas que queria do Brasil, no fundo queria que a política externa brasileira se coadunasse com a portuguesa, que servisse os interesses da política portuguesa que no fundo eram para Salazar os seus próprios interesses, por isso queria alinhar o Brasil e explorar o Brasil, digamos assim, o nome, a reputação, a força do Brasil em proveito próprio, e quando ele conseguia isso, tudo bem e as condições eram boas, mas nem sempre era possível e aí começava a surgir uma certa tensão entre Salazar e os governantes brasileiros. 

Silio Boccanera — E na área política ele ficava satisfeito quando o Brasil seguia o lado de Portugal, mas quando ia contra, por exemplo, na ONU, quando o Brasil votava contra a política colonial portuguesa, ele se irritava.
Filipe Meneses — Ele irritava-se bastante e ficou um pouco chocado quando o Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial, porque isso veio a abalar os seus planos para a manutenção da neutralidade portuguesa. Aí já houve um momento de tensão. E depois, claro, em 1962 na Assembleia Geral, e em 1963 quando o Brasil esteve no Conselho de Segurança e votou contra os interesses portugueses, isso foi muito mal visto em Lisboa. Curiosamente, havia um certo realismo da parte de Salazar e do se ministro dos Negócios Estrangeiros na altura, Franco Nogueira, e eles viam esse voto contrário a Portugal como o reflexo natural da política do Brasil, que era seguir a Janio Quadros, o presidente Goulart, se não me engano. E por isso eles estavam conscientes de que com esse governo brasileiro a opinião do Brasil não seria sempre contrária a Portugal. O que eles tinham era esperança que tal como Janio Quadros teve o mandato muito curto, também o próprio Goulart teria uma carreira curta como presidente do Brasil, como aliás foi o caso, pois logo em 1964 houve o golpe militar. 

Silio Boccanera — Ele se entendia bem com os governantes militares brasileiros?
Filipe Meneses — Entenderam-se melhor. 

Silio Boccanera — De ditadores para ditadores.
Filipe Meneses — Ditador para ditador. Se bem que na ditadura militar, embora o Brasil não fosse tão militantemente anticolonialista, não conseguiu Salazar que os ditadores militares, que o governo da ditadura o apoiasse abertamente nas questões africanas. O Brasil passou a abster-se em Nova Iorque na ONU. Não a votar contra. Já era qualquer coisa, mas o que Salazar queria abertamente era que os governos brasileiros dissessem: nós apoiamos Portugal. Isso nunca aconteceu. 

Silio Boccanera — Vamos tentar dar um pouco de contexto histórico aqui para o nosso público brasileiro entender melhor. Salazar vem de uma família pobre, é muito católico, entra para o seminário, quase vira padre, vai para a Universidade de Coimbra, forma-se em direito e em economia, vira professor lá mesmo em Coimbra. Com 39 anos é chamado pelo governo para ser ministro das finanças em Portugal, 1928. Era um governo militar que tinha chegado ao poder via golpe de estado. Salazar equilibra o orçamento e, em pouco tempo, assume o cargo de primeiro ministro, onde vai permanecer até quase o fim da sua vida. Foram então quarenta anos contínuos de ditadura.
Filipe Meneses — Foram quarenta anos contínuos de ditadura sem dúvida nenhuma. Ele torna-se ministro das Finanças em 1928, imediatamente é rotulado de o ditador das finanças, porque chama a si poderes que até então os ministros das finanças em Portugal não tinham. É ele que decide o orçamento de todos os ministérios. Qualquer despesa a mais tem de ser aprovada por ele. Tudo lhe passa pelas mãos em termos de despesa. E ao mesmo tempo que vai, nos termos propagandistas da época, obrando esse milagre financeiro, está a minar a ditadura militar, está a mostrar que só ele pode assegurar estabilidade em Portugal, e chega ao ponto em que a maior parte dos militares fica de acordo com a ideia de que ele  seja o primeiro ministro e os militares aceitem um papel secundário. Por isso vamos passar desta ditadura militar a um regime civil liderado e pensado por Salazar. E por isso em 1932, ele torna-se primeiro ministro e em 1933 é ratificado por plebiscito. Não sabemos exatamente os termos ou a validade desse plebiscito, mas ele inaugura o regime, o Estado Novo Português, que dura até 1974. 

Silio Boccanera — Esse nome Estado Novo, por coincidência, também é usado no Brasil por Getúlio Vargas na sua fase ditatorial. Em que se baseava esse Estado Novo de Salazar? Quais eram os princípios dele?
Filipe Meneses — Era uma mistura de nacionalismo, de corporativismo e de certa forma ainda mantendo algo da herança liberal. Por isso há uma assembleia nacional em que os eleitores são representados. Só há um partido, que era a União Nacional, mas mesmo assim há a ideia de que as pessoas podem ser devidamente representadas por deputados. Continua a haver um presidente da República, sempre uma figura militar, que é eleito pelos eleitores portugueses. Pelo menos até ao fim da Segunda Guerra Mundial era sempre o mesmo, o general Carmona, o único candidato, mas havia algo da herança liberal mantida. E o Estado Novo no fundo era um mecanismo que permitia Salazar governar dando-lhe o máximo de liberdade, obviamente. Ninguém tinha, mas ele tinha liberdade para agir.

Silio Boccanera — Em termos ideológicos, mesmo antes de chegar ao poder como professor da Universidade de Coimbra, ele definiu como entendia a política em um artigo em que dizia, e eu cito: “Poder e soberania não vêm do povo, e sim de Deus. Os objetivos da humanidade não podem ser alcançados em uma sociedade baseada na igualdade. Poder tem de ser manejado para alcançar o bem comum, o que não deve ser confundido com a vontade da maioria.” Ou seja, ele achava que só os iluminados deviam ter o poder, dar ordens ao povo, que tinha que aceitar o que vinha de cima?
Filipe Meneses — Exatamente. A sua política foi endurecendo. Mesmo antes de chegar ao poder ele foi caminhando para a direita. Mas ele era um político católico. Ele pertencia a um partido político católico, que era o Centro Católico Português.

Silio Boccanera — Esse lado católico dele é muito importante para entender…
Filipe Meneses — É muito importante. Mas a política católica naquela altura não era a Cristã Democracia dos anos 40 ou dos anos 50. Era algo muito conservador e que mais conservador foi se tornando até a Segunda Guerra Mundial, por causa do perigo comunista. Era preciso reagir. A única maneira de reagir ao comunismo era criando alianças com outras forças anticomunistas que eram basicamente o fascismo. Pois há muitas ideias praticadas pela política católica nos anos 30 com o fascismo: o corporativismo, supostamente o sistema de governo era algo praticado por católicos e fascistas. Essas palavras não são de estranhar. Aos nossos ouvidos podem parecer quase sinistras. Na altura, para alguém que se inserisse numa linha política católica não o era, e precisamos de ter isso em conta. Havia uma deriva à direita na política europeia por reação à revolução russa, ao bolchevismo por aí afora, e Salazar fazia parte dessa corrente muito conservadora. O que se quer da população é que trabalhe, que poupe, que seja patriótica e que não pense em política. Salazar falava muitas vezes: Vale aos portugueses a viver habitualmente: Uma vida regrada, calma, espaçada.

Silio Boccanera — Submissa.
Filipe Meneses — Submissa, claro. Mas ele isso não dizia, mas a ideia é que as pessoas percebam que a política é uma coisa relativamente pouco importante na sua vida, e por isso não se preocupem e façam a vida deles, mas deixem a política a quem sabe.

Silio Boccanera — Você mencionou o lado católico de Salazar, que evidentemente é muito importante, não só individualmente para ele como crença e fé pessoal, mas é também do ponto de vista político. Ele tinha o apoio total da igreja católica.
Filipe Meneses — Ele teve o apoio total, aliás, havia uma relação de amizade que é importantíssima na vida de Salazar, que é com Manuel Cerejeira, amigo dos tempos de faculdade, já na altura padre e que depois vem a ser o cardeal patriarca de Lisboa, por isso o chefe da Igreja Católica Portuguesa. Era o melhor amigo de faculdade de Salazar e essa ligação pessoal se mantém, com altos e baixos, até o fim da vida de Salazar.

Silio Boccanera — Mas ele sempre se acreditou até o fim um iluminado, um especial, alguém superior ao povo português.
Filipe Meneses — Sim, por razões intelectuais. Ele era um professor acadêmico, era um professor da Universidade de Coimbra, era assim que se definia antes de mais nada, era um professor, era uma universitário. E eu acho que talvez passe de uma missão religiosa para a simples crença no "governo pelos melhores", entre aspas.

Silio Boccanera — Ele tinha uma política econômica muito peculiar, desde seu primeiro posto como ministro até deixar o poder, ele era obcecado em equilibrar as finanças. Não podia gastar. Em um país pobre como Portugal, ele queria restringir mais ainda o consumo. Isso resultou em estagnação, e não podia resultar de outra forma. E ainda assim, ele era considerado um gênio na economia. Como?
Filipe Meneses — Ele era considerado um gênio das finanças, porque era e foi sempre o princípio básico do Estado Novo de que um país pequeno como Portugal não pode ser devedor. Não pode. Nós temos de governar-nos a nós próprios com os nossos recursos. Não podemos dever a ninguém, porque então entramos em uma situação de fraqueza muito grande. A questão do protecionismo. Ele não era um protecionista nato. O que sucede é que a entrada dele no governo coincide precisamente com a grande depressão em que o protecionismo surge então como uma resposta natural de quase todos os governos. E ele diz isso muitas vezes. “Temos de adotar medidas protecionistas para nos defendermos, mas isso não me agrada. Não é assim que eu sou”. Ele acreditava bastante no livre mercado no mundo. O protecionismo é algo que não lhe vem naturalmente. Só que uma vez embarcado nesse caminho, depois é difícil sair.

Silio Boccanera — Na área econômica ele era tradicionalista, um conservador, mas poderíamos pensar que, por exemplo, na área da educação ele pudesse ter feito algo por Portugal, mas os resultados práticos, e sobretudo com o passado acadêmico dele, professor, mas ele não fez nada pela educação em Portugal.
Filipe Meneses — Curiosamente no início dos anos 1930, 1933, 1934, há um discurso de Salazar em que ele fala nos seus amigos de infância e de escola, na sua terra natal, no Vimieiro, e diz que pena que tanta gente se perca em Portugal pela falta de educação. E afirma: “A minha prioridade é a educação”. Esse discurso não consta da antologia dos discursos de Salazar. Esse discurso quase que desapareceu porque realmente…

Silio Boccanera — Ele não fez nada.
Filipe Meneses — Não era nada uma prioridade, e era uma simples questão financeira. A política de Salazar no fundo como ele apresenta, é mais realista, não vamos prometer nesse discurso o que não podemos cumprir. E depois dele: “E também vamos ensinar as pessoas a ler para que? Uma vez que eles sabem ler, pois começam a ler as coisas que não prestam, e começam a ler livros. Não há quem os explique o que eles devem ler. O simples ato de os ensinar a ler é criar uma série de problemas para o futuro, porque eles vão começar a ler as coisas que não devem, e vão começar a ter ideias próprias”.

Silio Boccanera — E isso é um perigo.
Filipe Meneses — Por isso há um evoluir muito lento no número de escolas a ser construídas. Portugal chega aos 70 com uma taxa de analfabetismo muito alta e muito superior a de qualquer outro país europeu.

Silio Boccanera — De certa forma, a imagem que os portugueses fixaram no Brasil, em parte, é um reflexo disso, que os portugueses chegavam no Brasil em massa, imigrantes e não tinham recebido educação suficiente por falta de escola. Então se associa o português imigrante para o Brasil com iletrado, mal informado, não por culpa do intelecto dele, mas por falta de escola.
Filipe Meneses — E foi isso… Enfim, depois a imigração para o Brasil começa a abrandar e como eu disse, nos anos 1960 a imigração para a França sobretudo, e é exatamente esse reflexo que há por parte da sociedade francesa.

Silio Boccanera — Alguém era contra Salazar?
Filipe Meneses — Havia muita gente. A ditadura militar que ele consegue enfim substituir tinha várias correntes dentro dela, incluindo alguns republicanos democráticos que queriam reformar a República como ela tinha existido desde 1910, mas que aceitavam o período de ditadura para criar uma democracia melhor. Essa corrente manteve-se dentro do exercito e de vez em quando tentava montar um golpe, uma demonstração anti-Salazar, tenta sepultar as suas ações, e por isso foi sempre difícil a relação de Salazar com o exército. Era um civil, era alguém que não tinha nenhuma sensibilidade para as necessidades dos oficiais e para a vida dos oficiais. Foi sempre um pouco mal quisto.

Silio Boccanera — Mas ele conseguiu manobrá-los durante 40 anos.
Filipe Meneses — Sim, sem dúvida nenhuma. Depois, há as velhas correntes também, mais uma vez republicanas. Muitas das figuras principais estavam no exílio e não eram francamente um perigo. A oposição serrada a Salazar vai nascer do Partido Comunista. O que nós temos a partir dos anos 1930, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial e continuando por aí afora é uma guerra… Não é propriamente uma guerra civil, porque a maior parte dos portugueses estava alheia, mas há uma guerra surda, digamos, entre a PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a polícia política de Portugal entre 1945 e 1969], entre o aparelho repressivo do Estado e o Partido Comunista Português, que obviamente é ilegal, cujos militantes vivem na clandestinidade, que tentam fazer passar a sua propaganda, distribuir o jornal Avante.

Silio Boccanera — O PC já estava sob o comando do Álvaro Cunhal?
Filipe Meneses —
Já. Nessa altura sob o comando de Álvaro Cunhal que foi preso e depois conseguiu fugir e foi para a União Soviética. Mas que é um adversário de nível que muitas vezes é derrotado na batalha, mas não é derrotado na guerra. Pois o Partido Comunista aparece em 1974, depois da Revolução de 25 de Abril e pode dizer: “Nós estamos a lutar contra o regime durante décadas e fomos alvo principal da repressão do regime, sem dúvida”.

Silio Boccanera — Nos anos 30, Mussolini no comando na Itália com os fascistas, Hitler chega ao poder na Alemanha em 33, Franco se envolve na Guerra Civil que acaba ganhando, assume o controle da Espanha em 39. Qual era a relação de Salazar com esses líderes?
Filipe Meneses —
Eu acho que era diferente com todos eles, e nós podemos dizer: “Ah, era um clube de ditadores”. Eu acho que Salazar não se incluía bem nesse clube. 

Silio Boccanera — Ele tinha um retrato do Mussolini na sua própria mesa.
Filipe Meneses —
Tinha um retrato de Mussolini na secretária, que depois obviamente também foi para uma gaveta, imaginamos. Havia um sentimento de que pelo menos nos anos 30 a política europeia estava a caminhar numa certa direção, que a democracia parlamentar tinha acabado, tinha sido derrotada. Era uma má ideia. Ele dizia: “Talvez para os povos anglossaxônicos, para a Inglaterra faz sentido uma democracia. Para os Estados Unidos. Mas em mais nenhum sítio. Os outros povos não se habituam a essa ideia, não conseguem funcionar com ela. Estamos a caminho dos regimes autoritários nacionalistas e é esta a normalidade. E quem sou eu, governante de Portugal, o país mais pequeno da Europa Ocidental, o país mais fraco, quem sou eu para me arvorar em defensor de princípios de liberdade. São eles que governam os seus países”. Mantendo sempre a ligação com a Grã Bretanha, a velha aliança entre Portugal e a Inglaterra que datava do século 14, muito importante ainda, até para proteger Portugal do nacionalismo do general Franco, mas ao mesmo tempo são eles que governam os seus países e Hitler é uma figura incontornável da política europeia.

Silio Boccanera — Mas ele admirava também essas pessoas. Ele admirava Mussolini, admirava Hitler, admirava Franco.
Filipe Meneses — Hitler teve muito pouco contato com ele. E sinceramente não vejo em nada do que eu li escrito por Salazar sobre Hitler que mostrasse admiração. Obviamente quando falava, por exemplo, com o embaixador alemão, reconhecia o gênio e o talento de Adolf Hitler claro. Fazia parte da praxe. Mussolini um pouco mais do que Hitler.

Silio Boccanera — Daí o retrato.
Filipe Meneses — Daí o retrato. Mas ter o retrato de Mussolini dava-lhe um toque de modernidade a Salazar também. Franco é o único que ele conheceu pessoalmente e, após alguns anos de contato regular com Franco, vemos que Salazar não o admira. Nos conselhos que ele dá aos embaixadores que partem para Madri, por exemplo, Salazar diz-lhes: “Se você não sabe o que mais dizer ao general Franco, elogie-o. 

Silio Boccanera — É verdade que ele decretou luto oficial em Portugal quando Hitler morreu?
Filipe Meneses — Sim. É verdade. Mas fazia parte das obrigações, na altura, dos Estados que faziam isso em relação a chefes de Estado do país com quem tinham relações diplomáticas.

Silio Boccanera — Não refletia uma admiração pessoal por Hitler.
Filipe Meneses — Não, reflete um legalismo de Salazar, parece-me a mim. Não é uma admiração pessoal. Foi muito criticado por isso. Quando li telegramas enviados por portugueses no Brasil a queixarem-se a Salazar, dizer: “Então, o Brasil está em guerra com a Alemanha, morre Hitler e você declara luto, baixa as bandeiras à meia-haste. Como é que isso é possível?” Mas é possível por causa do espírito de adesão à letra do costume da lei. Outros países neutros durante a guerra fizeram a mesma coisa. A Irlanda, por exemplo, também… 

Silio Boccanera — Decretou luto.
Filipe Meneses — Exatamente. 

Silio Boccanera — Mesmo com a neutralidade, Portugal em 1943 cede à Inglaterra e aos Estados Unidos acesso aos Açores como base militar. Para um país neutro isso era meio sensível.
Filipe Meneses — É claro, muito difícil. E a primeira coisa que Salazar faz é informar, uma vez negociado o acordo, que foi uma negociação lenta e Churchill, por exemplo, já estava farto da negociação e dizia: “Mas por que é que nós não pura e simplesmente invadimos os Açores também. Não são eles que nos vão travar.”

Silio Boccanera — A localização era fundamental, no meio do Atlântico.
Filipe Meneses — Exatamente. Para a guerra contra os submarinos alemães era absolutamente essencial controlar os Açores. Eu acho que Salazar chega ao ponto de vista, em 1943, que francamente a guerra está perdida para a Alemanha, e por isso começa a mostrar alguma boa vontade para com os aliados. Eu sei que nem toda gente concorda com isso em Portugal, mas parece-me a mim que ele favorecia a causa aliada.

Silio Boccanera — Desde o início.
Filipe Meneses — Desde o início. Porque o que Salazar diz é que os ingleses podem ser muito difíceis em negociação, podem ser muito interesseiros, podem impor sempre o interesse britânico e o interesse comercial do seu país à frente de todas as outras considerações, mas não se metem na vida alheia e respeitam as instituições dos outros países. Os alemães têm a mania do sistema. E por isso, tendo uma forma de governo na Alemanha, e controlando militarmente a Europa, vão querer reproduzir o seu sistema em todo lado. Eles não vão deixar os países pequenos europeus governarem-se como querem. 

Silio Boccanera — Início dos anos 60. Explode na África o movimento por independência das colônias europeias, portuguesas e outras. Luta armada em Angola, em Moçambique, Guiné, Cabo Verde. Os britânicos, os belgas e o franceses concedem aos poucos independência às suas colônias, mas Salazar não admite conceder independência. Resiste à força. E assim Portugal, um país pobre se vê forçado a gastar fortunas em guerras coloniais em vários países ao mesmo tempo. Custo em vidas humanas, custo econômico, custo militar. Por que a intransigência?
Filipe Meneses — Em primeiro lugar, quando se trata da questão colonial, não era só Salazar. E aí é muito fácil os portugueses culparem Salazar, mas eu acho que a grande maioria, pelo menos em 1961 quando há uma primeira onda de violência antiportuguesa em Angola, a maior parte da sociedade portuguesa revoltou-se contra essa violência e quis afirmar os direitos portugueses em Angola. Muitas reações, claro, mas não foi só Salazar. E eu acho que seria impossível politicamente, mesmo que Salazar quisesse, dizer "Angola para os angolanos". O Exército, o resto do aparelho do Estado Novo não entenderia. Agora, a verdade é que Salazar quis manter Portugal. Não foi o único, mas é esse o ponto principal. Agora, por quê? Porque a estratégia de desenvolvimento do futuro de Portugal passava pelas colônias. Havia muito tempo que as fronteiras de Angola e Moçambique estavam razoavelmente bem definidas. Territórios enormes, muito maiores do que Portugal. Portugal não tinha tido capital humano ou financeiro para desenvolver as colônias. Finalmente, nos anos 50, graças a anos de poupança em investimentos etc., começava a vislumbrar-se o desenvolvimento econômico racional das colônias, sobretudo Angola e Moçambique.

Silio Boccanera — Depois de 400 anos.
Filipe Meneses — Exatamente. O presidente fala: “Bom, então agora vai começar o segundo plano de 500 anos de Portugal para Angola” com muita graça. Mas finalmente Portugal estava na possibilidade de transformar de forma positiva para os seus interesses Angola e Moçambique. Por isso, há uma frustração enorme. E no momento em que as coisas começam a correr bem os outros fogem, por causa de meia dúzias de manifestações, diria Salazar. Ao primeiro sinal de violência os belgas puseram-se a milhas do Congo. E Portugal não pode fazer isso. E por que Portugal não pode fazer isso? Porque os ingleses e os franceses quando dão independência em África, o que eles estão a fazer? Estão a dar independência a meia dúzia de pessoas que eles controlam. Cria-se a fachada de um estado independente, mas o poderio econômico continua na mão. Curiosamente o argumento do neocolonialismo era um argumento comunista, mas Salazar partilhava nesse sentido.

Silio Boccanera — Vamos dar uma olhada no aspecto racial. Evidentemente estamos falando de colônias na África. O seu livro cita uma entrevista de Salazar a um jornal francês em 1964, quando ele diz, e eu cito: “Que não me acusem de racismo por dizer que os negros não têm as mesmas aptidões que os brancos. É uma constatação evidente e fruto da experiência. Os negros precisam estar enquadrados”. Racismo puro.
Filipe Meneses — Sem dúvida nenhuma. Possivelmente quando a guerra colonial já estava a ser travada, Portugal adota a posição de que estava a criar uma sociedade multirracial em que uma meritocracia sem o olho da cor definiria o futuro de todos os portugueses, fossem eles europeus, africanos, asiáticos. E Portugal baseava-se muito, mais uma vez uma ligação importante com o Brasil, para a sua propaganda, na obra de Gilberto Freyre. Por isso aderiu ao tropicalismo, à mestiçagem, ao mundo que o português criou etc. etc. Tudo isso era muito importante para uma narrativa na propaganda do Estado Novo que explicava as razões de Portugal. Eles diziam: racistas são os angolanos que querem os brancos fora de Angola. Os movimentos nacionalistas africanos são racistas. Nós estamos a criar uma Angola em que não há distinção de cor entre europeus, africanos, asiáticos que lá vivam. Na realidade, muitas vezes, em muitas entrevistas, vemos que isso era apenas uma fachada e que os dirigentes portugueses, começando pelo próprio Salazar, não acreditavam minimamente na questão de uma sociedade multirracial. Freyre torna-se útil a partir do momento em que a Europa começa a se desligar das colônias. E Freyre é importante porque permite aos portugueses dizerem: “Tudo bem. Os belgas, os franceses, os britânicos não sabem nada da África. Estiveram lá meia dúzia de anos e vieram-se embora. Os portugueses pelo contrário tem na sua história, o hábito, a vocação colonialista. Foi o que fizeram no Brasil. Criaram esta sociedade maravilhosa multirracial, e é isso que nós estamos a fazer".

Silio Boccanera — Salazar se ampara então nessa estrutura ideológica oferecida a ele por Gilberto Freyre, esse luso-tropicalismo que dizia que o colonialismo português era sábio, era o que dizia Gilberto Freyre. Salazar então se aproveita disso para criar a mentira de que não…
Filipe Meneses — Isso é um fato e é algo que eu estou neste momento a tentar desenvolver com um próximo estudo, são as ligações entre Portugal, Rodésia e África do Sul. Porque se formos a ver, em termos ideológicos, o que eles diziam estar a fazer era completamente diferente. África do Sul tinha o apartheid, queria dividir fisicamente as populações, por brancos de um lado, negros do outro e evitar ao máximo o contato. A Rodésia caminhava na direção da África do Sul. E Portugal era o multirracialismo.

Silio Boccanera — Se dizia multirracial.
Filipe Meneses — Mas na prática havia dificuldades. Por exemplo, se uma equipe portuguesa de futebol, uma equipe militar fosse fazer um torneio na África do Sul contra uma equipe do exército, não podia, porque tinha jogadores negros. Quem é a figura mais conhecida de Portugal nos anos 60? Eusébio [jogador de futebol do Benfica e da seleção portuguesa que ficou em terceiro lugar na Copa do Mundo de 1966].

Silio Boccanera — Em 1968, Salazar já com 69 anos demonstra cansaço e sofre um acidente vascular cerebral. Em setembro de 68 ele entra em coma e é substituído no poder por Marcelo Caetano. Relembrando aqui ao nosso público no Brasil esses detalhes históricos. Na verdade foi um processo semelhante ao que iria acontecer no ano seguinte no Brasil com o presidente Costa e Silva. Chega novembro, ele acorda do coma. E aí? Quem vai dizer a ele que ele foi substituído no poder? Como é que aconteceu isso?
Filipe Meneses — É dos casos mais absurdos da história de Portugal e certamente de toda a vida de Salazar. Salazar adoece precisamente em 1968, tem 79 anos já. É um homem de idade avançada. Já tinha começado a dar alguns sinais de fadiga mental. Quando ele acorda, obviamente o simples fato de abrir os olhos e dizer: “Estou aqui. O que é que me aconteceu?” começa a retirar poder a Marcelo Caetano. O que é que acontece? Salazar regressa à sua residência oficial, que ainda hoje é a residência oficial do primeiro ministro, em São Bento em Lisboa, e cercado de sua equipe médica, de sua fiel governanta dona Maria, da família que tinha sido criada, vive até 1970 uma existência na sombra. Por razões médicas, oficialmente, era-lhe proibido saber que já não era presidente do Conselho. Mas obviamente, a certa altura, é impossível que ele não tenha percebido. Os relatos diferem sobre o estado de saúde dele e sobre a sua capacidade de compreender, mas toda a gente está de acordo que havia momentos de lucidez. O que é que eles faziam? Tinham de cortar os jornais para tirar as notícias. Salazar tornou-se um incômodo e o seu acesso ao resto do país e o acesso do resto do país a Salazar são praticamente cortados. O resto do mundo apenas sabe que Salazar não sabe que é primeiro-ministro graças a uma entrevista a um jornalista francês, que já tinha entrevistado Salazar várias vezes, que consegue acesso a Salazar, consegue ir ao Palácio de São Bento, entrevista Salazar e começa a perceber, para seu espanto que ninguém ainda disse a Salazar que ele já não é o primeiro-ministro. E pois obviamente isso aparece na imprensa mundial e é extremamente embaraçoso para Marcelo Caetano, o homem que nem tem forças suficientes para dizer a Salazar que já está fora do poder.

Silio Boccanera — Morto em julho de 70. A guerra colonial continuava, há estagnação econômica e desemprego no país, mas estamos aí em 1970, só quatro anos depois, em 74, ocorreria a Revolução dos Cravos, a Revolução de 25 de Abril, quando os militares se organizaram e depuseram o Salazarismo ainda no poder com Marcelo Caetano. Uma pergunta que poderíamos fazer: Por que demorou tanto?
Filipe Meneses — Por várias razões. Porque, embora as guerras em África fossem obviamente caras, a economia portuguesa era capaz de suportar esse preço e mesmo assim garantir a grandes fatias da população uma vida melhor do que a que tinha tido. Mais uma vez a classe média lisboeta e a classe média das cidades portuguesas tem uma vida melhor com o passar dos anos. Esse é um ponto importante. Segundo ponto: havia a grande esperança de que Caetano servisse como ponte para um regime diferente. O lema dele era, um lema fantástico: "evolução na continuidade". Dizia rigorosamente nada. Agora, havia a esperança. Sabia-se que Caetano, dentro do regime, tinha sempre sido uma figura crítica de Salazar. Havia a esperança que Caetano conseguisse dois milagres: um, modernizar a sociedade portuguesa e a política portuguesa e pô-la de acordo com os padrões da Europa ocidental; e dois, que conseguisse uma solução digna, mas aceitável pelo resto do mundo, para o problema africano.

Silio Boccanera — Depois de quarenta anos de ditadura e tendo pesquisado a vida dele, você acha que Salazar deixou Portugal melhor do que recebeu?
Filipe Meneses — Não. Tendo em conta que são 40 anos e que o mundo mudou enormemente entre 1928 e 1968, isso é uma pergunta muito difícil de responder. Se fosse uma questão de quatro a cinco anos, mesmo dez anos, isso seria possível, mas no meio disso temos a Segunda Guerra Mundial, temos a Guerra Fria, o mundo mudou de forma incrível nos 40 anos. Socialmente, culturalmente, Portugal estava mais atrasado em 1968 do que em 1928. A distância que separava Portugal do resto do mundo, do resto da Europa sobretudo, tinha-se alargado. Quarenta anos de viver com ditadura, de viver com uma hierarquia muito rígida, de as pessoas terem de aceitar injustiças que eram feitas por não terem recurso. Por isso uma pressão séria. Do ponto de vista financeiro e econômico, acho que não. Acho que aí Portugal estava mais perto, mesmo assim, com todas as suas debilidades, do resto da Europa do que em 1928. Portugal não estava em muito mal estado economicamente e financeiramente, apesar do esforço da guerra em África. Agora, havia questões em que havia um atraso total. A questão africana era uma delas. Ainda hoje eu acho que a maioria dos portugueses tem uma ideia um pouco falsa do que foi o colonialismo português e do que era a natureza da vida nas colônias.

Silio Boccanera — Falsa no sentido de que acham que foi melhor do que na realidade…
Filipe Meneses — Que tinha sido melhor que na realidade foi. Que aceitam sem questionar a noção do multirracialismo. No fim, em 1974, havia centenas de milhares de portugueses europeus a viver em Angola que diziam: “Mas eu estava no liceu e na carteira ao lado estava um individuo africano e ao lado estava um mestiço". Havia uma certa preocupação, mas quando vamos a ver todas as posições chaves, todas as posições da autoridade estavam na mão de portugueses brancos.

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